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A CONSTRUÇÃO
DA ETERNIDADE

Paulo Henrique Dantas
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INDÚSTRIA CULTURAL
E MITOLOGIA URBANA

As adolescentes Aurelie, de 13 anos, e Valentine, de 12, se suicidaram na última quarta-feira, em Somain (norte da França), por possuírem uma ''veneração amorosa'' pelo líder do grupo Nirvana, Kurt Cobain, que também se suicidou há três anos. De acordo com um policial de Douai, Jean Marie Deschamps, as duas amigas ''haviam expressado há algum tempo o desejo de seguir o exemplo de Kurt Cobain''. Na quarta-feira de manhã, Aurelie e Valentine contaram no colégio que planejavam cometer suicídio. À tarde alguns de seus colegas visitaram-nas, com medo de que pudessem cumprir o plano. Logo após saírem as duas se suicidaram, com uma pistola automática calibre 22. Nas casas das adolescentes, decoradas com pôsteres de Cobain, a polícia encontrou textos alusivos à morte e ao suicídio, impressos e escritos à mão, e, em um caderno, uma anotação em que Aurelie dizia querer se encontrar com o guitarrista da banda de Seattle. (Folha de São Paulo, 17/05/1997).
O culto ao rei [Elvis Presley] está tomando proporções inacreditáveis. Em seu nome estão sendo fundadas seitas e uma nova versão do testamento circula com Elvis tal qual Jesus. A peregrinação não é só mental. Imitadores têm se submetido a cirurgias plásticas para se transformar em cópias do ídolo. O rei do rock and roll morreu em 16 de agosto de 1977. Mas este não é o final da história – a morte de Elvis Aaron Presley, na verdade, representou mais um grande passo na sua gloriosa carreira. Como acontecia com os faraós, Elvis deixou de ser rei para tornar-se uma divindade, um santo adorado pelos fãs de todo o planeta – e com isso conseguir vender mais discos e bugigangas do que quando estava vivo. Quando morreu, seu patrimônio foi avaliado em US$ 7 milhões. Hoje, os negócios que usam seu nome em vão geram US$ 300 milhões por ano. (“No céu com Elvis”. In.:Revista Istoé, 12/01/2000).

“Eu havia comprado o último disco da Legião [Urbana], A tempestade, no dia anterior à morte do Renato Russo. No outro dia, cheguei do colégio e minha irmã me contou que ele havia morrido. Nem liguei, pensei que era brincadeira. Fomos almoçar em um restaurante e eu vi um plantão da Globo falando disso. Não agüentei”, conta Vanessa [Campos de Morais, 18 anos], que passou mal e começou a chorar em pleno restaurante. “Todo mundo olhou pra mim. Corri para casa. Queria gravar as notícias”, lembra com uma ponta de tristeza. Até hoje Vanessa se entristece com a morte do vocalista da Legião Urbana. Escuta as músicas da banda todos os dias. (“Um ano de saudade”. In.:X-tudo - Correio Braziliense, 11/10/1997).

Jimi Hendrix era um gênio revolucionário da guitarra. Sid Vicious mal sabia tirar som do seu baixo. Janis Joplin emocionou o mundo ao recriar Summertime com uma voz descarnada de negra blueseira que parecia não caber no frágil corpo de garota branca.Sid assassinou My way (imortalizada por Sinatra) em ritmo de punk-rock. Jim Morrison traduziu em forma de poesia as experiências de sua geração. Sid, bem... Pode se dizer tudo da tosca letra de música que escreveu, Belsen was a gas, menos que tenha alguma poesia. Por que, então, quase vinte anos após sua morte (em 2 de fevereiro de 1979), por overdose de heroína, o baixista dos Sex Pistols teria se tornado um mito do rock tão comentado como Hendrix, Joplin e Morrison? Talvez porque ninguém melhor do que ele tenha encarnado o espírito do punk – a última grande revolução do rock – com todas as suas contradições. Fracasso musical e poético, Sid era insuperável em pelo menos uma coisa: ninguém provocou tanta confusão e revolta, em tão pouco tempo, quanto ele. Viva rápido, morra rápido e deixe um belo cadáver – ele levou ao pé da letra a lição subversiva das gerações anteriores e passou desta aos 21 anos de idade.” (“Um mito improvável”. In.: Caderno B – Jornal do Brasil, 01/02/1999)

As citações acima, todas a respeito de grandes ídolos da música pop, expõem o fascínio que tais artistas são capazes de exercer, mesmo depois de mortos, sobre uma legião de admiradores. E como conseguem manter um público ávido por qualquer novidade a seu respeito, passando incólumes pelas diversas tendências que a indústria cultural ano a ano lança no mercado. A sociedade pós-industrial, através de seus veículos de comunicação de massa, tem o poder de transformar o indivíduo comum em alguém notório da noite para o dia. Cria seus heróis e vilões. E, em um caráter que muitas vezes beira o sagrado, delega a alguns indivíduos o espaço de protagonista de um mito. Figuras distintas, que extrapolam seu próprio universo, e que através da morte, alcançam a imortalidade. Artista e obra são então relembrados de geração em geração, entes inseparáveis para um séqüito sempre crescente de fiéis.

Por mais comum que seja ouvir em entrevistas de artistas, quaisquer que sejam eles, a pregação em torno de uma autenticidade, de uma autonomia nas decisões sobre o que produzir (composições, filmes, livros, peças de teatro, etc.) sabemos que a direção a ser seguida, caso o objetivo de todos eles seja realmente o sucesso, será sempre determinada pela indústria cultural(1). É o artista refém de um exército que inclui empresários, patrocinadores, produtores, diretores, advogados, entre tantos outros, que podem, em um curto período, lançar carreiras tanto ao estrelato quanto ao limbo. Tudo obedecendo a um planejamento supostamente objetivo, pois mesmo que apoiados no mais frio cálculo, aqueles que conduzem tal processo também cometem erros: no mundo da música pop um empresário ganhou fama após recusar, em sua gravadora, uma banda inglesa iniciante, nos distantes anos sessenta. O motivo alegado pelo tal empresário eram os lábios extravagantes do seu vocalista, um rapaz chamado Mick Jagger. A história tratou de mostrar o tamanho de tal erro. Mas, entre erros e acertos, o fato é que este grande empreendimento que convencionamos chamar de indústria cultural, mostrou-se a maior fonte de mitos da sociedade pós-industrial. O grande guerreiro possuidor de forças sobre-humanas, disposto a enfrentar desafios e a morrer jovem nos campos de batalha, deu lugar a um outro jovem, que sai de sua cidade de origem para tentar gravar um disco na metrópole, fazer inúmeros shows e, com suas músicas e postura, influenciar multidões através dos inúmeros veículos postos a sua disposição. Como as sociedades, os mitos também mudam. Mas no caso destes, talvez as mudanças não sejam tantas...

A idéia fundamental do presente trabalho será discutir o processo de construção destes novos mitos ligados à indústria cultural. O foco se encontra em sua plenitude voltado para o universo do gênero musical denominado “rock”, consagrado mundialmente a partir dos Estados Unidos, no final dos anos 50. Dito isto, creio ser necessário alguns comentários. O primeiro, diz respeito ao próprio termo (“rock”), que pode sugerir uma idéia muito vaga do objeto analisado. Atualmente falar em gêneros musicais, requer alguns cuidados, devido a uma gama considerável de estilos e subdivisões “criados” pela indústria cultural. E provavelmente o rock se inclui entre os gêneros possuidores do maior número de estilos ou divisões. Ouvimos falar em “rock progressivo”, “punk rock”, “rock pesado”, “soft rock”, entre outros tantos, que qualquer definição pode soar, a priori, imprecisa. Situar brevemente o surgimento deste gênero musical em seu contexto histórico, destacando alguns elementos, pode contribuir para atenuar estas imprecisões.

Desde sua origem afro-americana, no blues negro interpretado pelos descendentes de escravos na América do Norte(2), ao período áureo nos anos 60 e 70, o rock pode ser definido como um fenômeno exclusivo dos grandes públicos, ou seja, das massas. Falar do surgimento do rock é falar também em blues. Mas se o rock nasce como uma expressão da alegria juvenil nos anos do pós-guerra, o blues tem origem na dor infligida ao corpo e à alma de populações negras trazidas à força para as plantações do sul dos Estados Unidos. Gérard Herzhaft, em seu livro intitulado Blues, diz a respeito de uma definição para o gênero: “Uma definição completa e exata do blues é difícil, pois se ele é (...) um gênero musical, foi também muito mais que isso para o povo negro americano que o criou.”(1989, p.11) E cita um trecho de uma canção antiga, “Walkin’ blues”: “Alguns lhe dirão que este blues atormentado não é tão terrível, mas é o pior sentimento que um homem pode jamais experimentar.”(Idem, p.12), para então falar sobre o primeiro registro do termo:

É no diário de Charlotte Forten [A free negro in the slave era, Nova Iorque, Mac Millan, 1961] que aparece pela primeira vez o termo “blues”. Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha estudado e se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de Maryland, decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito Island, na Carolina do Sul e aí morou de 1862 a 1865. Ela manteve um relatório quase que diário desses anos, notando, sobretudo as dificuldades de toda ordem que encontrava em suas obrigações. No domingo de 14 de dezembro de 1862 escreveu, transtornada pelos gritos que subiam dos bairros dos escravos: ‘Voltei da igreja com o blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável.’ (Ibidem, p.15)

O blues enquanto gênero musical será a expressão maior deste sentimento de tristeza registrado no diário de Charlotte Forten. E a indústria fonográfica dos anos 20, ávida por lançar sucessos para um mercado cada vez mais promissor, não demoraria a prestar atenção em um número cada vez maior de negros que empunhavam banjos e guitarras acústicas, fazendo sucesso em bares e ruas de Chicago e do Harlem. Entoando canções impregnadas de tristeza, estes artistas traziam experiências próprias que, colocadas como manifestação musical, logo encontraram um público fiel entre indivíduos com histórias semelhantes. Muitos deles ex-escravos ou descendentes.

O rápido desenvolvimento do mercado de gramofones portáteis e, portanto, do mercado de discos, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, levou as companhias de discos americanas – Victor, Decca, Columbia, Paramount, Okeh – que possuíam estúdios em algumas cidades grandes do Norte a tentar ampliar sua produção, até então reservada aos amadores de música clássica e popular. (...) O diretor de orquestra negro Perry Bradford, certo de encontrar um importante público local para discos desse gênero, conseguiu vencer as reticências (gravar com um artista negro) do produtor de discos Okeh Fred Hager, e uma cantora local popular, Mamie Smith, entrava nos estúdios nova-iorquinos, em 1920, para gravar. Crazy blues, gravado nesse dia, não somente teve um sucesso enorme em Nova Iorque como, para surpresa de Hager e provavelmente de Bradford, também e principalmente entre os negros do Sul, cujos gramofones comprados por correspondência esperavam desesperadamente um disco que fosse próximo, de uma forma ou de outra, de sua música habitual: o blues. (Idem, pp.31-32)

Posteriormente, com a introdução da guitarra elétrica nas bandas de blues, o gênero foi dando origem a novos estilos, onde a tristeza era deixada um pouco de lado. O jump band jazz(3) e o rhythm blues(4) são alguns exemplos, e dariam passagem para um novo gênero, que, a princípio dominado por artistas negros, logo receberia a contribuição de músicos brancos. Este gênero iria ficar conhecido como rock and roll, e coincidiria com um período de efervescência do consumo nos países capitalistas. As letras tristes do blues, populares à época da Depressão, dariam lugar ao convite à diversão:

O que importava para os jovens americanos era a diversão. Pela primeira vez, muitos adolescentes não tinham que trabalhar para ajudar suas famílias. Além da escola, estes jovens tinham poucas responsabilidades incômodas, e, com o advento da ajuda de custo eles adquiriam um poder de compra maior. Reconhecendo a existência de um novo grupo de consumo, empresários americanos correram para preencher este filão, provendo-o de itens ‘essenciais’ como roupas, cosméticos, fast food, carros – e música. Os adolescentes demonstraram ser um grupo de consumo extremamente maleável, gastando seu dinheiro de forma previsível. (Friedlander,2003, p.38)

Assim como em relação ao blues, a indústria fonográfica logo investirá em músicos do novo gênero que surgia, e que de imediato receberia atenção da juventude, ávida por diversão. Fats Domino, Chuck Berry, Little Richards, entre outros, serão os líderes deste movimento musical, que assim como atraíam os jovens, causavam repulsa nos cidadãos conservadores. Estes não escondiam a insatisfação diante do sucesso de artistas negros dançando sensualmente para um público formado em sua grande maioria pela juventude branca. Não à toa, a indústria fonográfica conduziria muitas destas carreiras como se preparasse o terreno para um artista que pudesse ser aceito pelos pais de família incomodados àquela altura com imagens das simulações de Little Richards fazendo sexo com seu piano. Este artista será Elvis Presley.

Elvis Presley foi um garoto branco e pobre do norte do Mississipi que viveu o sonho americano. Em um momento ele estava cantando em um show de talentos da escola; no outro estava aparecendo em cadeia nacional de televisão. Em um momento, ele estava dedilhando seu violão na lanchonete da escola; no outro estava gravando em Nashville com os melhores músicos que o dinheiro poderia comprar. (Idem: p.68)

A carreira de Elvis será conduzida de forma a agradar estes setores conservadores: ele manterá a imagem de um jovem de família, sempre aparecendo ao lado dos pais, e prestará serviço militar no auge da carreira, numa demonstração (planejada pelo empresário) de patriotismo que só serviria para aumentar seu séqüito de fãs, neste período obrigados a matar as saudades com a série de longas-metragens estrelados pelo ídolo. Todos filmados para serem exibidos enquanto o cantor servia na Alemanha. Mesmo com estes cuidados, a ala conservadora da sociedade norte-americana não hesitou em se mostrar incomodada com o rebolado de Elvis, o que obrigaria os canais de televisão a mostrá-lo apenas da cintura para cima.

Tal situação serve para mostrar como rock e polêmica foram parceiros inseparáveis desde os primórdios. Durante os anos seguintes esta ligação ganharia contornos cada vez mais amplos: bebedeiras, destruição de quartos de hotéis, acidentes automobilísticos, prisão por porte de drogas, brigas conjugais, overdoses, tumultos em apresentações, são todas situações que, exploradas pela indústria cultural, ficaram como uma marca registrada deste gênero musical. O uso de drogas passou a ser uma das categorias mais associadas à imagem do músico de rock. A banda inglesa Rolling Stones, que surge nos anos 60 como uma alternativa mal comportada aos Beatles, dará talvez a maior contribuição na construção desta imagem do roqueiro “cabeludo”, “sujo” e “drogado”. As freqüentes prisões por posse de drogas, a morte misteriosa de Brian Jones(5), o guitarrista que disputava com o cantor Mick Jagger a liderança do grupo, e uma declarada atração por temas satânicos, serão o combustível essencial nesta construção, que servirá como modelo para inúmeras trajetórias de artistas deste gênero musical(6). O surgimento de uma leva de artistas de São Francisco, também nos anos 60, acrescentaria os elementos finais a esta imagem do artista roqueiro mantida até hoje, também estabelecendo o discurso midiático que ligaria o músico a algum lugar(7). Janis Joplin, Jefferson Airplane, Grateful Dead, entre outros, explorariam ao máximo esta união de música com o uso de drogas. As mortes por overdose, neste momento, passam a fazer parte deste universo.

Ainda que o rock tenha nascido como um veículo de diversão, e com o tempo dado origem a tantos estilos diferentes, este não será um assunto tratado nestas páginas. A vertente enfatizada neste trabalho será a do lado mais transgressor deste gênero musical, onde a morte parece caminhar lado a lado com os artistas. Dito em outras palavras: o rock aqui analisado nada tem de divertido.

Tendo feito esta observação, creio ser necessário destacar mais dois pontos, para que não pairem dúvidas a respeito desta análise. O primeiro é bem simples: em nenhum momento estarei preocupado com discussões a respeito da qualidade ou não da obra dos artistas aqui enfatizados. Quando houver a necessidade de me referir a qualquer trabalho por eles realizado, será no intuito apenas de explicitar uma argumentação de cunho teórico. E o segundo ponto diz respeito aos artistas escolhidos para a exposição dos elementos constituintes do processo de mitificação. Estes artistas são o músico norte-americano Kurt Cobain, líder da banda Nirvana, e o compositor e cantor brasileiro Renato Russo: ambos precocemente mortos(8), e com trajetórias que possuem os ingredientes que os colocam como representantes da imagem de roqueiro citada, além de os alçar a categorias de protagonistas de seus próprios mitos(9). Pensar o processo de “construção” da trajetória destes artistas como um modelo de mito urbano da sociedade pós-industrial é o objetivo deste trabalho. Para isso é importante uma revisão das análises sobre indústria cultural e mitologia, o que será feito a seguir.

A indústria cultural:
idéias precursoras

O conceito de indústria cultural, elaborado por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer e empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento), de 1947, foi criado com o intuito de rebater um outro conceito, o de cultura de massas. Para os autores haveria limitações gritantes neste último, que deixava entendido um caráter de espontaneidade às próprias massas, como se elas possuíssem algum domínio ou participação ativa no processo. Em um texto posterior, intitulado “A indústria cultural”, Adorno procura evidenciar esta posição, destacando a impossibilidade das massas desempenharem tal papel, diante da força com que se movem os interesses capitalistas por trás de toda produção cultural. Seria o produto, anteriormente adaptado ao consumo das massas, que passaria agora a determinar este consumo. Inverte-se a antiga situação, o que não significa que a indústria cultural passa a criar novas necessidades, mas sim que se incumbe de organizá-las, de modo a manter o consumidor aprisionado eternamente a esta condição. Adorno identifica na sociedade pós-industrial um processo de padronização no consumo, nos gostos, nas preferências, onde tudo é engolido pelo caráter da mercadoria. Não é que um disco ou um livro, quando concluídos, transformam-se em mercadoria - eles já nascem mercadorias, sua existência está vinculada exclusivamente a este fato. E deve-se levar em consideração, lembra o autor, o termo “indústria” não apenas em seu sentido literal, mas em seus aspectos relacionados à estandardização e à racionalização das técnicas de distribuição. Cada mercadoria cultural é projetada, elaborada e direcionada a um público específico, que a ele chega como uma grande novidade:

O que na indústria cultural se apresenta como um progresso, o insistentemente novo que ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a mudança de indumentária de um sempre semelhante; em toda parte a mudança encobre um esqueleto no qual houve tão poucas mudanças como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou ascendência sobre a cultura. (1982, p.24)

Em um mundo pretensamente caótico a indústria cultural seria vista pelos seus representantes como um importante fator de ordem. Através de produtos que pregam a liberdade e o indivíduo como alguém capaz de adquirir o que deseja, fica estabelecida a vitória do conformismo diante da consciência. Como, de acordo com Adorno, seria a formação de indivíduos autônomos a condição elementar para a constituição de uma sociedade democrática, a indústria cultural se afirma enquanto instrumento das classes dirigentes, que têm como maior desejo justamente manter as multidões sempre condicionadas, portanto, incapazes de modificar sua realidade. A ordem social se mantém, e todos os gostos, sejam eles no vestuário, no esporte, na música, em qualquer manifestação cultural, já se encontram previamente relacionados a uma decisão vinda de cima.

Adorno dá uma atenção especial para as manifestações musicais, e o gênero tomado como objeto de análise será o jazz, que conquistava adeptos na Europa e nos Estados Unidos no início dos anos 50. Sua visão quanto ao que assistiu é clara, e nem o caráter de improviso tão enfatizado pelos admiradores daquela música como o seu grande diferencial, escaparia do processo de homogeneização promovido por uma indústria cultural que tem na erradicação das diferenças um de seus principais objetivos:

O jazz é uma música que combina a mais simples estrutura formal, melódica, harmônica e métrica com um decurso musical constituído basicamente por sincopas de certo modo perturbadoras, sem que isso afete jamais a obstinada uniformidade do ritmo quartenário básico, que se mantém sempre idêntico. (...) O jazz não é mais composto, apenas frisa a música leve, os produtos mais desoladores da indústria de hits musicais. Os fanáticos – nos Estados Unidos eles se chamam fans – percebem isso com clareza, preferindo invocar os aspectos de improvisação da execução jazzística. Mas essas improvisações são meros embustes. Qualquer adolescente precoce nos Estados Unidos sabe que a rotina hoje em dia não deixa mais espaço para a improvisação e o que aparece como sendo espontâneo foi estudado cuidadosamente, com precisão maquinal. (1998, pp.117-119)

A análise de outros autores não seria menos amarga que a de Adorno. Robert Merton e Paul Lazarsfeld, ambos da escola sociológica norte-americana, escrevendo praticamente no mesmo momento que os frankfurtianos, também não viam a chamada indústria cultural com bons olhos. Autores de tradição funcionalista, Merton e Lazarseld, no texto “Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social”, de 1948, utilizam-se do termo mass media, para denominar o que seria o produto desta indústria cultural. Pesquisas que procuravam quantificar o número de pessoas que gastavam seu tempo com determinados meios de comunicação de massa, como o rádio, por exemplo, no entendimento deles teriam pouca importância. Não se tratava de saber quantas pessoas estavam ouvindo programas radiofônicos na hora de almoço, mas sim descobrir os efeitos de tal audição nestas pessoas. E este era um fenômeno de grande alcance na sociedade norte-americana, cada vez mais industrializada:
É evidente que os mass media atingem uma vasta platéia. Aproximadamente 70 milhões de americanos vão semanalmente ao cinema; a circulação de nossos jornais diários é de mais ou menos 46 milhões de exemplares; aproximadamente 34 milhões de lares americanos possuem rádio, sendo que nestes, o americano médio o escuta durante umas três horas por dia. (1982, p.108)

Numa visão puramente elitista, Merton e Lazarsfeld demonstram neste trabalho todo seu preconceito contra manifestações de cunho popular, que conquistariam gradualmente maior espaço através dos meios de comunicação. E vão atribuir a má qualidade das produções ao acesso crescente das camadas populares a setores que antes lhes eram proibidos. O processo de popularização da educação, que consegue alfabetizar um número elevado de pessoas, não daria conta de “refinar” seus gostos. Este indivíduo alfabetizado, segundo estes autores, seria capaz de ler um romance até o final, no entanto, sem compreendê-lo. O surgimento desta massa ávida por produtos culturais, ou os mass media, culminaria num declínio cada vez maior do gosto popular. “As platéias de massa provavelmente incluem uma proporção maior de pessoas com padrões estéticos desenvolvidos, porém ela é tragada pela grande massa que constitui a nova e inculta platéia de arte” (Idem, p.111).

Ainda que haja diferenças na linha que conduz o pensamento dos autores acima citados, penso que a forma com que ambos descrevem o processo de expansão das manifestações culturais, seja através dos conceitos “indústria cultural” ou “mass media” carregam consigo um grande teor de pessimismo. Se destacarmos a massa vista por Adorno como um objeto das grandes empresas, jamais como um sujeito do processo, e a massa analisada por Merton e Lazarsfeld, grande motivadora da queda do nível das produções culturais, portanto, ausente de senso crítico, incapaz de ação modificadora, esta também emerge com força em um objeto inerte. É óbvio que não podemos deixar de lado o contexto em que as obras destes autores foram elaboradas, principalmente Adorno e Horkheimer, que como outros companheiros da Escola de Frankfurt, viram-se forçados ao exílio nos Estados Unidos para escapar às forças nazistas de Hitler. É como diz Renato Ortiz: “o pessimismo frankfurtiano se liga, de algum modo, à conjuntura política dos anos 30. A presença do fascismo influi no tom da análise”(1986:44)(10). E Merton e Lazarsfeld, ansiosos por definirem as conseqüências sociais dos mass media, pressupõem que a sociedade como um todo tenha a necessidade, consciente, de ser politicamente ativa, daí atribuírem a estes (os mass media) a manutenção da massa inerte e alienada.

Considerado um dos expoentes da Escola de Frankfurt, assim como Adorno e Horkheimer, Walter Benjamin já não teria uma visão tão negativa em relação à indústria cultural. Sua análise, de certa forma, vai em sentido contrário à de seus companheiros, e ele não teria hesitado, por exemplo, em dar sua contribuição a jornais e programas de rádio(11), tratando de temas os mais variados. Benjamin via o alcance às produções culturais por parte das camadas populares como algo positivo e democrático. Edvaldo Souza Couto, em seu artigo “A Escola de Frankfurt e a dupla face da cultura” diz que:

[O] grande feito da indústria é acabar com a arte restrita, dirigida a um pequeno público de privilegiados. Com as cópias, a reprodução em série de objetos e formas de arte, a indústria exige a contemplação coletiva.(...) Em Benjamin essa nova condição do artista e das obras nada tem de pessimista. Ele chega mesmo a dizer que a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade, quanto menos o original for o centro. (1995, p.64)

Na análise de Benjamin, a obra de arte, com o processo de dominação tecnológica, perderia sua função ritual, predominando agora o caráter de algo a ser exposto. Antes relegada ao interior dos templos e igrejas, a escultura dos deuses e santos ganha espaço na sala de visitas. “À medida que as obras de arte se emancipam de seu uso ritual, tornam-se mais numerosas as ocasiões de serem expostas” (1982, p.219). Ao contrário de Adorno, Benjamin vê este processo como um sinal de ampliação dos ideais democráticos: “a técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar. Sob a forma de foto ou de disco, ela permite sobretudo aproximar a obra do espectador e do ouvinte.” (Idem, p.213) Não se trata de afirmar que o fenômeno da reprodutibilidade imprimiu à obra de arte o caráter de mercadoria, mas que ele apenas expandiu o seu mercado, antes restrito ao clero e à burguesia. A arte, portanto, passa a ser acessível a um número cada vez maior de pessoas; o que era elitista converte-se em popular. E este processo, na visão de Benjamin, era irreversível.

Considerando a possibilidade de trabalhar com os mass media, Umberto Eco irá discordar da corrente de pensamento a qual denomina “apocalíptica” (os frankfurtianos seriam os principais representantes desta corrente), que veria tais produtos como material degradado. A questão para Eco não era posicionar-se de um lado ou de outro (daí o título de seu livro Apocalípticos e integrados): os mass media, quer se queira ou não, eram uma realidade inerente à sociedade pós-industrial, e sendo assim, nenhum fenômeno poderia ser excluído como objeto de análise, dentro da antiga dicotomia “erudito” e “popular”:

O universo das comunicações de massa é – reconheçamo-lo ou não – o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas formas de comunicação visual e auditiva. (1979, p.11)

E completando, Eco dirá que “o sistema de condicionamentos denominado indústria cultural não apresenta a cômoda possibilidade de dois níveis independentes, um da comunicação de massa, outro da elaboração aristocrática que a precede sem ser por ela condicionada. (Idem: p.15). O indivíduo em sua análise não seria aquele ser inerte de Adorno e Horkheimer, mas alguém que irá exercer um papel de co-responsável em todo este processo. “Essas massas impuseram um ethos próprio, fizeram valer, em diversos períodos históricos, exigências particulares, puseram em circulação uma linguagem própria, isto é, elaboraram propostas saídas de baixo”(Ibidem, p.24) Ainda que os modelos culturais adotados pelas massas sejam os modelos burgueses, serão estes mantidos dentro de uma “expressão autônoma própria”. Eco sugere para lidar com tal situação o termo “civilização de massa”, onde o indivíduo seria um consumidor ativo de mensagens transmitidas pelas produções culturais em um movimento para lá de intenso, sempre determinado pelas leis da oferta e da procura.

É evidente que dos tempos em que estes autores realizaram suas análises, aos dias de hoje, muita coisa mudou. Ainda que a indústria cultural, no sentido de Adorno, continue a exercer um papel ativo na padronização das mentes da grande maioria dos grupos sociais(12), outros campos se abriram para a realização de produtos culturais. A possibilidade de um artista, hoje, ter o próprio estúdio em seu apartamento, produzir e comercializar seus cds via internet, rompendo com uma antiga relação - produtor, empresário, contrato, gravadora, etc – seria algo impensável décadas atrás. O fenômeno da troca de músicas em formato de arquivos eletrônicos, também via internet, é o atual fantasma a assombrar as grandes empresas do ramo. E, assim como Benjamin já previa em relação à reprodutibilidade das obras de arte, este também parece ser um fenômeno irreversível, de caráter altamente democrático, que abre a um grande número de pessoas um universo de produções antes praticamente inacessíveis(13). No entanto, é importante frisar que estes fenômenos não representam uma diminuição do poder da indústria cultural, pois se tratam, sim, de desdobramentos de um modelo que ainda não deu sinais de dobrar os joelhos. E que continua atendendo, de maneira inequívoca, às necessidades dos grupos sociais, em seus múltiplos aspectos.

A morte no auge:
O mito do herói roqueiro


No dia 9 de abril de 1994, os jornais noticiaram a morte de Kurt Cobain, líder da banda americana Nirvana, considerado por grande parte da crítica o último grande ídolo do rock, gênero musical por excelência da rebeldia adolescente. O jornal “O Globo” dizia em sua matéria que

Kurt Cobain sempre tentou repudiar a mitificação, mas agora não tem retorno: o rock ganhou mais um mártir. O corpo do vocalista e guitarrista do Nirvana, de 27 anos, foi encontrado ontem em sua casa em Seattle com um tiro na cabeça. Segundo o porta-voz da polícia local, Vinette Tichi, Cobain se suicidou há cerca de três dias, o que dificultou o reconhecimento do corpo, descoberto por um eletricista que ia fazer consertos na casa do músico. Junto a Cobain foi encontrado um bilhete, cujo conteúdo não foi divulgado.

Vale recordar que Cobain havia se apresentado no Brasil (em São Paulo e no Rio de Janeiro) em janeiro de 1993, no Hollywood Rock Festival. Durante a entrevista dada pelo artista à época, ao jornal citado, era visível seu estado de saúde precário: “calafrios em pleno verão carioca provocados por crise de privação da heroína”, dizia a matéria. A pergunta que a mídia brasileira fez a alguns de nossos artistas após a notícia do suicídio era se Cobain poderia ser considerado um mito, se ele entraria para a história, assim como outros artistas, também mortos em circunstâncias trágicas. No mundo do rock, claro, unanimidade nunca foi a tônica. Alguns diziam acreditar na dimensão da obra de Cobain, prevendo um capítulo reservado ao músico na história do gênero. Outros não enxergavam tal relevância, criticando o espaço dado à questão. Gostaria de destacar uma entre tantas opiniões para dar prosseguimento a este texto: a de Léo Jaime, compositor de antigos sucessos e atualmente dedicado à carreira jornalística. Léo Jaime dizia que “Cobain, Hendrix, Janis Joplin não são mitos. Apenas artistas bem-sucedidos que morreram cedo. Lennon era um mito, deixou uma obra completa.” Penso que esta resposta é um excelente ponto de partida para discutirmos a questão do mito na sociedade moderna ocidental.

A indústria cultural deu ao termo “mito” características diferentes das que costumamos encontrar nos textos de ciências sociais. Seu discurso, quando enfatiza o mito, apresenta-o de duas maneiras: como um indivíduo, alguém com existência própria, que devido ao valor de sua obra, extrapolou os espaços do seu universo de atuação (é neste sentido que ouvimos falar em Pelé como um mito do futebol, rosto conhecido em todo o mundo); ou como uma farsa, algo que a ciência, no seu tempo certo, demonstrará não possuir fundamento (é o caso quando ouvimos falar “a história que a cerveja cria barriga é um mito”, ou “comer manga e beber leite faz mal”). Quantas vezes não assistimos, nos programas dominicais, notícias dizendo que a ciência pôs fim a mais um mito? Ou seja, derrubou mais uma mentira, uma crendice. E aquela afirmativa: Fulano é um mito, uma lenda viva? Seria válido, como nos ensina Junito de Souza Brandão, que começássemos a pensar nestes elementos, seja o indivíduo ou a crendice, como elementos de um mito específico. Ou seja, Cobain, assim como tantos outros artistas mortos em circunstâncias trágicas, poderiam ser considerados protagonistas fazendo parte do seu próprio mito. E suas trajetórias são todas “apresentadas” de forma a que seu público os veja como autênticos heróis. E o “herói” necessita de certos requisitos básicos para ser considerado como tal.

Esta categoria assume papel de extrema importância na construção dos mitos da sociedade pós-industrial. Natalie Heinich, em The glory of Van Gogh, analisa o processo de mitificação em torno do pintor holandês Vincent Van Gogh, e identifica três modelos que emergem das produções da indústria cultural. Estes modelos seriam: o do “santo” o do “gênio”, e o do “herói”. Heinich chama atenção para os elementos que sempre receberão destaque nas biografias de Van Gogh, e que recontados, tornarão sua trajetória semelhante à de um santo. A idéia de um chamado, de uma vocação para a profissão; o isolamento auto-imposto; a marginalidade; a despreocupação quanto à aparência e a extrema pobreza serão alguns destes elementos, também comumente encontrados nas chamadas hagiografias. Tais modelos, Heinich faz questão de lembrar, não são rígidos a ponto de representarem uma unidade cerrada em torno de um indivíduo; pelo contrário, seria muito mais comum que nestas trajetórias recontadas, no mínimo dois, senão os três modelos fossem encontrados. Neste sentido, Van Gogh não deixaria também de ser relembrado como um gênio da pintura, um artista à frente de seu tempo; e como um herói em luta por uma causa que o ultrapassa, sua própria arte.

Drawing both on admiration for the man and admiration for the work, the celebration of van Gogh also links the Christian tradition of sanctifying martyrs to a broader (and not necessarily religious) tradition of heroizing great singular figures. We can now integrate the analysis of forms of celebration into a more general model, which encompasses artistic and religious greatness. An anthropology of admiration can only profit from establishing parallels between the “saint” of Christian history, the “genius” of cultural history, and the “hero” of Antiquity or political history, with their common features (such as the necessary presence of a companion by the side of the Christian saint or epic hero) and their specific characteristics (the saint, for example, must have a real historical existence). (1996, p.71)

Junito de Souza Brandão em Mitologia grega analisa o mito do herói grego e dá uma definição em que destaca elementos que servem na elaboração de um modelo:

Virtualmente, todo herói é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; o herói é, além do mais, ancestral de grupos consangüíneos e representante protótipo de certas atividades humanas fundamentais e primordiais. Todas essas características demonstram sua natureza sobre-humana, enquanto de outro lado, a personagem pode aparecer como um ser monstruoso, com gigante ou anão (...), voltado para a violência sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o sacrilégio e para a transgressão dos limites e medidas que os deuses não permitem sejam ultrapassados pelos mortais. E, embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início é ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico. (2001, p.19)

Encontra-se com facilidade no modelo acima, elementos que se encaixariam perfeitamente na figura do ídolo de rock da sociedade pós-industrial. Sua condição sobre-humana, por exemplo, tão alardeada pela mídia: não existe a preocupação em saber se tudo o que é dito a respeito do ídolo tem relação ou não com a realidade. Feitos simplórios do dia a dia ganham dimensões de grandes descobertas. Em biografias de músicos, por exemplo, é comum encontrar relatos chamando atenção para a pouca idade com que aprenderam a tocar seus respectivos instrumentos: “Quando [Kurt Cobain] estava com quatro anos, depois de voltar de um passeio até o parque com Meri, [uma tia] sentou-se ao piano e fez uma canção rudimentar sobre a aventura. ‘Fiquei simplesmente atônita’, lembrou Meri. ‘Eu devia ter ligado o gravador, provavelmente foi sua primeira canção’.”(Cross, 2002, p.18) Relatos como esse têm espaço em praticamente todas as biografias publicadas sobre artistas, onde se destacam também a pouca atenção dos próximos diante da “genialidade precoce”, o sofrimento familiar, a luta para chegar à sua condição de ídolo. Figuras transgressoras, como o herói grego, a elas quase tudo é permitido: do abuso de drogas às orgias sexuais, dos acidentes de carro por excesso de velocidade a agressões aos próprios fãs. Trajetória de contrastes: sucesso na vida pública, fracasso na vida privada. A felicidade nas relações pessoais geralmente não é enfatizada pela indústria cultural, e ainda que isso aconteça, seu espaço é sempre reduzido diante de dramas familiares, amorosos, do próprio contato com as drogas. Nesta reedição da vida dos artistas, é fácil perceber que os elementos destacados não variam muito.

Pensar a idéia de mito nos centros urbanos já foi tarefa de alguns autores. Umberto Eco, autor já citado anteriormente, analisou o consumo de revistas de histórias em quadrinhos, e mostrou como o processo de identificação do público com determinados super-heróis pode atingir contornos de veneração explícita. Em “O mito de Superman” Eco define o processo de mitificação como uma “simbolização incônscia, identificação do objeto com uma soma de finalidades nem sempre racionalizáveis, projeção na imagem de tendências, aspirações e temores particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda uma época histórica”(1979, p.239). Os super-heróis representariam, dentro desta perspectiva, os anseios do “leitor médio”, o indivíduo comum que almeja um dia ter os seus sonhos realizados. No cotidiano, Clark Kent; nos sonhos, Superman.

Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação (...) nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes de sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade. (1979, p.248)

São os ídolos da sociedade pós-industrial então vistos como heróis, deuses ou semideuses. Edgar Morin, analisando o processo de construção dos mitos de Hollywood em As estrelas – mito e sedução no cinema, define o mito numa linha parecida:

Um mito é o conjunto de condutas e situações imaginárias. Essas condutas e situações podem ter por protagonistas personagens sobre-humanas, heróis ou deuses; diz-se então o mito de Hércules, ou de Apolo. E com toda exatidão, Hércules é um herói, e Apolo, deus, de seus mitos. (1989, p.26) [Os grifos são meus]
Assim como Eco, Morin destaca o papel dos anseios individuais e coletivos na idolatria aos artistas cinematográficos. As estrelas de cinema, “heroicizadas, divinizadas, (...) são mais do que objetos de admiração. São também motivo de culto. Constitui ao seu redor um embrião de religião” (Idem, p.50) Atento ao papel da juventude neste processo, Morin reconhece em James Dean o modelo do herói adolescente que, uma vez morto, renascerá mais tarde no rock.
A morte realiza o destino de todo herói mitológico, afirmando sua dupla natureza, humana e divina. A morte completa a profunda humanidade do herói – lutar heroicamente contra o mundo, enfrentar heroicamente uma morte que acabará por abatê-lo. Ao mesmo tempo, a morte completa o herói em sua natureza sobre-humana, divinizando-o à medida que lhe abre as portas da imortalidade.(Ibidem, p.117)

James Dean inaugurou a era dos heróis da adolescência moderna. Mas a adolescência – que finalmente encontra em James Dean sua expressão própria na tela do cinema – irá, justamente a partir dessa tomada de consciência, dissociar-se culturalmente do cinema. A cultura adolescente, que opera sua primeira cristalização a partir dos filmes de James Dean, irá fixar o seu meio essencial de expressão na cultura não no cinema, mas no rock, na música, na dança.(Ibidem, p.120)

A morte trágica de Dean o alça ao grupo seleto dos imortais, personagens únicos da sociedade pós-industrial. Mas algo chama atenção: ele era “pouco mais do que um garoto ao morrer, aos 24 anos, em uma auto-estrada perto de Paso Robles, na Califórnia, em 30 de setembro de 1955. Até sua morte, fizera três filmes – Vidas amargas, Juventude transviada e Assim caminha a humanidade, e apenas o primeiro deles havia sido lançado”. (Martinetti, 1995, p.11). Como pode um ator, morto aos 24 anos e tendo feito apenas três filmes em sua breve carreira, ser lembrado com tanta veneração até os dias de hoje? Raphael Patai em sua obra O mito e o homem moderno, faz uma análise reunindo vários mitos, como Hércules, Mickey Mouse, Che Guevara e, claro, James Dean. Nestes dois últimos, o elemento da morte precoce surge como possível resposta:

Quando a morte do herói ocorre no princípio da vida, as probabilidades da sua conversão em mito são acentuadas; se ele morrer de morte violenta, se o desenlace for cercado de circunstâncias insólitas, ou se tudo indicar que ele procurou ou aceitou a morte por amor a um ideal, a probabilidade da sua transformação em mito passa a ser considerável. Se, retrospectivamente, a sua vida puder ser interpretada como tendo tido um tema central penetrante, que seduz os sobreviventes, o mito está assegurado. (1972, p.110)

Seria neste sentido, inverter a ordem biológica: morrer para continuar vivendo. O ator Humprhey Bogart uma vez disse a respeito de James Dean: “Dean morreu na hora certa. Ele deixou para trás um mito. Se não tivesse morrido, nunca teria sido capaz de viver à altura de sua imagem”(Martinetti, 1995, p.12). Impossível saber se determinados artistas continuariam desfrutando de popularidade se ainda fossem vivos. Porém, não resta dúvida de que a morte exerce um papel determinante no processo de mitificação conduzido pela indústria cultural(14). Uma vez que não há registro de determinadas situações sempre lembradas como grandes feitos do artista idolatrado, o que é dito assume caráter de realidade, independente de ter acontecido ou não.

[Dean] parecia ser um imitador nato. Na escola, com um pouco de incentivo dos amigos, ele fazia imitações, rapidamente, de diversos professores; certa vez, quando estava imitando o diretor da escola, o homem apareceu e o escutou por acaso. Supostamente, ele ficou tão divertido com o talento do rapaz que foi incapaz de puni-lo. Talvez seja verdade. (Idem, p.22) [Os grifos são meus}

São histórias contadas por quem, de uma forma ou de outra, conviveu com o ídolo, ainda que apenas como um sonho não realizado. E tais histórias são transmitidas como se tivessem vida própria. Vão de um lado a outro, “editadas” pela indústria cultural e pelos próprios fãs. Claude Lévi-Strauss trabalhará com esta idéia do mito que é contado através dos grupos sociais, e considerará a “história narrada” a base essencial de todos os mitos.

Seja qual for a nossa ignorância da língua e da cultura da população onde foi recolhido, o mito é apreendido como mito por qualquer leitor, no mundo inteiro. A substância do mito não se encontra no estilo, nem no modo da narração, nem na sintaxe, mas na história que nele é narrada. O mito é linguagem; mas uma linguagem que trabalha a um nível muito elevado, e em que o sentido consegue, se se pode assim dizer, descolar-se do fundamento lingüístico sobre o qual começou a se mover. (p.210) [Os grifos são meus]

O autor também atenta, em El hombre desnudo, o último volume de sua obra Mitológicas, para o fato da origem do mito se dar em um nível individual, mas que para condicionar-se enquanto tal, este nível deve ser ultrapassado:

(...) todo mito debe, en última instancia, tener su origen en una creación individual. Esto es verdad sin duda, pero, para pasar al estado de mito, es preciso justamente que una creación no se quede en individual y pierda, en el curso de esta promoción, lo esencial dos factores debidos a la probabilidad que la compenetraban al comienzo y atribuibles al temperamento, al talento, a la imaginación y a las experiencias personales de su autor. (1976, p.566)

O mito, portanto, sobrepõe-se a atributos individuais, e torna-se independente, para sua condição, do elemento original. Não importa onde ou como se iniciou, mas sim que ele não se prende mais a um lugar ou tempo originais. É neste sentido que Lévi-Strauss dirá que “todo mito é por natureza uma tradução” (Idem, p.582), importando sempre reconhecer que a história narrada pelo mito não pode ser tomada por partes, ou lidas como um artigo de jornal ou revista.

Se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja, linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à seqüência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos distintos da História. (1978, p.68) [Os grifos são meus]

Lévi-Strauss conseguiu, num espaço de vinte anos, recolher narrativas míticas de várias partes do mundo, narrativas estas já consolidadas na tradição de suas populações, que contam histórias de um período distante. Na sociedade pós-industrial uma análise mitológica não poderia ser muito diferente, não havendo como pensar o mito no exato momento em que os fatos transcorrem. Pode-se, no máximo, vislumbrar uma potencialidade, que só o tempo se incumbirá de confirmar.

Inconclusão

Estudar detalhadamente todos os elementos deste processo de mitificação seria, portanto, um caminho para compreender os motivos pelos quais continuamos até hoje consumindo produtos de determinados artistas mortos há décadas, enquanto a outros reservamos o esquecimento. O que faz certos artistas continuarem despertando interesse até hoje? Por que alguns cantores têm “direito” a programas especiais de televisão, reportagens, publicações e biografias, enquanto muitos, sequer são lembrados, seja pelo público ou pela indústria cultural? Por que uma coletânea dos Beatles, com músicas para lá de conhecidas, quando lançada, fica semanas como o álbum mais vendido? O que faz com que adolescentes nas grandes cidades brasileiras adorem desfilar com camisetas estampando o rosto de Renato Russo, se enquanto este artista vivia o auge do seu sucesso estes mesmos adolescentes eram ainda embalados no colo por seus pais? O discurso em favor da qualidade da obra, assim como um possível favorecimento da indústria cultural, não parecem ser explicações satisfatórias. É notório o fato de que entre um sem número de artistas esquecidos na história, existem exímios músicos, virtuoses de seus instrumentos ou vozes. Assim como muitos que tanto espaço tiveram na mídia, hoje enfrentam dificuldades na luta pela sobrevivência(15).

O grande sociólogo Norbert Elias diz ser esta uma das grandes questões não respondidas da sociedade pós-industrial:

Entre as mais interessantes perguntas não respondidas de nosso tempo está a que indaga quais características estruturais fazem as criações de uma determinada pessoa sobreviverem ao processo de seleção de uma série de gerações, sendo gradualmente absorvidas no padrão das obras de arte socialmente aceitas, enquanto as de outras pessoas caem no mundo sombrio das obras esquecidas. (1995, p.52)

Sendo o mito, como nos ensina Lévi-Strauss, o conjunto de todas as suas versões, está excluída a questão sobre se o que se narra seria verdade ou não. Creio ser este um dado fundamental para uma análise desta mitologia em torno de alguns artistas da sociedade pós-industrial, onde os veículos de comunicação de massa, a cada momento têm uma nova história a contar, de um caso que na maioria das vezes, nada possui de novo. Versões de uma mesma história, que passam de boca em boca através do público consumidor: afinal, Kurt Cobain realmente cometeu suicídio ou foi assassinado? Nos EUA, livros são publicados tentando provar que o músico teria sido assassinado a mando de sua esposa, Courtney Love. O detetive contratado por ela para localizar Cobain (que havia fugido de uma clínica para desintoxicação dias antes de sua morte) possui uma página na internet onde apresenta suas impressões do caso. Contrariando informações de médicos, afirma que seria impossível Cobain ter conseguido apertar o gatilho de sua arma, depois da dose de heroína que consumiu. Detalhe: o cantor era conhecido também pela sua impressionante capacidade de tomar doses cavalares de heroína. Médicos já mostraram casos de pessoas que tomaram o dobro da dose de Cobain e se comportavam normalmente. O detetive também insiste em que não havia impressões digitais na arma de Cobain, além do seu cartão de crédito ter sido utilizado no período em que ele já estava morto. O motivo para sua luta em provar tal teoria é curioso: encerrar a onda de suicídios entre jovens americanos e europeus, que teve início com a notícia da morte de Cobain.

Para a análise aqui proposta, não importa o motivo real da sua morte, mas sim, como e porque estas histórias são contadas, o que elas dizem a respeito dos grupos sociais pelos quais “se falam”. E não se deve cobrar dos mitos que tragam uma chave explicativa que corresponda à realidade dos fatos. Se todas estas histórias pudessem ser comprovadas, o mito, enquanto tal estaria anulado. Nesta lógica peculiar, mais vale pensar nas possibilidades de um fato ter acontecido como realmente é narrado, pois para o admirador não há nada mais frustrante que descobrir que seu ídolo pode ser um indivíduo com hábitos comuns. Não deixa de ser inesquecível a cena de inúmeros jovens desapontados, na noite de 19 de janeiro de 1985, ao fim da apresentação do cantor inglês Ozzy Osbourne, no Festival Rock in Rio. Além de não ter feito nada com uma galinha atirada viva no palco, Ozzy não cansou de repetir ao término das canções a frase “God bless you” (Deus abençoe vocês).(16)

Rio de Janeiro, 19.05.2004


RIO CONSTELAR - ESCOLA DE ASTROLOGIA

NOTAS:

1. Ainda que hoje em dia seja comum ouvirmos de alguns artistas ditos “independentes”, discursos contra o universo da indústria cultural (alguns grupos de rap, como Racionais Mcs, de São Paulo, por exemplo), tal prática será sempre conduzida, de alguma forma, por esta indústria. Negar-se como parte deste processo apenas serve como um elemento a mais na construção da sua trajetória, e tal fato não deixará de ser explorado pela indústria cultural.

2. “Em suas origens, o rock and roll era essencialmente uma música afro-americana. Os ritmos sincronizados, a voz rouca e sentimental e as vocalizações de chamado-e-resposta características dos trabalhadores negros eram parte da herança da música africana e tornaram-se os tijolos com os quais o rock and roll foi construído.”. In: Friendlander, P.Rock and roll – uma história social. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2003.

3. “O jump band jazz (…) emergiu no rastro do fim da era das grandes bandas no final da Segunda Guerra Mundial; um estilo animado com um conjunto formado por cinco ou seis instrumentos e um saxofone proeminente. O tamanho escondia seu poder; essa pequena banda de jazz fazia realmente dançar. A batida geralmente suingada e os solos de saxofone foram dois elementos que jovens músicos trouxeram do jazz para o R&B [rhythm blues]”. (Friendlander, 2003, p.34)

4. “A síntese musical do R&B consistia na formação básica das bandas de blues, complementada por um solista de sax-tenor do jazz. Como no jump band jazz, o importante era o swing. A influência do gospel, que enfatizava a base rítmica (...), marcadas principalmente pela bateria, criava um movimento corporal que estimulava os ouvintes.” (Idem)

5. Brian Jones era um jovem guitarrista que aos dezesseis anos já era pai de duas crianças de mães diferentes. Usuário de drogas e conhecido por suas crises de depressão, Jones apareceu morto, boiando na piscina de sua mansão. Boatos à época diziam ter sido um assassinato encomendado por Mick Jagger, mas a causa oficial da morte teria sido uma crise de asma, iniciada durante um mergulho, e que motivaria o afogamento.

6. Letras de músicas e insinuações de ligação com o satanismo, aliadas a toda uma performance incluindo desprezo por símbolos do cristianismo (A cruz de cabeça para baixo está sempre presente nos palcos e nas roupas destes artistas e de seus fãs) serão próprias de bandas inglesas do chamado rock pesado (hard rock ou heavy metal), e reforçarão a polêmica em torno do gênero, e a luta de entidades religiosas e conservadoras, que não cansarão de mover processos judiciais contra estes artistas.

7. Esta uma prática, a meu ver, das mais interessantes: a utilização do “lugar” como um elemento a mais na construção de trajetórias. Seattle seria um destes “lugares” nos anos 90, depois do sucesso de Kurt Cobain. Inúmeras bandas seriam reunidas como “o som de Seattle”, algo semelhante ao que aconteceu no Brasil, na década de 80, com o chamado “som de Brasília” (Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Plebe Rude, Capital Inicial, e tantos outros). (Este tema será analisado durante minha dissertação)

8. Esta escolha tem um caráter, de certa forma, metodológico: além de ter acompanhado atentamente a trajetória destes dois artistas (a do cantor brasileiro, claro, mais de perto), disponho de um razoável material para análise que inclui fitas de vídeo, entrevistas, livros, além de recortes de revistas e jornais.

9. O mito, visto como uma narrativa, requer elementos que o completem. O indivíduo idolatrado é o elemento essencial, mas que sozinho não tem sustentação: situações que o confirmem enquanto tal são os alicerces fundamentais na construção de sua estrutura mitológica.

10. Se pensarmos que no início do século XX o marxismo influenciava intelectuais e movimentos operários europeus, todos esperançosos de novos tempos, o surgimento do nazi-fascismo representava um golpe duro demais para ser absorvido. Não bastasse o sonho da sociedade socialista profetizada por Marx não ter se concretizado, o que se apresentava como realidade era o pior pesadelo para quem pregava o fim das desigualdades sociais: Auschwitz e Treblinka, e outras tantas fábricas de cadáveres.

11. “Do outono de 1928 à primavera de 1933, Benjamin passou a maior parte de seu tempo em Berlim. Nesses últimos anos da República de Weimar, conseguiu ganhar a vida trabalhando em sua própria ‘pequena fábrica de escrever’ e alcançou sucesso considerável. Contribuía regularmente (1926-1929) com o jornal literário de Berlim, Literarische Welt, que publicava seus artigos ‘praticamente uma vez por semana’, enquanto suas contribuições para o Frankfurter Zeitung (1930-1933) faziam uma média de quinze artigos por ano. (...) Bem mais inovador que isso era o trabalho de Benjamin no rádio como novo meio cultural de massa. Nos anos de 1927-1933, as estações de rádio em Berlim e Frankfurt transmitiram oitenta e quatro programas escritos e conduzidos por Benjamin.” Buck Morss, S. Dialética do olhar- Walter Benjamin e o projeto das passagens. MG: Ed. UFMG, 2002.

12. Mesmo a informação, em seu sentido amplo, estando hoje bem mais acessível, com um número cada vez maior de pessoas dispondo de aparelhos de televisão e microcomputadores, por exemplo, não há como negar que este próprio acesso se dê através das idéias implantadas através da indústria cultural. No geral acaba-se tendo uma informação filtrada, o que vai se refletir, claro, na maior parte das produções culturais.

13.
Através de programas específicos, é possível, em questões de minutos, dispor de músicas (assim como de filmes, fotos, capas de cd, VHS, DVD, etc) de qualquer parte do mundo, sem sair de casa. A indústria transfere-se para o HD de um microcomputador doméstico, numa revolução que ao meu ver, as ciências sociais ainda não deram a devida atenção.

14. A notícia da morte de um ídolo costuma ser sucedida por uma busca desenfreada de parte dos seus admiradores por produtos que tragam seu nome, enquanto a indústria cultural tenta de todas as formas suprir esta demanda. Em se tratando da indústria fonográfica, os álbuns desaparecem das prateleiras das lojas, as redações das revistas especializadas ficam abarrotadas de cartas com o lamento dos fãs, as rádios repetem seguidamente os maiores sucessos. Mas neste ponto algo também chama atenção: ainda que a morte de um artista recordista de vendas possa representar um choque inicial para a empresa que o tinha como contratado, ficam os representantes desta com um controle mais amplo sobre a carreira do artista. As chamadas “sobras de estúdio”, gravações renegadas pelos músicos, ganham status de grande novidade: uma única canção é veiculada nas rádios e trilhas de novela, para então ser lançada em um álbum repleto de sucessos antigos. Este um excelente filão para a indústria fonográfica, ao lado dos chamados “discos ao vivo”.

15. Em todos os setores da indústria cultural este é um acontecimento comum: o ostracismo que se segue a muitas carreiras de grande sucesso. São atores e atrizes que não conseguem um papel mínimo em uma nova produção; músicos que na juventude eram venerados como reis, e hoje, tocam os antigos sucessos em pequenos bares - todos fenômenos comuns.

16. Ozzy Osbourne ainda hoje é um dos mais populares cantores de rock, tendo se consagrado no grupo Black Sabbath no início dos anos 70, até partir para um bem-sucedida carreira solo. Cantando músicas com temas relacionados ao satanismo e à magia negra, a veneração a Ozzy aumentaria ainda mais depois dele ter supostamente arrancado com os dentes a cabeça de um morcego vivo durante um show. Apesar desta “história” nunca ter sido comprovada, e do cantor dizer em entrevistas não se lembrar do fato, a mídia não cansa de se referir a ele como “o comedor de morcegos”.

Referências bibliográficas

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