Ver 
                        Parte 1  
                         
                        CONSIDERAÇÕES SOBRE O ADMIRADOR EXALTADO 
                      A sociedade industrial cunhou o termo “fã”, 
                        uma forma reduzida da palavra “fanático”, 
                        para designar o indivíduo que tem uma dedicação, 
                        admiração ou amor exaltado por alguém, 
                        em geral ligado ao meio artístico. É muito 
                        provável que em algum momento de nossas vidas tenhamos 
                        passado pela experiência de eleger alguém 
                        como o “escolhido”, seja ele do nosso cotidiano, 
                        ou de um plano mais distante, como é o caso de 
                        um artista. Seriam dois tipos de admiração 
                        extrema, sendo que no primeiro, relacionado a alguém 
                        próximo, existe uma possibilidade de reciprocidade 
                        dos sentimentos; no segundo, será a inexistência 
                        desta possibilidade que confirmará sua condição, 
                        pois o contato físico com o artista dificilmente 
                        se dará de forma real. A esta admiração 
                        colocada na prática costumamos dar o nome de “idolatria”, 
                        ou seja, culto a um ídolo. Na impossibilidade de 
                        ter um contato direto com o artista, o fã busca 
                        estratégias que compensem a sua ausência 
                        física, e despende horas de seu tempo a colecionar 
                        fotos, recortes de revistas, gravações, 
                        tudo que o faça sentir a presença do ser 
                        adorado a qualquer momento. Aqui reside a grande diferença 
                        entre a pessoa que aprecia determinado gênero de 
                        trabalho artístico, e o fã. Para ficarmos 
                        apenas no terreno musical, uma pessoa pode ter uma discoteca 
                        com um número considerável de discos, entender 
                        sobre alguns gêneros, e sua relação 
                        se dar de forma direta com a música, ou seja, com 
                        o trabalho do artista. A ela não interessa se o 
                        cantor foi preso portando drogas, ou se acabou de desmanchar 
                        seu casamento; são as canções o objeto 
                        exclusivo de seu interesse. Já o fã não 
                        separa trabalho e artista, ambos representam uma unidade. 
                        E é assim que qualquer notícia envolvendo 
                        um membro de sua banda predileta é capaz de lhe 
                        trazer alegria ou tristeza. O fã se importa tanto 
                        com a nova canção a ser lançada quanto 
                        com o acidente de carro envolvendo o ídolo. Para 
                        pensarmos melhor como se dá esta dinâmica, 
                        se faz necessária uma pequena análise de 
                        conceitos e idéias de alguns autores que procuraram, 
                        de uma forma ou de outra, tratar do tema.  
                      Sabemos que a vida em sociedade será sempre caracterizada 
                        pela idéia de relação, ou seja, a 
                        própria existência da sociedade já 
                        pressupõe a relação, desejada ou 
                        não, entre os indivíduos. Sigmund Freud 
                        vai definir este indivíduo como um ser de horda, 
                        como alguém que sempre necessitará de uma 
                        liderança a lhe apontar os caminhos. O seu trabalho 
                        Psicologia de grupo e análise do ego, 
                        pode nos servir como espécie de texto-guia para 
                        uma tentativa de análise dos indivíduos 
                        inseridos em grupos. É importante frisar que não 
                        se trata aqui de afirmar o caráter coercitivo da 
                        liderança; a coerção é uma 
                        possibilidade, e não necessidade da relação 
                        entre líder e liderados. A proposta freudiana vai 
                        em confronto aos conceitos dos chamados “psicólogos 
                        das multidões”, muito debatidos na sua época, 
                        passagem do século XIX ao XX. Para Freud, autores 
                        como Gustave Le Bon (autor de Psychologie des foules) 
                        e McDougall (The group mind), fizeram um trabalho minucioso 
                        de pesquisa dos grupos enquanto indivíduos reunidos, 
                        mas teriam desprezado um aspecto que deixava suas análises 
                        incompletas: o da liderança. Todo grupo social 
                        possui um líder, podendo ser ele um de seus membros, 
                        ou uma figura distante fisicamente, necessidade esta que 
                        é fundamental para a permanência do grupo 
                        enquanto tal. Este, sem um líder, reduz-se a uma 
                        multidão desorganizada, mera aglomeração 
                        de indivíduos com paixões conflitantes, 
                        sem nenhum freio. 
                        O conceito de “instinto gregário” de 
                        Trotter é que vai servir de ponto de partida a 
                        Freud para a apresentação do indivíduo 
                        como alguém essencialmente de horda. Trotter acrescentava 
                        aos instintos considerados primários (o de auto-preservação, 
                        de nutrição e de sexo) o instinto gregário. 
                        A idéia básica é que o indivíduo 
                        traria consigo, como algo inato, a necessidade de estar 
                        em grupo, de confortar-se em seus semelhantes. Segundo 
                        Trotter, a criança deixada sozinha, ao se amedrontar 
                        com a solidão, já daria provas da existência 
                        deste instinto. O exemplo dado pelo autor é posto 
                        abaixo na análise de Freud: “O medo mostrado 
                        pelas crianças pequenas quando são deixadas 
                        sozinhas, e que Trotter alega constituir já uma 
                        manifestação do instinto, (...) sugere mais 
                        facilmente uma outra interpretação. O medo 
                        relaciona-se à mãe da criança e, 
                        posteriormente, a outras pessoas familiares, sendo a expressão 
                        de um desejo irrealizado, que a criança ainda não 
                        sabe tratar de outra maneira, exceto transformando-o em 
                        ansiedade. O medo da criança, quando está 
                        sozinha, tampouco é apaziguado pela visão 
                        de qualquer fortuito membro da grei; pelo contrário, 
                        é criado pela aproximação de um estranho 
                        desse tipo.” (Freud: 1976 [1921], 129) Ou seja, 
                        o ponto de referência da criança seria a 
                        mãe, ou alguém de seu meio familiar. O indivíduo, 
                        desde a mais tenra idade, vai necessitar de referenciais 
                        para dar direção aos seus passos, para seguir 
                        na vida com os seus semelhantes. Depois de adulto, estes 
                        referenciais vão sendo substituídos, mas 
                        continuarão como essência da vida em sociedade. 
                        “Todos os membros devem ser iguais uns aos outros, 
                        mas todos querem ser dirigidos por uma só pessoa. 
                        Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros, 
                        e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é 
                        a situação que vemos realizada nos grupos 
                        capazes de subsistir. Ousemos, então, corrigir 
                        o pronunciamento de Trotter de que o homem é um 
                        animal gregário, e asseverar ser ele de preferência 
                        um animal de horda, uma criatura individual numa horda 
                        conduzida por um chefe.” (Freud: 1976 [1921], 131) 
                       
                      Freud faz em seguida uma análise de dois grupos, 
                        classificados como “artificiais”: o exército 
                        e a igreja. A importância do líder é 
                        enfatizada ao extremo, em oposição direta 
                        aos estudos dos psicólogos da multidão. 
                        O exército em guerra, diante da morte ou captura 
                        de seu general, perde o rumo, entra em pânico, ficando 
                        muito próximo da derrota. A certeza da queda do 
                        líder tem o impacto de um ataque fulminante entre 
                        os soldados. Se vasculharmos com atenção 
                        os livros de História encontramos com facilidade 
                        inúmeros exemplos que podem nos confirmar esta 
                        idéia relacionada ao exército enquanto grupo. 
                        Quanto à igreja, Freud cita um romance inglês, 
                        When it was dark (Quando estava escuro), de Guy 
                        Thorne, publicado em 1903, para imaginarmos o fenômeno 
                        de dissolução de um grupo religioso: “O 
                        romance, que pretende relacionar-se com os dias de hoje, 
                        conta como uma conspiração de inimigos da 
                        pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito 
                        em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. 
                        Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição 
                        em que José de Arimatéia confessa que, por 
                        razões de piedade, retirou secretamente o corpo 
                        de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após 
                        o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar. A ressurreição 
                        de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira 
                        refutadas e o resultado da descoberta arqueológica 
                        é uma convulsão na civilização 
                        européia e um extraordinário aumento em 
                        todos os crimes e atos de violência, os quais só 
                        cessam quando a conspiração dos falsificadores 
                        é revelada.” (Freud: 1976 [1921], 109-110) 
                      Estes exemplos, apresentados de forma breve, nos ressalta 
                        a pertinência da convicção que o liderado 
                        deve ter na existência do líder, do “seu” 
                        referencial, e que não necessariamente deve ser 
                        um indivíduo. A relação de um torcedor 
                        com o seu time representa bem este modelo: o torcedor 
                        tem um identificação com o grupo representado 
                        nas cores da camisa, no hino do clube, nas conquistas 
                        diante do adversário. Neste caso, não se 
                        trata de uma admiração a um jogador específico, 
                        pois este, por mais admirado que seja, cada vez mais tende 
                        a ser substituído (seja pelo avançar da 
                        idade ou pelo interesse de outros clubes), e esta substituição 
                        não abala a paixão da torcida, que permanece 
                        intacta1 . “Os 
                        jogadores passam, o clube fica”, costumam dizer 
                        os torcedores mais apaixonados.  
                     
                   
                  
                     
                      |  1- 
                        O 
                        jogador idolatrado pela torcida, ao se transferir para 
                        um clube rival, leva consigo não só os seus 
                        dribles e belas jogadas, mas todo um universo de símbolos 
                        que o identificava com os torcedores. Ainda que permaneça 
                        o desejo, por parte destes, pelo seu retorno, a tendência 
                        é que a cada vez que entre em campo para enfrentar 
                        o seu antigo clube, seja o mais hostilizado possível, 
                        através de insultos e faixas com dizeres agressivos. 
                        Uma prova de que a paixão pelo clube, ultrapassa 
                        os limites do indivíduo. Ver Helal, Ronaldo & 
                        Coelho, Maria Claudia. “Modernidade e tradição 
                        no futebol brasileiro: o caso Bebeto”. In.: Pesquisa 
                        de campo – revista do Núcleo de Sociologia 
                        do Futebol/UERJ – Número 2, 1995.  | 
                     
                   
                   
                     
                      Há casos de personagens de histórias em 
                        quadrinhos que também são capazes de movimentar 
                        multidões de seguidores. O processo de identificação 
                        do leitor com o personagem se constrói na seqüência 
                        dos episódios, e pode desencadear relações 
                        semelhantes às citadas no texto de Freud. Umberto 
                        Eco em “O mito de Superman” analisa este processo 
                        a partir das histórias de personagens como Superman, 
                        Batman e Robin, entre outros. A empatia do público 
                        leitor com seu super-herói (ou personagem) predileto 
                        se dá em um ritmo crescente, sempre apoiada na 
                        certeza da existência. O consumidor de revistas 
                        em quadrinhos quer, a cada exemplar, uma aventura em que 
                        seu herói enfrente seus inimigos e no final, seja 
                        sempre o vencedor. Não passa pela sua cabeça 
                        a idéia de, em um combate, por exemplo, Batman 
                        ser assassinado pelo Pingüim, ou Superman por Lex 
                        Luthor: a vitória sobre os inimigos será 
                        o pressuposto para a continuidade da sua relação 
                        de adoração. Os personagens ganham vida 
                        própria, e seu criador pode, muitas vezes, ver-se 
                        envolvido em dilemas quando toma certas decisões 
                        quanto ao destino destes. Eco cita exemplos em que autores 
                        resolveram por algum motivo, “matar” determinado 
                        personagem, e a reação do público 
                        é de contrariedade: milhares de cartas na redação 
                        da revista, estudantes universitários fazendo “um 
                        minuto de silêncio”, artigos nos jornais, 
                        e como resultado, o autor se vendo forçado a ir 
                        às rádios, dar entrevistas sobre a sua escolha! 
                        Os laços de união, e aqui podemos pensar 
                        nos “grupos artificiais” de Freud, são 
                        rompidos e os leitores perdem seu referencial: “... 
                        no caso das estórias em quadrinhos, trata-se de 
                        uma reação muito mais maciça de uma 
                        comunidade de fiéis, incapaz de suportar a idéia 
                        do desaparecimento repentino de um símbolo que 
                        até então encarnara uma série de 
                        aspirações. O histerismo provém da 
                        frustração de uma operação 
                        empatizante, uma vez que passa a faltar o suporte físico 
                        de projeções necessárias. Cai a imagem, 
                        e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava. 
                        A comunidade dos fiéis entra em crise, e a crise 
                        não é só religiosa mas também 
                        psicológica, porque a imagem revestia uma função 
                        demasiado importante para o equilíbrio psicológico 
                        dos indivíduos.” (Eco, 1979: 246) 
                      Do que foi dito acima, é importante destacar dois 
                        pontos: 
                     
                   
                   
                     
                       
                        - Primeiro, que as relações entre líderes 
                          e liderados, exige apenas que o séquito seja 
                          composto de indivíduos, com gosto e vontade próprios 
                          – o líder pode estar em outro nível, 
                          além do individual. Casos como o do torcedor 
                          e o time de futebol e o do leitor e seu super-herói 
                          predileto são exemplos desta idéia. Ou 
                          seja, a liderança não é necessariamente 
                          exercida por indivíduos.  
                           
                          - Segundo, que as relações entre estes 
                          dois lados estão fortemente baseadas na certeza, 
                          por parte dos liderados, da existência do líder. 
                          Estas relações têm características 
                          próprias do universo em que se insere tal relação, 
                          podendo apresentar algumas diferenças, mas todas 
                          conduzem à situações parecidas: 
                          no mundo do futebol, as relações do torcedor 
                          com o time adquirem ares de cobrança sempre que 
                          a equipe vai mal, mas ele não consegue se ver 
                          sem o time de coração. “Eu teria 
                          um desgosto profundo, se faltasse o Flamengo no mundo”, 
                          cantam os milhares de flamenguistas numa voz única 
                          nos estádios. A inexistência do time jamais 
                          entra como possibilidade nestas relações. 
                          Já o soldado, se quisermos pensar no grupo artificial 
                          de Freud mais uma vez, segue quase mecanicamente as 
                          ordens de seu general, não havendo espaço 
                          para cobranças por parte dos subordinados: a 
                          voz do líder é a voz da Pátria, 
                          cabe apenas ao soldado obedecer. E é este o seu 
                          desejo, cumprir à risca as ordens do seu general, 
                          pois é ele o seu ponto de referência no 
                          campo de batalha. Perdê-lo é perder-se, 
                          vagar sem rumo a espera do inimigo. É o “desgosto 
                          profundo” do torcedor...  
                       
                     
                   
                 
                Ainda que reconheçamos, de uma maneira geral, a perda 
                  como fator determinante para o possível desmantelamento 
                  do grupo, no mundo artístico esta pode servir como reforço 
                  na continuidade das relações. Sendo a relação 
                  “fã e ídolo” uma relação 
                  entre indivíduos, a perda é neste caso representada 
                  de forma plena através da morte física. E muitas 
                  vezes esta morte irá se constituir em motivo para intensificação 
                  da adoração. Se o ídolo já possuía 
                  o status de alguém especial, quase não humano 
                  em vida, agora ele se inclui no rol dos semi-deuses, e o culto 
                  permanente por parte de seu séquito será a confirmação 
                  desta sua condição singular. José Carlos 
                  Rodrigues em seu trabalho intitulado “Quando a morte é 
                  festa”, exprime bem esta idéia do ser único, 
                  e de uma forma muita feliz, utiliza-se do termo “superpessoas” 
                  para definir estes ídolos diante da morte: “Tais 
                  superpessoas estão a meio caminho entre deuses e mortais: 
                  a morte representa sem dúvida uma curvatura deles diante 
                  das forças hostis do mundo. Mas, ao mesmo tempo, por 
                  virtude desta curvatura, ganham finalmente o absoluto, quer 
                  dizer, a imortalidade. No momento da morte, 
                  principia a vitória deles sobre a morte.” 
                  (Rodrigues, 1992:59) [Os grifos são meus] Portanto, no 
                  caso do ser que é objeto de culto, a morte vai representar 
                  uma nova etapa na escala das relações, e sendo 
                  assim, esta partida não é, de forma nenhuma, sem 
                  volta. A perda ocorre apenas no nível físico. 
                   
                  Aqui observamos que se as análises de Freud e Eco enfatizavam 
                  os aspectos da necessidade de certeza na existência da 
                  figura do líder (seja ele o general, Jesus Cristo ou 
                  Superman), devemos dar um passo além se quisermos compreender 
                  melhor como se estabelecem as relações dadas entre 
                  os admiradores de um artista que morre de forma prematura ou 
                  não, como é o caso do vocalista da Legião 
                  Urbana. Podemos pensar a morte nestes casos como representando 
                  o início de uma vida nova, de novas relações. 
                  Não há mais a presença física, aquela 
                  certeza na existência concreta, mas ficam as lembranças, 
                  resta a obra. E será justamente a impossibilidade de 
                  dissociar obra e artista que vai confirmar o caráter 
                  de idolatria por tanto tempo após a sua morte. O conhecimento 
                  de detalhes da vida do ídolo, além da constante 
                  admiração pelos trabalhos realizados (sejam estes, 
                  canções, filmes, fotos), formam uma unidade com 
                  a imagem eternizada na lembrança. No caso dos músicos 
                  idolatrados na sua grande maioria por jovens, a tragédia 
                  tem papel pertinente no reforço a este sentimento, ou 
                  seja, a morte, de uma forma ou de outra, sempre esteve (e estará) 
                  presente. Qualquer loja especializada em produtos de rock no 
                  país, tem na lista das camisetas mais vendidas as que 
                  trazem estampados os rostos de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim 
                  Morrison, Raul Seixas, Renato Russo2. 
                 
                
                   
                    |  2- 
                      Durante 
                      esta monografia, fiz visitas a algumas destas lojas, e pude 
                      confirmar que a camiseta mais vendida entre as de artistas 
                      brasileiros era a de Renato Russo, e entre os estrangeiros, 
                      a de Kurt Cobain, o líder da banda americana Nirvana, 
                      que se suicidou com um tiro na cabeça. Ambos são 
                      seguidos a certa distância por Raul Seixas, Jim Morrison 
                      e Jonh Lennon. Todos mortos.  | 
                   
                 
                Se analisarmos as biografias de todos estes artistas, ao mesmo 
                  tempo em que percebemos características especiais que 
                  os distingue das pessoas ao seu redor desde a infância, 
                  fica fácil também reconhecer que o elemento da 
                  tragédia vai permeando muitos acontecimentos em seu dia 
                  a dia, até interromper a trajetória através 
                  da morte (física) de forma abrupta. Será característica 
                  da mitificação póstuma a morte não 
                  esperada, ainda que presente enquanto possibilidade. A opção 
                  por um ritmo de vida intenso, e que passa muitas vezes pelo 
                  consumo de drogas, serve como argumento para a rotulação 
                  destes artistas por parte de setores da sociedade (um público 
                  e mídia mais conservadores) como “malditos”, 
                  “drogados”, “loucos”, etc. Se por um 
                  lado a consagração através de shows e da 
                  venda de discos representa a garantia de uma vida extremamente 
                  confortável, por outro, a vida pessoal parece tentar 
                  assemelhar-se ao conteúdo de muitas das letras eternizadas 
                  pelos fãs. O próprio Renato Russo sintetizou bem 
                  esta idéia na canção “Love in the 
                  afternoon” em que diz “é tão estranho, 
                  os bons morrem jovens...”  
                
                   
                     
                      Janis Joplin, por exemplo, teria passado toda sua infância 
                        sofrendo humilhações por parte dos colegas 
                        em todos os colégios onde estudou – era uma 
                        espécie de pária na pequena cidade de Port 
                        Arthur, no sul do Texas. Com forte tendência a engordar, 
                        seu corpo era motivo de piada entre os rapazes; na adolescência 
                        seria votada em uma estranha eleição como 
                        a jovem mais feia da escola. Nem o posterior sucesso alcançado 
                        nos anos sessenta como cantora de blues, atenuaria a dor 
                        originada nestes anos. Janis mergulharia fundo numa vida 
                        sexual desregrada, no álcool e na heroína. 
                        Os amigos não conseguem lembrar de muitos momentos 
                        em que a viram feliz, sempre a tinham nas recordações 
                        como uma jovem amargurada e muito triste. Uma dose excessiva 
                        de heroína a mataria no dia 4 de outubro de 1970, 
                        num quarto de hotel. Estava sozinha3. 
                       
                     
                   
                 
                
                   
                    |  3- 
                      Ver 
                      Myra Friedman, Enterrada viva – a biografia de Janis 
                      Joplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
                      1985. | 
                   
                 
                Jimi Hendrix, até hoje considerado o maior guitarrista 
                  de todos os tempos, já teria morrido poucos meses antes, 
                  da mesma causa, e também sozinho. Assim como Jim Morrison, 
                  vocalista do The Doors, como Elvis Presley, e tantos outros 
                  ídolos da juventude. No momento da morte, a solidão, 
                  grande contradição a acompanhar a vida destas 
                  “superpessoas”...  
                
                   
                     
                      Desde o seu surgimento que o rock popularizou-se como 
                        um estilo musical marcado por mortes trágicas e 
                        prematuras. Acidentes automobilísticos e aéreos, 
                        overdoses, suicídios, e mais recentemente, a AIDS, 
                        interromperam muitas carreiras de sucesso mundo afora. 
                        As décadas de 60 e 70, de certa forma imprimiram 
                        esta marca ao rock, se levarmos em consideração 
                        a quantidade de músicos mortos, na sua grande maioria, 
                        de doses excessivas de drogas neste período4 
                        . Cantar os efeitos de drogas como LSD e a heroína5 
                        tornou-se comum nestes anos, assim como morrer de seu 
                        uso inadequado6 
                        . O universo composto em torno destes artistas (empresários, 
                        músicos de acompanhamento, fãs) passaria 
                        a conviver com a idéia da morte sempre como uma 
                        grande possibilidade. A partir do final dos anos oitenta, 
                        a AIDS também colheria de forma devastadora vidas 
                        no mundo musical, como Freddy Mercury, vocalista da banda 
                        inglesa Queen, e no Brasil, Cazuza e Renato Russo. O assassinato 
                        de Jonh Lennon na porta de sua residência confirma 
                        o “trágico” como elemento na sua trajetória, 
                        mesmo sendo uma forma de morte atípica no mundo 
                        artístico. O que temos, portanto, é a desnaturalização 
                        da morte como a consolidação do status de 
                        “superpessoa”, de imortal.  
                     
                   
                  
                     
                      |  4- 
                        Janis 
                        Joplin, Jimi Hendriy, Jim Morrison e Brian Jones, o guitarrista 
                        do Rolling Stones que disputava com Mick Jagger a preferência 
                        das fãs, morreram todos nesta década. | 
                     
                   
                   
                  
                     
                      |  5- 
                        Os 
                        Beatles, com a clássica “Lucy in the Sky 
                        with Diamonds” , e os Rolling Stones, com “Brown 
                        Sugar” (como também é conhecida a 
                        heroína), consagraram o tema das drogas como recorrente 
                        nas letras de muitas canções do gênero. 
                        Jonh Lennon, posteriormente em carreira solo, comporia 
                        uma das mais explícitas canções tratando 
                        dos efeitos da dependência de heroína: “Cold 
                        Turkey”, que descreve o estado de um viciado em 
                        um período de abstinência da droga.  | 
                     
                   
                   
                  
                     
                      |  6- 
                        Ver 
                        McNeil, Legs & McCain, Gillian, Mate-me por favor 
                        – uma história sem censura do punk. Porto 
                        Alegre: Ed. L&PM, 1997. | 
                     
                   
                   
                     
                      Um acontecimento envolvendo a morte de um ídolo 
                        geralmente mobiliza diversos setores da sociedade, não 
                        apenas seus fãs, e a mídia, de acordo com 
                        o sucesso do artista, destaca espaços nos seus 
                        programas e publicações, e procura focalizar 
                        todos os detalhes da vida daquele ser tão adorado. 
                        E como os meios de comunicação vivem da 
                        novidade, logo um outro fato ocupará o espaço 
                        daquela morte tão comentada. É no coração 
                        do fã, que lamenta aquela morte como se fosse a 
                        de um familiar querido, que a dor vai se prolongar diante 
                        da idéia de jamais assistir a um show, nem ouvir 
                        nas rádios uma música nova do seu artista 
                        predileto. Diante do desafio de perpetuar na memória 
                        de novos fãs o trabalho de seu ídolo, surge 
                        a necessidade de compartilhar seu material, e de certa 
                        forma, mostrar que aquela morte não foi em vão: 
                        o roqueiro autêntico, eternizado pelo trinômio 
                        “sexo, drogas e rock’n’roll”, 
                        morto de forma prematura e trágica, no auge do 
                        sucesso, apenas confirma as características essenciais 
                        das relações no universo que gira em torno 
                        do gênero musical conhecido como rock.  
                      Não se pode dizer que estes artistas desejavam 
                        morrer no auge do sucesso, com tantos frutos ainda por 
                        colher. Não se trata de uma escolha pela morte. 
                        O universo que gira em torno destes ídolos é 
                        que clama por mortes trágicas, pois uma das suas 
                        maiores atribuições é ser uma fábrica 
                        de mitos. E dentro da chamada indústria cultural, 
                        a idéia de mitificação passa indiscutivelmente 
                        pela morte, ou pelo desaparecimento voluntário 
                        (como o caso de Greta Garbo, por exemplo). Esta adoração 
                        pelo ídolo morto de forma trágica encontra 
                        paralelos na história das civilizações, 
                        e não há nada de novo na sua situação, 
                        a não ser as formas de morrer. Em muitos aspectos 
                        tal situação assemelha-se à do herói 
                        homérico, na Grécia Antiga: ser considerado 
                        como tal estava condicionado a morrer em combate, no auge 
                        da juventude - ou seja, era algo para a posterioridade. 
                        Jean Pierre Vernant, no trabalho A “bela morte” 
                        de Aquiles, salienta que haviam duas formas de morrer 
                        para o homem grego: uma, que o relegava ao esquecimento, 
                        seria a morte na velhice, natural; a outra, em combate, 
                        na linha de frente, em plena juventude, que resultaria 
                        na glória. Tratava-se de uma oposição 
                        entre “esquecimento” e “glória”, 
                        determinante no mundo grego. A idéia de relação 
                        surge clara: “Numa sociedade de confronto onde, 
                        para se fazer reconhecer, é preciso sobrepujar 
                        seus rivais, numa contínua competição 
                        pela glória, cada um está sob o olhar do 
                        outro, cada um existe a partir deste olhar. Se é 
                        o que os outros vêem de si.” Portanto o herói 
                        vive e morre para o amanhã, para ser lembrado de 
                        geração em geração, para ser 
                        cantado pelos poetas. O alcance da condição 
                        heróica, da “glória imperecível”, 
                        passa pelo confronto direto com o inimigo, pela morte 
                        no esplendor da juventude, a “bela morte”. 
                        A “(...) glória imperecível, é, 
                        na bela morte, o extremo de uma honra acima de todas as 
                        honras, relativas e transitórias, da qual um vivente 
                        pode se orgulhar. O agathos aner , o homem de bem, o homem 
                        de coração, obtém com a morte heróica 
                        um status especial: mortalidade e imortalidade, ao invés 
                        de se oporem, se associam à sua pessoa e se interpenetram.” 
                        Morrer na velhice estabelece o caráter dos homens 
                        comuns, ou seja, humaniza. O herói é considerado 
                        como tal, justamente pela idéia contrária: 
                        por ter morrido precocemente. Nossos ídolos de 
                        hoje parecem trazer um pouco desta carga dramática 
                        dos gregos... Analisando com certa distância, não 
                        teremos muitos artistas lembrados até hoje, mais 
                        pela forma com que morreram do que por seu trabalho propriamente 
                        dito?  
                      O poeta a cantar a bravura do herói grego ficou 
                        no passado, assim como o descendente que se envaidecia 
                        contando as aventuras de um ancestral. Foram substituídos 
                        pelos seguidores não mais ligados a laços 
                        familiares; a proximidade física, como se dava 
                        na Grécia homérica, não é 
                        mais um quesito para a identificação entre 
                        as pessoas. A relação estabelecida hoje 
                        entre o seguidor e o líder se dá por inúmeras 
                        vias (discos, livros, televisão), e apesar de ter 
                        consciência de que é apenas parte de um séquito, 
                        para o seguidor a mensagem que vem do líder é 
                        uma dádiva exclusiva. A canção interpretada 
                        pelo cantor no palco, “atinge” a audiência 
                        como um todo, mas também a cada um dos presentes, 
                        seja de maneira intensa ou não. Uns dançam; 
                        outros ficam indiferentes. Mas alguém sempre dirá 
                        que aquela canção estava sendo interpretada 
                        para ele, afinal, o cantor lhe emitia sinais, olhava-o 
                        nos olhos - cantava realmente para ele. Uma mensagem que 
                        parte do indivíduo e é direcionada a outro, 
                        mas que só é bem sucedida se alcançar 
                        a coletividade, o grupo. Para pensarmos melhor a noção 
                        de morte na idolatria, é importante destacar os 
                        pontos essenciais desta relação, quando 
                        o fã tem os primeiros contatos com o ídolo 
                        ainda vivo.  
                         
                        Relação de sentimentos não correspondidos, 
                        a idolatria se caracteriza pela idéia de um indivíduo 
                        que é adorado por um grupo. O ídolo não 
                        sabe quem são seus fãs, não os conhece 
                        por nome, percebe-os como uma multidão de iguais. 
                        O fã conhece todas as músicas do ídolo, 
                        sabe detalhes de sua vida particular, festeja seus sucessos. 
                        E mais: sonha com um possível contato com o seu 
                        cantor predileto, deseja conhecê-lo pessoalmente, 
                        nem que seja por um breve momento. Este desejo de encontro 
                        com o ídolo é um dos principais pontos da 
                        obra de Maria Claudia Coelho, A experiência 
                        da fama – individualismo e comunicação 
                        de massa. A autora discute a relação 
                        de idolatria em torno de atores de televisão. Partindo 
                        de um conjunto de cartas de fãs enviadas a estes 
                        atores7 , Coelho 
                        nos ajuda a compreender aquilo que chama de “a condição 
                        de fã”. Na ânsia de ser reconhecido 
                        pelo ídolo como um fã diferente dos outros, 
                        ele elabora estratégias na busca pela singularização. 
                        Nesta busca, emaranha-se ainda mais nas semelhanças, 
                        pois todos têm o mesmo desejo, e daí surge 
                        o dilema que irá acompanhá-lo: “Esse 
                        dilema transforma-se em um paradoxo no exato momento em 
                        que o fã tenta solucioná-lo. Recorrendo 
                        a diversas estratégias de singularização 
                        (...) o fã mergulha cada vez mais fundo em sua 
                        condição anônima. Esse paradoxo cristaliza-se 
                        na recorrência do uso da expressão ‘fã 
                        número um’(...) É justamente no momento 
                        em que o fã se esforça para ser diferente 
                        que ele se iguala (...)”(Coelho,1999: 61) Esta relação, 
                        segundo Coelho, teria como essência a assimetria: 
                        muitos que desejam ser reconhecidos em sua condição 
                        passional, ou ao menos serem vistos; um que, no seu status 
                        de super-pessoa, deve manter-se isolado da multidão, 
                        confirmando sua singularidade. A análise feita 
                        sobre as cartas expõe esta essência, pois 
                        enquanto os fãs gastam tempo elaborando frases 
                        de efeito com o intuito de fazer-se notar pelo ídolo, 
                        este nem ao menos dá-se ao trabalho de respondê-las. 
                        Pedidos de fotos com dedicatória, uma simples frase, 
                        um autógrafo, tudo isso se perde em envelopes que 
                        muitas vezes nem chegam a ser abertos. A admiração 
                        ao ator, ligada quase plenamente à imagem (seja 
                        impressa ou em vídeo-gravações), 
                        dá à foto autografada um caráter 
                        especial, que ultrapassa o seu sentido original: “(...) 
                        a insistência em receber uma foto autografada deve 
                        ser entendida como parte de um pedido mais ambicioso. 
                        A foto autografada atesta o recebimento da carta, e mais 
                        ainda, pode também desempenhar o papel de uma resposta, 
                        estabelecendo alguma reciprocidade na relação” 
                        (Coelho, 2000:59). Uma frase destas cartas sintetiza a 
                        idéia: “Enquanto não recebo resposta 
                        continuarei a trabalhar ativamente à frente do 
                        seu fã-clube, sem perder as esperanças de 
                        receber uma foto, um bilhete, algo que me assegure que 
                        recebeu e leu esta carta.”(Idem) Mesmo que o material 
                        desejado por fãs de artistas ligados ao mundo musical 
                        possuam diferenças em relação aos 
                        do mundo das telenovelas8 
                        (fonte do estudo de Coelho) todos eles sonham com o dia 
                        em que poderão encontrar seus ídolos, encontro 
                        este bastante improvável9, 
                        pois não há reciprocidade na relações 
                        de idolatria.  
                      Teríamos, portanto, o fã convivendo com 
                        dois desejos: um, o de ter tudo a respeito do ídolo 
                        (fotos, reportagens, vídeos, etc.), e outro, o 
                        de estabelecer um contato, nem que seja ao menos para 
                        um aperto de mão, um abraço. Porém, 
                        a idéia de reciprocidade, tão desejada nas 
                        relações de idolatria, perde toda a razão 
                        de ser quando o artista morre. O fã, mergulhado 
                        em sofrimento diante do fato, sabe que agora não 
                        há para quem escrever cartas, não há 
                        mais shows para assistir. Resta-lhe tudo o que ficou produzido 
                        e a admiração de outros fãs, que 
                        serão suas motivações para continuar 
                        em frente. Na comunhão com seus iguais encontrará 
                        sua principal base de conforto. O fã-clube acaba 
                        se tornando o ponto de referência para qualquer 
                        assunto relacionado com o ídolo. A paixão 
                        do outro funciona como reforço à sua, e 
                        uma vez somadas, o desejo passa a ser sua propagação. 
                        É neste sentido que todo membro de um fã-clube 
                        trabalha com o intuito de divulgar a obra do artista entre 
                        os que pouco a conhecem, exercendo um papel semelhante 
                        ao dos missionários religiosos. O ídolo 
                        passa a ser para o fã, mais que um artista, mas 
                        uma causa a ser defendida. E não há como 
                        se lutar por uma causa solitariamente. 
                     
                   
                  
                     
                      |  7- 
                        Coelho 
                        teve à sua disposição um conjunto 
                        de quase trezentas cartas de fãs cedidas por dois 
                        dos dez atores que entrevistou. No momento em que as cartas 
                        foram enviadas, ambos tinham papéis principais 
                        em novelas, gozando de enorme popularidade. | 
                     
                   
                   
                  
                     
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                        Os 
                        fãs de artistas musicais têm sempre a possibilidade 
                        de adquirir a gravação de um show de maneira 
                        “clandestina” – as feitas em início 
                        de carreira, sem recursos, costumam ser as mais apreciadas. 
                        Assim como o fã da atriz deseja uma foto autografada, 
                        o do cantor quer a gravação de um show a 
                        que poucos assistiram. A “posse” desta gravação 
                        lhe garante o status de um fã com “algo mais” 
                        que os outros, como aquele que possui a foto com dedicatória, 
                        autografada, da atriz principal da telenovela. | 
                     
                   
                   
                  
                     
                      |  9- 
                        Dos 
                        fãs entrevistados para este trabalho, apenas Marcelo 
                        teria conseguido estabelecer um contato com membros da 
                        Legião Urbana. Acompanhando a banda em shows pelo 
                        Brasil, diz ter sido recebido nos camarins por duas vezes, 
                        e inclusive possui uma entrevista gravada com Dado Villa-Lobos 
                        e Marcelo Bonfá num desses encontros. | 
                     
                   
                   
                    No capítulo seguinte procuro apresentar, através 
                    de histórias de fãs da Legião Urbana, 
                    fatos que podem confirmar os argumentos acima. Assim como 
                    a idéia do termo “legião” pressupõe, 
                    seus fãs avançam e conseguem manter a popularidade 
                    de seu ídolo em alta entre os mais jovens, barrando 
                    qualquer possibilidade do “seu trono” ser tomado. 
                     
                   
                   
                     
                       
                        Mês que vem, a conclusão deste estudo.
                        (aproveite para conhecer 
                        o site "O 
                        Sopro do Dragão", do fã-clube da 
                        Legião) 
                       
                     
                   
                 
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