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RENATO RUSSO
E A LEGIÃO URBANA

por Paulo Henrique Dantas
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No Contexto Cultural Brasileiro

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INTRODUÇÃO

A revista Show-Bizz na sua edição de novembro de 1996, publicava quatro cartas de fãs a respeito da morte do cantor Renato Russo:

“O Renato tinha direito de ser tudo: homossexual, viciado, alcoólatra, qualquer coisa. Só não tinha o DIREITO DE MORRER. Ele representava muito para muita gente. O Renato não tinha esse direito, não tinha!!!”

“Há dois anos moro em Madri, na Espanha, e, quando fui verificar a minha correspondência na Internet, caí em depressão profunda. Eu não sou poeta, nem chego aos pés dele, mas não consigo escrever mais, é muito triste a frieza da morte do Renato. Espero que vocês façam uma reportagem à altura do que ele foi para todos nós. Um santo talvez...”

“Hoje é um dos dias mais amargos da minha vida. Sinto um nó no estômago, uma vontade de não falar com ninguém, nunca mais. O Renato não parecia ser um doente de Aids em fase terminal... De qualquer forma, vai continuar para sempre na memória de todos nós. Obrigado, Renato. Muito obrigado por tudo.”

“Como? Será que essa é a única pergunta que passa pela minha cabeça agora? O Renato quis assim e, como disse minha mãe ao me dar consolo: ‘Ele já andava nas estrelas e nós pensando que ainda estava por aqui...’ Obrigado, Renato, por ter escondido a sua doença de nós. Seria um sofrimento a mais.”

As quatro cartas acima demonstram a perplexidade dos fãs diante da morte de seu maior ídolo. A primeira, em um tom quase desesperado, quer negar o direito à morte do cantor, enquanto as três seguintes, numa atitude de tristeza diante do fato, aceitam-no como real, restando-lhes manter o ídolo para sempre na memória, e agradecer por tudo que fizera em vida. O fã da primeira carta aceita as opções de vida do ídolo, sejam elas quais forem (no caso, homossexual, viciado e alcoólatra). Se no discurso dos fãs da Legião Urbana, Renato Russo é tratado muitas vezes como “Renato”, numa visível tentativa de torná-lo próximo, quase íntimo, a aceitação de seu estilo de vida já trata de recolocá-lo na condição de alguém especial.

A segunda carta, que deixa subentendido tratar-se de um aspirante a poeta (“Eu não sou poeta, nem chego aos pés dele, mas não consigo escrever mais...”), cobra da revista uma reportagem à altura do que o artista teria sido “para todos nós”. E completa: “Um santo, talvez...” Se em vida o carismático vocalista já era tratado pelos fãs como uma espécie de messias, sua morte o colocará num patamar exclusivo.

O terceiro fã, apesar da vontade de não falar com ninguém “nunca mais”, termina por aceitar a realidade, confortando-se na idéia de que o cantor permanecerá para sempre na memória “de todos nós”. Conclui agradecendo por tudo. A última correspondência deixa clara a necessidade do jovem fã em receber o consolo da mãe, que tenta (como todas as mães) diminuir a dor do filho, sugerindo a partida de Renato há mais tempo: “Ele já andava nas estrelas e nós pensando que ainda estava por aqui...” Mais uma vez a ligação do artista com o “divino” (estrelas - céu, “um santo, talvez”) é ressaltada, desta vez pela mãe do fã, nos abrindo a possibilidade de ambos, mãe e filho, compartilharem a admiração pelo trabalho de Renato Russo.

Creio que podemos imaginar as frases destas correspondências como saindo do coração de cada fã da banda Legião Urbana, uma dor compartilhada por todos. Triste passagem da admiração à dor compartilhada... A própria decisão de publicar estas em meio a centenas de outras correspondências que teriam chegado à redação da revista estende a divisão da dor: muitos dos jornalistas que lá trabalham, acompanharam desde o início o sucesso do grupo. As quatro cartas acima nos dão uma pequena amostra do impacto da morte do cantor na vida destes e de outros tantos adolescentes, o principal público de suas canções.

Este trabalho apresenta uma análise da relação de idolatria a partir do músico Renato Russo. Considerado um dos cantores e letristas mais talentosos da geração pós-ditadura militar, Russo teria conquistado um lugar cativo na preferência musical dos adolescentes dos grandes centros urbanos. Ainda hoje citado como um dos maiores ídolos da juventude brasileira, sua morte em nada diminuiu o interesse por seu trabalho, e seus discos continuam vendendo com a mesma intensidade . Minha idéia, portanto, foi dar voz a algumas destas pessoas que têm em Renato Russo uma espécie de “ponto de referência” para suas vidas. Este é um fenômeno bem característico das sociedades industriais, o artista (atores, músicos, atletas) conquistando espaços outrora reservados às lideranças políticas e religiosas . Tentar dar uma contribuição para o entendimento destas tendências, através de depoimentos e histórias contadas por estes fãs, aliados a textos de autores que procuraram trabalhar questões relacionadas à comunicação de massas é a tarefa a que se propõe este trabalho, divido em três capítulos.

No capítulo I procuro apresentar um breve história da banda, a partir de acontecimentos ligados a Renato Russo. Baseado no livro do jornalista Arthur Dapieve, O trovador solitário, em livros e reportagens de revistas especializadas, e em minha experiência enquanto alguém que acompanhou a trajetória dos músicos desde o seu primeiro sucesso, procurei elaborar um texto que contribuísse para um melhor desenvolvimento do trabalho com um todo.

O segundo capítulo, destinado aos referenciais teóricos, contém algumas idéias e conceitos ligados ao estudo de grupos e a dinâmica da idolatria, destacando os pontos mais importantes a respeito do papel do “líder” e do “liderado” nesta relação. Parto da análise de Sigmund Freud sobre a formação de grupos e a identificação destes com a liderança, para em seguida apresentar argumentos sobre as conseqüências do rompimento desta ligação no nível físico. A questão da identificação e do rompimento é reforçada através de um ensaio de Umberto Eco, O mito do Superman, em que o autor analisa a relação dos leitores de revistas em quadrinhos com seus personagens prediletos. Para tratar da “morte” do ídolo, cito casos de músicos que ainda hoje mantêm um séquito fiel de seguidores, apoiando o argumento no texto de José Carlos Rodrigues, Quando a morte é festa. Sobre a prática de adorar o ídolo morto, procuro traçar um paralelo com a sociedade grega dos tempos homéricos, através do trabalho A bela morte de Aquiles, de Jean Pierre Vernant, que apresenta a morte no clamor da juventude como pressuposto para a condição posterior de herói. E para trabalhar a questão do fã e a sua necessidade de ser reconhecido como tal, destaco argumentos de A experiência da fama, de Maria Cláudia Coelho.

O terceiro e último capítulo está dividido em quatro histórias “construídas” a partir de depoimentos e conversas informais com estes fãs . Os nomes reais foram alterados, e procurei ser o mais fiel aos depoimentos e entrevistas. Por serem todos de outros estados, não tive a possibilidade de realizar nenhuma entrevista pessoalmente. Tive longas conversas por telefone, e posso dizer que estas são os pilares básicos deste capítulo. Enviei muitas perguntas por e-mail, sempre respondidas com boa vontade e rapidez. A opção por estas quatro histórias se deu mais ao fato de todas elas, além de incluírem elementos contidos nos outros depoimentos, simbolizarem muito bem o perfil do fã como alguém sempre interessado em assuntos relacionados ao seu ídolo, independente da música produzida. Estes quatro jovens me ligavam cobrando notícias da monografia, e “enchiam” meu correio eletrônico de material que julgavam ter alguma utilidade para mim. Percebia-se com facilidade o prazer que sentiam em falar de Legião Urbana, de suas músicas e das opiniões polêmicas de Renato Russo.

No decorrer destas páginas, cito o texto de Lila Abu-Lughod, Writing women’s worlds – bedouin stories, que apresenta novas possibilidades para o trabalho antropológico, ao dar plena voz ao grupo analisado, através de suas histórias cotidianas. Procurei, portanto, seguir esta linha na elaboração do último capítulo.

A tarefa de colher depoimentos de membros de fã-clubes da Legião Urbana não se mostrou das mais fáceis. Por motivos que a princípio me deixaram frustrado, não consegui estabelecer contato com muitos destes grupos de pessoas, apesar de minha insistência quase jornalística. Fiz uma relação de 34 fã-clubes da banda espalhados pelo Brasil, o que me dava a impressão de que seria apenas uma questão de tempo, até dispor de um farto material a ser analisado. Estes endereços foram selecionados aos poucos, através de revistas especializadas em música jovem e em páginas na internet. Tinha à minha disposição endereços eletrônicos e residenciais, e portanto, uma suposta garantia de ter sempre em mãos algum depoimento. Destes fã-clubes, 14 se concentravam no estado de São Paulo , 4 em Minas Gerais, 3 em Santa Catarina, 2 no Rio de Janeiro, e o restante, dividiam-se entre Bahia, Ceará, Pará, Espírito Santo, Goiás, Rio Grande do Sul, e no local de origem da banda, Brasília. Escrevi a todos eles, via internet, ou através da carta tradicional. Felizmente, os contatos que consegui manter me foram de uma riqueza muito grande, o que de certa forma, diminuiu um pouco a frustração pela falta de interesse da maioria em me responder. Também tive três cartas devolvidas pelo correio, uma indicando mudança de endereço e as outras duas, inexistência de número e do próprio endereço.

A estes jovens que tiveram tanta paciência em me responder através de cartas e e-mails, e que de certa forma, perderam alguma parte de seu tempo me atendendo inúmeras vezes ao telefone, só tenho o que agradecer. Este humilde trabalho é especialmente dedicado a eles.

CAPÍTULO I
A LEGIÃO URBANA NO CONTEXTO CULTURAL BRASILEIRO

A primeira rádio no Rio de Janeiro a tocar Legião Urbana seria a Fluminense FM, de Niterói, surgida em 1982. Esta rádio se tornaria pioneira ao lançar bandas brasileiras que tentavam um espaço no universo musical naquele período. O Brasil vivia um novo momento com a conquista da anistia no final dos anos 70, e a gradual abertura política. Na Europa e nos Estados Unidos, o movimento punk ganhava a cada dia novos adeptos, com jovens pregando uma ruptura total com o sistema capitalista vigente. Era uma nova forma de fazer música, onde não havia a necessidade de saber tocar, mas sim, a de tirar do instrumento alguns acordes que servissem de fundo para letras gritadas, criticando instituições e personalidades públicas, aliada a um visual que combinava roupas rasgadas com cabelos coloridos, alfinetes no nariz e tatuagens. Mas aqui no Brasil o acesso às notícias e à música produzida por estes novos rebeldes, seria quase que exclusivo do pessoal que vivia em Brasília. Filhos de diplomatas e militares, além de funcionários públicos de instituições como o Banco do Brasil, caso específico de Renato Russo, esta juventude que perambulava pelo Planalto Central, iria se deleitar ouvindo o som de grupos como Sex Pistols e The Clash, através de material trazido de fora.

Enquanto isso, no Rio, uma banda com apresentações quase circenses, começava a dar uma injeção de ânimo na cena musical brasileira: era a Blitz, liderada por Evandro Mesquita, um misto de cantor, compositor e ator. O compacto de estréia com a canção “Você não soube me amar”, com apenas um lado, venderia 100 mil cópias, em três meses, um feito para a época. As rádios não cessavam de tocar aquela música de refrão fácil, e o público não demorou a corresponder, elegendo aqueles jovens de aparência saudável como os ídolos de um novo tempo.

A casa de espetáculos Circo Voador, no bairro boêmio da Lapa e surgida no mesmo ano que a Rádio Fluminense, seria uma espécie de templo para aquelas pessoas que vislumbravam a possibilidade de extravasar energias tolhidas pelos anos da ditadura. É certo que a tal abertura ainda era algo frágil, basta lembrarmos que o próprio LP da Blitz, lançado meses depois do compacto, teria duas canções censuradas depois do álbum produzido, o que levaria a gravadora a inutilizar as faixas simplesmente arranhando os sulcos do disco. Mas o clima estava propenso para o surgimento destes novos artistas, e grupos como os cariocas Barão Vermelho, Lobão e os Ronaldos, Léo Jaime e os Miquinhos Amestrados (o líder, Léo Jaime era goiano), os paulistas Titãs e Ultraje a Rigor, e o brasiliense Paralamas do Sucesso, iriam, no rastro de Evandro Mesquita e sua trupe, apontar para a nova direção da música popular naquele momento.

Vale ressaltar que todos estes artistas, com exceção talvez do Barão Vermelho, tinham o humor como tônica das canções e apresentações. Ultraje a rigor e Léo Jaime, por exemplo, além de fazerem o público dançar, provocavam gargalhadas com suas letras de duplo sentido. E os discos vendiam, na mesma proporção que as casas de shows começavam a ficar pequenas. E a boa recepção dos Paralamas do Sucesso no eixo Rio-São Paulo, iria estimular outras bandas do planalto central a fazerem o mesmo trajeto. É o caso da Plebe Rude, do Capital Inicial e da Legião Urbana. Os membros destas três bandas estabeleceriam entre si uma amizade muito forte, que incluía revezamento de músicos e composições em parceria. E serão as composições destes grupos que darão uma nova face ao rock brasileiro, com letras explorando temas políticos e questionando os poderes oficiais. Neste quesito ninguém iria fazer isso com a intensidade de Renato Manfredini Jr, ou melhor, Renato Russo.

Desde criança Renato já se mostrava uma pessoa obstinada, vivia surpreendendo aos pais e a sua irmã mais nova, Carmem Teresa. Parecia sentir necessidade de ser o melhor no que tentasse fazer. E levaria esta obstinação por toda vida. Em Brasília, mesmo sabendo ser a irmã melhor desenhista que ele, resolveu entrar em um concurso de desenho realizado na Cultura Inglesa em que a própria Carmem estudava. A família riu da petulância do rapaz. E riria de surpresa, ao ver, dias depois, o filho entrar em casa esbaforido, com a medalha e o livro do prêmio. Ganhara o concurso! Leitor voraz de livros, desde cedo aprendera inglês, por conta de uma estadia de dois anos nos Estados Unidos com a família, devido ao trabalho do pai. Esta dedicação ao idioma estrangeiro iria lhe abrir mais tarde as portas para um emprego de professor na Cultura Inglesa, com a idade mínima exigida para a função. O jornalista Arthur Dapieve, em sua biografia sobre o artista, destaca um momento importante deste período: “Quando, em 1978, o príncipe Charles, da Inglaterra, passou por Brasília em sua visita oficial de nove dias ao país – visita que ficaria célebre pelos passos de samba que o herdeiro do trono britânico arriscaria a dar com a passista careca Pinah, da Beija-Flor – um de seus compromissos era a inauguração da nova sede da Cultura Inglesa. Naquele dia 13 de março, o professor escolhido para saudar Charles Philip Arthur George Windsor, de 30 anos, num discurso de pronúncia impecável, foi Renato Manfredini Jr., a dias de completar 18 anos.” (Dapieve, 2000:19)

A juventude do futuro líder da Legião Urbana, passada em Brasília, iria trazer o contato com a música e a estética punk, o que o faria abandonar de vez o piano, onde ensaiava canções de grupos como Emerson, Lake and Palmer. A banda que iria mudar a concepção musical de Renato Russo viria da Inglaterra: “Quem lhe trouxera as boas novas (...) havia sido um professor da Cultura Inglesa, um escocês chamado Ian. De volta de um viagem às ilhas britânicas na virada de 1977 para 1978, ele falou de uma banda chamada Sex Pistols, que, entre outras coisas, havia chamado a rainha de ‘débil mental’ e fazia rocks viscerais de três ou quatro acordes.” (Dapieve, 2000:29) Aos poucos Renato conseguia uma revista importada com reportagens sobre o grupo, um colega chegava de viagem trazendo algum disco, e aqueles contatos iam moldando o estilo musical que iria mais tarde, influenciar uma geração de adolescentes. Renato agora se dedicava a tocar baixo e violão.

A banda Legião Urbana se originaria de duas outras: o Aborto Elétrico, liderada por Renato, e Dado e o Reino Animal, do guitarrista Dado Villa-Lobos. Com uma formação oscilante a princípio, tempos depois estariam integrados Renato Rocha, conhecido como Negrette, baixista de extrema formação punk, e Marcelo Bonfá, um paulista cujo pai também era alto funcionário do Banco do Brasil. O Aborto Elétrico fazia um som direto e estridente, com temas considerados tabu para a época: drogas, violência policial, críticas ao sistema educacional. E arregimentava um pequeno mas entusiasmado grupo de fãs. A tragédia marcaria a história do Aborto, assim como a da banda que os influenciava, os Sex Pistols. André Pretorius, amigo de Renato e guitarrista do grupo, era filho do embaixador da África do Sul no Brasil, e não conseguia se conformar com a situação do pai servir a um regime racista e opressor. Ser convocado pouco depois da formação do Aborto Elétrico para servir ao exército sul-africano por dois anos selaria o destino de André de uma forma cruel: jamais seria o mesmo rapaz rebelde que fez amizade com Renato Russo apenas ao mencionarem a palavra “Sex Pistols”. Em sua volta a Brasília, depois de ter exercido o trabalho militar, andava cabisbaixo, incrivelmente triste. Assim como o baixista da banda inglesa predileta dos dois amigos, Sid Vicious, André morreria tempos depois de uma dose excessiva de heroína, na Alemanha. O golpe destas duas mortes acompanharia Renato Russo para sempre.

Depois de muitos ensaios e apresentações em Brasília, já com uma formação estável, a Legião Urbana decidiria tentar a sorte no Rio de Janeiro. Um show no Circo Voador na noite de 23 de julho de 1983, ao lado de Capital Inicial e Lobão seria a estréia da banda nos palcos cariocas. Pouco tempo depois começaria a tocar na Rádio Fluminense sua fita-demo com as canções “Ainda é cedo” e “Geração Coca-cola”, sendo que esta última rapidamente se transformaria em uma espécie de hino para os jovens que entoavam os sucessos da Blitz. Aquela banda de Brasília trazia algo diferente nas letras, ainda que o som tirado dos instrumentos fosse bastante amador. Não demorariam muito a conseguir empresário e gravadora, tendo em vista o clima favorável ao lançamento de novas bandas. O primeiro disco da Legião, com 11 faixas, seria lançado em janeiro de 1985, no momento em que a mídia musical só falava em um assunto: O festival Rock in Rio, a ser realizado entre 11 e 20 de janeiro.

Não há nenhuma dúvida que este festival vai representar, no Brasil dos anos 80, um “divisor de águas” na estrutura dos shows de música. Com uma lista de artistas estrangeiros que incluía Rod Stewart, Queen, Iron Maiden, entre outros, as apresentações destes astros mundialmente conhecidos iriam mostrar que não haveria mais, depois do dia 20 de janeiro, espaço para o amadorismo que era uma das marcas do rock brasileiro emergente. Com exceção de Cazuza, a frente do Barão Vermelho, que se apresentou como se já estivesse acostumado a grandes públicos, a maioria dos shows brasileiros seria marcada pelo nervosismo. E pelas vaias. As milhares de pessoas que se dispuseram a encarar as dificuldades que era chegar ao local dos shows, estavam ávidas pelas apresentações internacionais, com grande expectativa em torno dos grupos do chamado rock pesado. Não foram poucos os artistas brasileiros que tiveram como recepção vaias e chuvas de pedras, tendo que antecipar o final de suas apresentações.

Passado o impacto do festival, os grupos brasileiros começariam a investir em instrumentos, em estúdios e alguns a recorrerem a produtores estrangeiros. A banda RPM inovaria usando um equipamento de iluminação com raio lazer moderníssimo para os padrões da época, e fazendo nada mais que 270 apresentações do show Rádio Pirata. Na euforia inicial do Governo Sarney, seu disco venderia 2, 6 milhões de cópias, levando o vocalista Paulo Ricardo a ser tornar o símbolo sexual do momento. Mas o primeiro disco da Legião Urbana, ia, pouco a pouco, caindo no gosto do público, com músicas como “Será”, além de “Ainda é cedo” e “Geração Coca-cola”, tocando incessantemente nas rádios. “Soldados”, com uma letra que tinha como tema a descoberta do amor entre dois homens no front de batalha, mostrava que o grupo tinha coisas diferentes a dizer.

O segundo disco, apenas intitulado Dois, lançado em julho de 1986, seria a consolidação do sucesso junto ao público, com as canções “Tempo perdido” e “Eduardo e Mônica”, sendo alçadas à condição de “clássicos” da banda. Depois deste disco, a vida não seria mais a mesma para os membros do grupo, que alcançavam o sonhado estrelato. Os shows com lotações esgotadas e confusões entre Renato Russo e o público seriam um fato comum na carreira da banda a partir deste momento. Com um temperamento para lá de explosivo, Renato não hesitava em interromper um show para repreender um fã que estivesse brigando com alguém ou que jogasse algum objeto no palco. Estes acontecimentos iam contribuindo para a construção, por parte da mídia, da visão do cantor como uma pessoa muito difícil. E que não evitava uma polêmica para defender suas idéias e o trabalho da banda. Já em 1985, declarava sem receios:

“Certas pessoas não estão dispostas ou então não tem capacidade de ouvir o que a gente fala. Quer dizer, ou então não gosta mesmo, preferem ouvir coisas mais leves (...) do que ouvir uma coisa um pouco mais realista, e o nosso trabalho é assim, mais ligado a coisas realistas e não em blau-blaus e Vaquinha Mary Lou, etc.” (Correio Braziliense, 17 de novembro de 1985)

Renato Russo queria se referir às canções “Meu ursinho Blau-blau” e “Marylou”, das bandas Absyntho e Ultraje a Rigor, respectivamente, que com suas composições bem humoradas agradavam muito ao público da época. Alguns astros da MPB, que começavam a esboçar críticas ao rock brasileiro que a cada dia ganhava mais espaço, não escapariam de seus comentários ácidos. É o caso do cearense Fagner:

“(...)eles falam muito mal do rock, principalmente o Fagner, que fala mal. Eu gostaria até de não comprar briga, mas eu gostaria de deixar uma coisa bem clara: o Fagner fala que o pessoal da geração dele tem mais cultura. Agora eu coloco justamente esta questão que o Jornal do Brasil falou: não é o Renato Russo que está falando, eu estou simplesmente repetindo uma coisa que eu achei um achado genial. O Fagner disse que o pessoal da geração dele tem mais cultura, mas pelo menos da nossa geração ninguém roubou poesia da Cecília Meireles para colocar em música sem pagar direito autoral. Então a gente tem a nossa cultura mas não faz esse tipo de coisas.” (Correio Braziliense, 17 de novembro de 1985)
O jornalista Tarik de Souza, do Jornal do Brasil, ao chamá-lo em um artigo de neo-Jerry Adriani, não ficaria sem resposta:
“Olha, eu acho o Tarik um cara superlegal, mas ele entende é de MPB. Uma coisa que me irrita um pouco são pessoas de determinadas áreas falando de áreas que não são delas. Eu não entendo nada de MPB (...), eu não posso me meter a fazer crítica do disco do Moreira da Silva. O Tarik não tem base pra falar de rock.” (Correio Braziliense, 18 de fevereiro de 1986)

E atitudes do público como atirar objetos no palco se tornariam motivo de extrema irritação por parte do cantor, ficando como uma espécie de marca registrada:

“A gente tá falando: ‘Brigar pra que, se é sem querer’ [trecho da canção Será]. Já tinha tido um incidente com o Arnaldo [Arnaldo Antunes, um dos vocalistas do grupo paulista Titãs, atingido com uma garrafa durante uma apresentação] e eu falei: podem tacar uma bolinha de papel, se foi com má intenção, eu paro! Tá pensando o que? Eu não sou mártir, não tenho que ficar agüentando moleque mal resolvido.” (Revista Bizz, abril de 1986) [As inserções entre colchetes são minhas]

Se restava alguma dúvida quanto à permanência da Legião Urbana no cenário musical após os dois discos lançados, o terceiro viria para mostrar que aqueles rapazes de Brasília estavam escrevendo uma parte na história da música no Brasil. Que país é este - 1978-1987, trazendo canções do Aborto Elétrico aliadas à composições novas, comprovaria que mesmo não sendo grandes músicos, tinham talento e capacidade criativa para romper com certos conceitos do mercado fonográfico. A canção “Faroeste Caboclo”, com 159 versos trazendo alguns palavrões e duração de quase nove minutos, iria para o primeiro lugar em todas as paradas de sucesso, forçando modificações nas programações de rádios e televisão. Com o tempo que levava a “história de João de Santo Cristo”, as rádios podiam tocar três canções! E durante muito tempo, fosse no ônibus, nas escolas, no mercado, sempre havia alguém tentando entoar corretamente aqueles longos versos, numa demonstração que a Legião Urbana estava indo além do público roqueiro. O sucesso do disco Que país é este também mostraria que o tempo dos shows em casas noturnas era coisa de passado. É como diria Dado Villa-Lobos, o guitarrista da banda, meio assustado: “A excursão de Legião Urbana foi feita em casas noturnas, a de Dois em ginásios, a de Que pais é este em estádios de futebol.” (Dapieve, 2000: 88)

A excursão de lançamento deste álbum, após o enorme sucesso das canções nas rádios, seria a confirmação do status de uma das maiores bandas do rock brasileiro. Todos os ingredientes necessários para a mitificação de um artista se encontravam presentes naquele momento. E o aspecto da tragédia, essencial para esta mitificação, mostraria sua face no show de 18 de junho de 1988, no estádio Mané Garrincha, em Brasília. O distrito federal literalmente havia parado para a apresentação da Legião, os meios de comunicação locais não falavam de outro assunto. Filas para a compra de ingressos que se esgotaram em poucos dias, e muita expectativa antes do show, que ficaria marcado por seguidos incidentes. Durante a apresentação, um rapaz deficiente físico, de muletas, conseguiria romper o esquema de segurança e se atracar com Renato Russo no palco, dizendo-se curado do seu problema! Brigas entre o público, a violência dos seguranças, e a insistência de um grupo de jovens em atirar bombas ao palco, tiraram totalmente o controle emocional de Renato, que, mais uma vez, depois de uma série de reprimendas aos fãs, decidiu interromper a apresentação. Só que desta vez o resultado seria de grandes proporções, com os jovens reagindo, depredando o estádio e queimando ônibus e carros nas redondezas. O saldo oficial de 385 feridos e 64 ônibus destruídos faria com que o governo do Distrito Federal responsabilizasse Renato Russo por incitação do público à violência. As paredes próximas à casa de seus pais amanheceriam pichadas com os dizeres: “Legião, não voltem nunca mais!” Para o cantor, que alardeava para todos o seu amor à Brasília, além de mergulhá-lo em uma profunda tristeza, aqueles acontecimentos contribuiriam em muito para a sua cada vez maior aversão aos palcos. As apresentações agora seriam escassas, o que de certa forma, só servia para aumentar a expectativa de um público que só crescia.

Com o álbum As quatro estações, de 1989, trazendo a canção “Pais e filhos”, (com os versos “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”), e “Meninos e meninas”, em que Renato, pela primeira vez falava de forma direta sobre suas preferências sexuais, a Legião manteria o seu lugar no pódio da música jovem brasileira. As letras estavam cada vez mais pessoais, e as entrevistas, ainda que raras, tratavam de temas cada vez mais contundentes. Alguns jornalistas afirmam que neste período (início dos anos 90), o cantor teria confirmado, após uma internação, seu diagnóstico de portador do HIV. A depressão e as crises ficariam ainda mais freqüentes. No dia 7 de julho de 1990, morreria vitimado pela Aids, Cazuza, ex-vocalista do Barão Vermelho, e considerado por muitos como o outro grande poeta da música jovem, ao lado de Renato. A Legião Urbana daria neste mesmo dia um show no Jockey Club da Gávea, no Rio de Janeiro, após dois anos longe dos palcos cariocas. Como sempre, os organizadores não conseguiram prever o que significava uma apresentação da Legião Urbana para um público de devoção religiosa. Os 40 mil ingressos colocados à venda, mostraram-se já no final da tarde, insuficientes, forçando a organização a abrir os portões, para impedir uma possível tragédia. Calcula-se que 60 mil pessoas assistiram àquela apresentação, que ficaria como uma homenagem a Cazuza. Nos próximos anos o sucesso da banda se manteria intacto, com um séquito de fãs cada vez maior.

O último show da Legião seria no dia 14 de janeiro de 1995, para a promoção do seu quinto disco (de estúdio), O descobrimento do Brasil. A casa Reggae Night, em Santos, lotada, assistiria Renato Russo cantar durante exatos 45 minutos deitado no palco, em protesto contra uma lata de cerveja atirada contra ele. A partir daquele acontecimento, todos, empresário e músicos, sabiam que nunca mais haveria uma apresentação ao vivo da banda. O cantor, a cada dia mais depressivo, passaria dias trancado em seu apartamento em Ipanema, sem dar notícias, sem falar com ninguém. Rumores sobre o seu estado de saúde circulavam no meio especializado, mas nada era confirmado. A opção de Renato pelo homossexualismo agora era conhecida por todos, e pouco antes dos sintomas da doença aparecerem, ele fazia cada vez mais questão de se assumir publicamente. E participava com certa freqüência de reuniões de ONGS que defendiam os direitos dos homossexuais, além de contribuir financeiramente com altas quantias.

Os comentários sobre sua saúde iriam aumentar muito mais após o disco A tempestade, lançado em setembro de 1996. A canção A via láctea, com versos como “Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira / e quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima”, era a forma encontrada de dizer ao público que seu ídolo não ia nada bem. Ao se negar posar para as fotos de divulgação do álbum, fato que já havia acontecido anteriormente durante o lançamento de seu disco solo gravado em italiano, Renato Russo dava as peças do quebra-cabeças para os jornalistas encaixarem e tirarem suas conclusões. Os boatos sobre suicídio também circulavam, alarmando amigos e fãs por todo o Brasil. Mas no dia 11 de outubro de 1996, pela manhã, todos os boatos se encerrariam: o vocalista da Legião Urbana morria, sozinho, aos 36 anos de idade, em seu apartamento em Ipanema, de infecção generalizada causada pela AIDS. Estava pesando 45 quilos. O porta-voz da juventude brasileira se calava, entristecendo mais ainda um público que ainda não se refizera da morte trágica do grupo Mamonas Assassinas .

Por vontade do cantor, seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas no sítio do paisagista Burle Marx, em Barra de Guaratiba, na zona oeste do Rio de Janeiro. Apesar da família optar pela discrição na despedida ao corpo do cantor, muitos admiradores se posicionaram em frente ao crematório e, entoando as canções do ídolo, prestaram ao seu modo, suas homenagens. As revistas e jornais do país dedicavam páginas e matérias especiais sobre o artista, as tvs exibiam especiais com depoimentos e shows. E as rádios voltavam a tocar Legião Urbana com a mesma intensidade quando do lançamento de “Faroeste Caboclo.”

Em sua biografia do cantor, Dapieve nos dá alguns números: “No momento em que escrevo [seu livro, Renato Russo – o trovador solitário] manhã de 21 de julho de 2000, quase quatro anos após a morte de Renato, a Legião Urbana continua sendo a maior vendedora da EMI-Odeon brasileira. Mais de 12 milhões de discos de Renato, Dado, Marcelo e Negrete foram vendidos até hoje. Apenas os discos solo de Renato, em língua estrangeira, o que teoricamente dificultariam sua assimilação, já ultrapassam a casa do 1,5 milhão de cópias.” (Dapieve, 2000: 169) Para o mercado fonográfico nacional são números expressivos, se levarmos em conta o estilo musical da banda e a crescente queda nas vendas em geral. Para termos uma noção melhor, vale citar um artigo de Pedro Alexandre Sanches, publicado na Folha de São Paulo, de 28 de dezembro de 2001, intitulado “Indústria fonográfica emperra na marca de 1 milhão de cópias vendidas”:

“Acostumadas até há poucos anos com a venda desabalada de produtos de consumo rápido, as gravadoras de música brasileira saem de 2001 mais modestas do que entraram. Foi difícil ultrapassar a barreira de 1 milhão de cópias vendidas, e, no fim do ano, quem mais comemorou foi a Sony, que declarou se desincumbir em uma semana (antes do Natal) de 1,3 milhão de cópias prensadas do novo Roberto Carlos. Atrás dele vieram Zezé de Camargo & Luciano (1 milhão) e os pimpolhos do KLB (750 mil). Números excepcionais teve, na média, a jovem Abril Music, com Bruno & Marrone (1,5 milhão) e Falamansa (1,4 milhão). A Universal precisou do padre Marcelo Rossi (950 mil) e dos pixotes Sandy & Jr. (800 mil) para sonhar de longe com as vendagens gigantes de anos recentes. A BMG foi mal, só batendo as 750 mil cópias com Leonardo; bem atrás dele ficou Ana Carolina (300 mil). A EMI foi pior ainda, apelando de novo aos mortos (Legião Urbana, com 660 mil); com os vivos, não passou de 350 mil, do pagodeiro Belo. (...)”

O jornalista Humberto Finatti sintetiza muito bem esta identificação dos fãs com o cantor: “Renato Russo bradava discursos irados contra as injustiças do mundo ou destilava letras sentimentais, impregnadas de uma poesia bela, ultrapassional e romântica, dissecando as dores da alma e do coração quando o amor não dava certo. Ou seja, Russo era uma espécie de ‘tiozão’ ou ‘irmão mais velho’, que falava aquilo que a garotada queria ouvir. Tornou-se um guru, um messias para uma legião de adolescentes que procuravam um norte e que encontraram nas canções da Legião, um sentido para suas vidas sem direção. Por isso, nunca mais deverá existir outra banda com a força e a importância que a Legião Urbana possuiu. Eles serão eternos, inesquecíveis e insubstituíveis.” (Revista Transamérica, número 22, dezembro de 1999).[Os grifos são meus]

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