Sexo sem Beijo - Alguns Aspectos Sobre
a Baixa Prostituição do Rio de Janeiro #2
Por Paulo Henrique Dantas
Noite de sábado. Acompanhado de dois colegas, vou à casa onde trabalha minha principal informante, Marcinha, que é uma das duas garotas que tem conhecimento do meu trabalho. Sentamo-nos à mesa próxima ao balcão, peço uma cerveja, em seguida pergunto pela “minha” garota. A gerente, que está nos servindo a bebida, diz não saber, mas entre palavras não muito claras, diz que pode arrumar o que quero. Sei que fala de cocaína. Dou um sorriso, digo que hoje estamos a fim apenas de cerveja. Uma jovem negra e bonita se aproxima, puxa uma cadeira e senta-se à nossa mesa. Cobre o corpo apenas com uma toalha e a todo momento faz questão de mostrar suas partes íntimas. Seu nariz está escorrendo. Faz a oferta de um programa com nós três. “Você não vai nos agüentar”, brinco com ela, alisando seus cabelos molhados. Meus colegas ainda estão tímidos, era a primeira vez que visitavam a Vila Mimosa. O nome da garota é Valéria e não parece ter mais que vinte anos. No instante em que peço mais uma cerveja, dois homens aparecem à porta e chamam Valéria. A gerente e mais outras três garotas fingem olhar um caderno atrás do balcão, estão curiosas. Procuro não aparentar interesse na conversa que se desenrola próxima a nós, mas ouço um dos homens falando de Marcinha. Alguns minutos de conversa e Valéria retorna à nossa mesa, bebe um copo de cerveja e depois conta para as garotas: aqueles caras, policiais, procuravam por Marcinha devido à uma denúncia de que ela estaria vendendo drogas naquela casa. Era claro que o desejo deles não era prender minha informante, mas provavelmente extorquí-la, arrancar-lhe dinheiro através de ameaças. Na Vila existem pessoas certas que vendem cocaína e maconha, todos que ali freqüentam as conhecem. A cocaína é vendida rapidamente, a todo momento é necessário recarregar o estoque, que vem do Morro da Mangueira na sua grande maioria. Maconha é uma droga rara na Vila e a explicação é muito fácil: o cheiro que emana da fumaça é logo detectado, os seguranças reprimem, além dos policiais que circulam sempre pela área. A cocaína já é facilmente consumida nos banheiros e quartos, em questão de segundos, dificilmente levantando suspeitas.

Por todas as noites em que permaneci na Vila Mimosa, tudo que presenciei fica como um grande aprendizado. Não tenho dúvidas em afirmar que os trabalhos antropológicos com “desviantes” que apresentam riqueza de detalhes de toda a estrutura e funcionamento do grupo e local estudados são o resultado de muito esforço e dedicação por parte do pesquisador. E também de uma constante “luta” em saber onde deixar sua subjetividade influir no trabalho. Como reagir diante de uma prostituta de quinze anos de idade, que diz detestar o que faz, mas que está ali para sustentar a mãe doente, ou o filho pequeno? Ou quando durante uma conversa a garota apanha um papelote de cocaína e cheira ali mesmo, diante de seus olhos? A interpretação destes atos e discursos vai requerer muito mais de uma experiência de vida por parte do antropólogo, do que seus anos de estudo acadêmico. Aquela “fisgada” inevitável da emoção, aquilo que a Dra. Jean Carter denominou de anthropological blues deve ser reconhecido como tal e expresso no trabalho, de forma a “humanizar” os resultados. Uma ruptura na frigidez científica.

2 - As escalas da prostituição: a difícil vida da “mulher da vida”

No livro Garotas de Programa, Maria Dulce Gaspar trabalha com a média prostituição, e enfatiza na introdução do texto a existência de diferenças entre as escalas desta atividade. Em nota de pé de página diz: “Enquanto em relação à baixa prostituição existem no Brasil vários trabalhos em sociologia e antropologia (...) e muitos artigos de cunho religioso e autobiográfico, sobre a alta prostituição há poucas referências e desconheço trabalhos sociológicos.” A “alta prostituição” seria a tendência para o futuro desta forma de ganhar a vida nos grandes centros urbanos. As garotas agiriam sob seu próprio controle, publicando anúncios em jornais com número de telefone para contato. Muitas vezes no próprio anúncio fazem questão de deixar claro o seu cliente “alvo”: executivos de bom gosto. O valor estabelecido por elas geralmente só é acessível a pessoas de alto poder aquisitivo. A ida da prostituta ao local indicado pelo cliente é característica deste tipo de prostituição. Os gastos com o táxi ou com o combustível do carro da garota também é, na maioria das vezes, de responsabilidade do cliente. Um anúncio de jornal serve bem para ilustrar: “Letícia Swiultz, Coelhinha Playboy 97. Neta de alemães. Loura sensual, 22 anos, olhos verdes, 1,70 alt., fina e discreta. Sem decepções! Atendimento classe A. Somente a executivos e casais de extremo gosto. Faço acompanhamento à viagens ao exterior. Cachê: R$ 300,00. Tel.: 9971-**30.”

A média prostituição (estudada por Gaspar) seria aquela praticada em boates e casas de massagens espalhadas por toda a cidade. Suas praticantes, como regra geral, possuem aparência produzida e não estão “expostas” nas ruas, portanto, segundo a concepção delas, correm riscos menores que as praticantes da baixa prostituição. Porém, risco menor não quer dizer que não estão correndo algum perigo, pois isto é um fato real de todas as escalas da prostituição. Seria o tal “perigo latente” enfatizado por Gaspar: “Um dos aspectos mais proeminentes no meu trabalho de campo foram os relatos das mulheres sobre violência. Durante esse período era sempre lembrado o caso ocorrido com uma das prostitutas que, no curso de um programa, fôra jogada por um cliente pela janela de um apartamento da rua Prado Júnior”. Um ponto considerado importante para a opção destas mulheres pelo trabalho em boates e casas de massagens seria justamente por buscarem uma maior segurança, ainda que relativa, afinal, entre quatro paredes, tudo pode acontecer. O preço do programa nestes lugares costuma variar de acordo com o bairro. Nas casas de massagens o valor é único para todas as garotas e costuma ser cobrado de acordo com o tempo que o cliente pretende ficar com a garota. Por exemplo, R$ 50,00 por trinta minutos, R$ 80,00 por uma hora, e assim por diante. Existe uma tabela e a mulher deve sempre assinar nas páginas de um livro controlado por um gerente a cada vez que levar um cliente para o seu quarto, ou “cabine”, como costumam chamar (estes livros para assinatura também existem nas casas da Vila Mimosa). Já as prostitutas que freqüentam as boates estabelecem seu próprio preço, e não costumam ter um vínculo muito grande com os donos ou gerentes destes estabelecimentos. Em geral fazem um acordo verbal, comprometendo-se a fazer com que os clientes consumam o máximo possível em bebidas e aperitivos.

Ainda contextualizando-nos ao quadro do meio urbano do Rio de Janeiro, procuro identificar como praticantes da baixa prostituição mulheres de diversas idades que negociam o corpo nas ruas, em áreas como a Quinta da Boa Vista e Central do Brasil, e na Vila Mimosa, o local escolhido para o meu estudo. Geralmente são mulheres que não fazem muitas exigências ao cliente e com um grau de promiscuidade maior que as das outras escalas. Estão freqüentemente dispostas a praticar o ato sexual não apenas em lugares exclusivos como os hotéis, sendo mais comum o interior dos carros e as áreas mal iluminadas (no caso específico da Quinta da Boa Vista). É dentro desta escala da prostituição que se encontra o maior número de mães e viciadas em drogas. A violência quase explícita nestas áreas é um ingrediente que completa o quadro, sendo característica de todos os personagens, sejam as mulheres, clientes ou freqüentadores. Fenômeno não exclusivo dos grandes centros urbanos, a baixa prostituição tem sido uma saída encontrada por milhares de mulheres para resolverem questões financeiras. Um exemplo que pode ser citado seria o das jovens que fazem programas em praias do litoral da Ilha Grande. Segue o trecho de uma reportagem: “J., 15 anos, uma das mais conhecidas do local, é uma das nativas da Ilha. Morena, esguia, é apontada como pioneira. (...) V.,16 anos, também começou a carreira com rapazolas da Ilha. Hoje, é uma das mais requisitadas. Cobra até R$ 10,00 para “rolar na areia”. Diz que só aceita encontros nas noites em fins de semana. Seu medo maior é o de ser presa e sua família descobrir sua vida dupla. (...) As meninas do Abraão, por exemplo, são conhecidas como cinquinho, uma referência ao preço médio de R$ 5,00 por um programa, geralmente nas praias desertas e escuras.” (Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 16 de março de 1997)

Nas noites de domingo, um cliente consegue arrumar facilmente um programa por R$ 10,00 na Vila Mimosa. O galpão está vazio, e as poucas mulheres que ainda permanecem ali, têm que levar algum dinheiro para casa ou tomar uma dose de alguma droga. Sendo obrigatório o pagamento de R$ 5,00 a cada vez que ela sobe ao quarto com um homem, resta-lhes apenas R$ 5,00 do programa feito, o que dentro da sua realidade, dificilmente dará para alguma coisa. Sujeitando-se a esta situação, enquanto aguarda um próximo cliente, que com o correr da madrugada se torna mais raro, é provável que Marcinha, ou Valéria, ou quase todas elas, busquem consolo numa carreira de cocaína.

O medo é fator resultante do “perigo latente”, que parece sempre rondar as prostitutas, algo que está sempre pronto para mostrar as garras e provocar algum mal a elas. No caso da obra citada, Garotas de programa, para as mulheres todos os clientes deveriam ser muito avaliados durante a abordagem, buscando descobrir assim algum sinal que revelasse alguma mania estranha, alguma possibilidade de atitudes violentas.

Na Vila Mimosa e em outras áreas da baixa prostituição, o medo também está presente, talvez de uma forma até maior, porém, curiosamente, o “cliente” mais temido é o policial. Segundo elas, os policiais estão sempre procurando as viciadas, sobem aos seus quartos, para depois se identificarem e terem seus momentos de prazer gratuitamente, ameaçando levá-las por consumo de drogas. A prostituta já tem um certo temor em relação à polícia, e quando ela também é uma viciada, este temor assume proporções quase dramáticas. Uma certa vez, comecei a conversar com Nádia, uma morena com tranças rastafári que dizia estar “doida pra dar um téco”, ou seja, cheirar cocaína. Vestia apenas uma camiseta branca com a estampa de Bob Marley sobre o corpo nu. Pediu-me uma nota qualquer, para improvisar um canudo. Emprestei-lhe uma de um real e ela entrou no banheiro, saindo minutos depois com o nariz escorrendo e sorrindo desconfiada. Perguntou-me se eu era policial. “Claro que não”, eu disse, mas não a convenci. Sua fisionomia mudara, ela agora dizia que provavelmente eu estava ali para prendê-la, para investigar as outras garotas e essas coisas todas. A minha “salvação” foi que avistei Marcinha e a chamei para esclarecer o “mal-entendido”. Hoje, quando encontro Nádia na Vila, ainda brinco com este episódio.


3 - A construção da identidade social e a noção de desvio

Maria Dulce Gaspar define prostituição “como um contínuo de relações possíveis entre homens e mulheres que combinam sexo e dinheiro sem passar pelo casamento ou pela procriação”. A prostituta desempenharia um papel determinado em uma área específica, com atitudes próprias ao local, que Park vai definir como “região moral”, ou seja, uma área freqüentada por indivíduos com gostos semelhantes e que estabelecem regras próprias para esta mesma área, onde são comuns hábitos que são reprimidos e considerados inadequados para o cotidiano do indivíduo “normal”. Vale lembrar que uma região moral não significa necessariamente que seja um local onde ocorram práticas criminosas e anormais. A idéia, diz Park: “(...) foi proposta para se aplicar a regiões onde prevaleça um código moral divergente, por uma região em que as pessoas que a habitam são dominadas, de uma maneira que as pessoas normalmente não o são, por um gosto, por uma paixão, ou por algum interesse que tem suas raízes diretamente na natureza original do indivíduo.” E completa: “Uma região moral não é necessariamente um local de domicílio. Pode ser apenas um ponto de encontro, um local de reunião.”

Acredito que o local exerça poder determinante no desempenho dos papéis de indivíduos em atitudes consideradas “desviantes”. É certo que em uma sociedade onde a nossa aparência praticamente diz quem somos, ao nível do senso comum a prostituta seria uma pessoa facilmente identificável. Roupas justas e curtas, pintura forte no rosto, gestos forçosamente sensuais e uma determinada maneira de falar, tudo isso facilitaria no reconhecimento de uma prostituta. Afinal, quantas vezes já não ouvimos a seguinte frase: “Ela parece uma puta.”? Porém, é o local que confirmará, ou reforçará esta identidade. No seu “habitat” esta jovem não precisa se preocupar em não falar palavras grosseiras na frente de outras pessoas, Não precisa sentar-se de forma comportada. O que todos querem ali é justamente o contrário, que ela seja promíscua, desbocada e que passe a idéia de amar a sua profissão. O que o cliente busca na prostituta é o oposto do que deseja para namorada ou esposa, é o sexo sem nenhum compromisso afetivo.

É certo que a identidade de indivíduos em desvio é em parte definida pelo grupo dominante, sendo complementada com um certo “consentimento” destes indivíduos. A mulher que desempenha o papel de prostituta sabe da sua condição, sabe como é vista pela sociedade, e não espera nunca ser reconhecida como apenas mais uma profissional, como outra qualquer. Perante a sociedade ela nunca será vista com bons olhos. Segundo Gilberto Velho, a família seria o “foco legitimador da sociabilidade” em sociedades como a nossa, e sendo assim, qualquer elemento que indicasse para uma ruptura no desempenho de papéis como o de filho, esposa ou pai, por exemplo, seria considerado “altamente perigoso”. Sob este ponto de vista, categorias como as de “drogados”, “homossexuais”, “prostitutas”, entre outras, estariam enquadradas como desviantes, ou seja, ameaçadoras das relações sociais.
Os mecanismos de defesa serviriam como um “escudo” contra esta sociedade que tenta impor regras comportamentais de caráter geral. Para a prostituta, o uso de drogas, o escândalo, até mesmo seus gestos e roupas, servem para mostrar sua força, uma força que ela acredita possuir, e que a maioria dos clientes tende a reconhecer. A identidade da prostituta é definida pela forma como ela desempenha os seus papéis num ambiente determinado.

Tive a oportunidade de visitar residências de três jovens que trabalham na Vila Mimosa, uma que morava em Nilópolis, uma outra em Comendador Soares e a terceira em Alcântara. Nos bairros onde viviam, nenhum dos vizinhos tinha conhecimento das suas atividades e as tratavam com respeito, de uma forma comum. Sendo as três mães solteiras, passeavam com os filhos normalmente e se portavam como donas de casa, levando uma vida simples e fazendo planos, ainda que reconhecendo a dificuldade de realização. Uma dizia para os vizinhos que era auxiliar de enfermagem, sempre saía vestida de branco. Outra dizia trabalhar em um hotel na zona sul, apenas uma não se preocupava em dar satisfação da sua vida a ninguém. Pude acompanhar a chegada dessas garotas para uma noite de trabalho na Vila Mimosa. A transformação se dá de forma rápida. Em poucos momentos a roupa branca dá lugar a um vestido preto, justo e sensual. A mãe delicada e atenciosa agora é uma mulher especialista em sexo, que subirá ao quarto, numa noite considerada fraca, pelo menos cinco vezes.

É importante estar preparado para as dificuldades e limites que são impostos ao estudo de grupos “desviantes”. Mais uma vez será Gilberto Velho que nos apresentará uma discussão brilhante envolvendo este assunto em seu texto O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social. Chamando a atenção para a necessidade de utilizar este conceito com o devido cuidado, Velho tenta estabelecer uma ponte entre a antropologia social e a psicologia. Ambas as ciências têm necessidade de se aproveitar de elementos uma da outra. Não existiria a possibilidade de um estudo neste sentido apresentar resultados satisfatórios quando o pesquisador adota a perspectiva de separação completa entre o individual (ou psicológico) e o sócio-cultural. Geralmente os estudiosos procurariam uma ou outra perspectiva, como enfatiza Velho: “(...) é possível perceber como os estudos sobre comportamento desviante oscilam entre um psicologismo e um sociologismo. (...) Ou se cria uma individualidade “pura”, uma “essência” defrontando-se com o meio ambiente exterior, de outra qualidade, ou então um fato social “puro”, também todo-poderoso, que paira sobre as pessoas”. E completa: “(...) a dicotomia indivíduo x sociedade e/ou cultura é que determina esses caminhos. Não se trata de negar a especificidade de fenômenos psicológicos, sociais, biológicos ou culturais, mas sim reafirmar a importância de não perder de vista o seu caráter de inter-relacionamento complexo e permanente.” Certamente que adotando uma visão interacionista teríamos a possibilidade de um trabalho mais dinâmico e abrangente.

Conclusão


A natureza deste trabalho é, no momento, incompleta. O que tentei apresentar nestas poucas páginas é um esboço de algo que venho tentando dar forma, um estudo relacionado a prostituição e consumo de drogas. Espero que pelo menos em parte, tenha conseguido passar o que pretendo desenvolver futuramente.

Acredito que a demonstração dos aspectos humanos que se expõem durante a pesquisa deva ser sempre enfatizada, como defende Roberto DaMatta em O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues. Ainda que adotando o conceito de “desvio” com reservas, cabe lembrar que todos os indivíduos enquadrados nesta categoria, sejam eles prostitutas, viciados em drogas, presidiários, homossexuais, ou qualquer outro “rótulo” que possam lhes nomear, são acima de tudo, seres humanos. E sempre terão algo a nos passar que não encontraremos no mundo acadêmico, alguma lição de vida ou mensagem, que podemos levar durante muito tempo em nossa “caixa de emoções”, e que ao abrirmos, podemos dar um sorriso disfarçado, ou sentir uma lágrima escorrendo no canto dos olhos.