As Funções da Psique e a Individuação
(Alguns fragmentos importantes)
Por Emanuel Tadeu Borges

Nenhuma legislação social acabará com a diferença psicológica das pessoas, este fator indispensável da energia vital de uma sociedade humana. Por isso é sempre útil falar da heterogeneidade das pessoas. Essas diferenças trazem consigo exigências de bem-estar tão diversas que nenhuma legislação, por mais perfeita, jamais conseguiria satisfazê-las. Impossível também seria imaginar uma forma de vida externa, por mais justa e equitativa, que não significasse injustiça para um ou outro.” (JUNG, 1991, 922).

Quando escreve sobre viver-se o “mito pessoal”, Jung não está falando que se deva representar um personagem mitológico, reproduzir um certo padrão de comportamento heróico. Ao contrário, trata-se de dar vazão à singularidade latente que corresponde ao que é denominado individuação. Os mitos heróicos, aliás, são relatos simbólicos (literários, religiosos, mitológicos, folclóricos), poderíamos dizer, protocolos de experiência, deixados em todas as épocas e por toda parte, referentes a transformações espirituais, individuais e coletivas, nas quais pessoas ou grupos (coletividades) passam por situações em que tudo que tinham como mais certo e seguro desfaz-se completamente É nesse sentido que o espiritual nunca deixa de estar articulado com o psicológico. Convicções, sentimentos, maneiras de ver e avaliar as coisas, de agir e reagir, tudo se modifica e se depura, às custas de muito sacrifício, esforço e sofrimento; o que daí decorre é algo inteiramente novo.

Os textos desta matéria estão no livro Individuação: Transformação do Sujeiro e Integração na Coletividade

Arquétipos, Funções e o Conceito de Self

Os arquétipos são os componentes do inconsciente coletivo e os complexos são os componentes do inconsciente pessoal”. Trata-se de uma maneira didática de expressar a situação pois, na verdade, o correto seria afirmar que “O arquétipo é o elemento coletivo do inconsciente e o complexo, seu elemento pessoal”. Ambos os gêneros de realidade psíquica formam uma unidade composta, visto que o arquétipo é o núcleo do complexo psicológico, que é constituído de elementos de tonalidades afetivas diversas que correspondem a variações em torno da experiência base determinada pelo arquétipo.

“O arquétipo em si não é um fator explícito mas uma disposição interior que começa a agir a partir de um determinado momento da evolução do pensamento humano, organizando o material inconsciente em figuras bem determinadas (...) Já me perguntaram muitas vezes donde procede o arquétipo. É um dado adquirido ou não? É-nos impossível responder diretamente a esta pergunta. Como diz a própria definição, os arquétipos são fatores e temas que agruparam os elementos psíquicos em determinadas imagens (que denominamos arquetípicas), mas de um modo que só pode ser conhecido pelos seus efeitos. Os arquétipos são anteriores à consciência e provavelmente, são eles que formam as dominantes estruturais da psique em geral, assemelhando-se ao sistema axial dos cristais que existe em potência na água-mãe mas não é diretamente perceptível pela observação. Como condições ‘a priori’, os arquétipos representam o caso psíquico especial do “pattern of behavior” [esquema de comportamento], familiar aos biólogos e que confere a cada ser vivente a sua natureza específica. Assim como as manifestações deste plano biológico fundamental podem variar no decurso da evolução, o mesmo ocorre com as manifestações dos arquétipos. Do ponto de vista empírico, contudo, o arquétipo jamais se forma no interior da vida orgânica em geral. Ele aparece ao mesmo tempo que a vida.” (JUNG, 1980; 222 e p.148, nota 2)

Daqui se depreende a atribuição de um caráter não apenas físico-químico, biológico ou psicológico mas ontológico ao arquétipo. Detenhamo-nos porém nos limites de nosso interesse, qual seja, a manifestação arquetípica como fenômeno psíquico. A partir da exposição acima podemos adiantar que os arquétipos são responsáveis por “comportamentos gerais”, específicos da espécie humana visando uma finalidade. Porém sua expressão é pessoal pois são preenchidos, enquanto “forma geral” ( ‘pattern of behavior’ ) pelos complexos como modos de efetuação individual.

Ora, os comportamentos são “formas de relações entre o ‘eu ’ e o ‘não-eu ’”. Os “padrões humanos coletivos de comportamento”, os tipos essenciais de “relação ‘eu’ / ‘não-eu’”, são aqueles a que já nos referimos enquanto funções:

( 1 ) O ‘Ego’ é a “identidade pessoal”, é “auto-consciência”, compõe-se de um conjunto de fatores decorrentes da experiência individual formadores da auto-imagem e determinantes da expressão pessoal. O ego é a relação da consciência com fatores objetivos e subjetivos tanto conscientes quanto inconscientes, formando um complexo egóico. É o centro ordenador da psique consciente, ao passo que o self é o centro ordenador da personalidade ou psique total.

O ego funciona como se fosse uma membrana seletiva, de permeabilidade variável em relação ao acesso de conteúdos objetivos ou inconscientes ao campo da consciência, de acordo com a rigidez ou flexibilidade do temperamento ou caráter pessoal. “Guardião” ou “guarda”, segundo a imagem usada por Castaneda e amplamente encontrada nas tradições místicas e religiosas..

( 2 ) A ‘Persona’ é a relação da consciência com os padrões mundanos, sociais e culturais: os parâmetros coletivos de interação.

( 3 ) A ‘Sombra’ é a relação da consciência com os conflitos não resolvidos, com as realidades incompatíveis e que se tornam, com maior ou menor intensidade, forças atuando inconscientemente, até serem conscientemente confrontadas com o ego e a ele se integrarem.

( 4 ) ‘Anima’ / ‘Animus’ é a relação da consciência com a “imagem da Alma”, com o “Eu inconsciente” , sob a forma de uma busca dinâmica: apresentação por meio de símbolos, compreensão (intelectual), aceitação (emocional) e integração (funcional) de conteúdos até então estranhos ao eu consciente, afetivamente carregados, tanto conflituosos como criativos (que devem ser transmutados e incorporados, respectivamente).

Esta relação é intermediada pelos símbolos de ligação. Estes símbolos são representações do sexo oposto ou da polaridade relativa ao sexo oposto (no caso de uma imagem não humana), pois são o “consorte psíquico” em potencial, isto é, trazem em si a possibilidade da união de forças divergentes. É também interessante que sofram uma progressiva transformação, em suas sucessivas aparições nos sonhos, dando testemunho do desenrolar de um processo de integração ou ao contrário, caso permaneçam inalterados, indicando uma lentidão ou paralisação do movimento de união entre os opostos psíquicos. Esta é uma das explicações possíveis para os sonhos recorrentes ou para a repetição de um símbolo ou situação em sonhos sucessivos.

Em suma, a anima, para o homem e o animus, para a mulher, são símbolos que surgem na psique com a função de traduzir possibilidades de intercâmbio, ligação, comunicação entre os níveis consciente e inconsciente. Geralmente simbolizam a alma, na concepção que Jung tem desse termo, conjunto de características opostas às da consciência que podem vir a se integrar ao ‘ego’, no incessante movimento de diferenciação inerente ao espírito humano e que corresponde à integração progressiva e positiva, quer dizer, criativa dos conteúdos ou potencialidades inconscientes. Ampliação, portanto, do repertório de recursos para a relação com a vida, o que em termos de “energia psíquica”, de libido, implica: (a) numa intensificação do investimento (quantidade de libido e portanto, intensidade ou acuidade da vivência); (b) na diversificação dos “objetos” investidos (diversidade de experiências); e (c) na transmutabilidade dessa mesma energia em termos de compreensão e em termos criativos (o que se traduz como uma tendência à distribuição proporcional de energia psíquica entre as quatro funções psicológicas, passando pela elaboração da função parcial ou totalmente mergulhada no inconsciente; a “função inferior”)

( 5 ) O ‘Self’: é a relação da consciência com uma “imagem de totalidade”, tanto no nível pessoal, enquanto “união dos dois níveis da ‘psique’”, quanto cósmica, expressando a “união virtual da ‘personalidade integrada’ com o Universo”; “Unus Mundus”. O ‘Self’ é o “arquétipo central”, núcleo da psique total, atuando como tendência unificadora, ordenadora, para todos os outros arquétipos, por meio de imagens da totalidade cada vez mais abrangentes. Pode ou não vir a ser utilizado conscientemente. A sua utilização marcaria o início efetivo do processo de individuação.

É preciso entender que, para Jung, o símbolo não é apenas uma referência abstrata, figurativa ou linguística, uma imagem desvitalizada, mas um complexo energético, quer dizer, a expressão onírica, projetiva ou transferencial, neurótica ou psicopatológica, de um complexo psicológico real (pessoal) que constitui uma “individualidade ou personalidade relativamente autônoma” atuando na psique inconsciente e passível de aceder à consciência. O inconsciente é, nesse sentido, povoado por “personalidades” em diferentes graus de latência, aptas a se manifestarem de uma forma primitiva, em alguns casos de modo desestruturado ou destrutivo. Entretanto, uma vez contactadas e trabalhadas pela consciência, podem vir a manifestar-se de modo criativo.

O elo de ligação desses complexos ou individualidades inconscientes com o ego consciente, o “embaixador” dessas forças estrangeiras, estranhas entre si e desconhecidas, é o símbolo.

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