Individuação:
Transformação do Sujeiro
e Integração na Coletividade

Por Emanuel Tadeu Borges

Este artigo é a introdução do excelente livro de mesmo título de Emanuel Tadeu Borges, mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Nele, Tadeu revela um modelo que permite a ligação entre a visão tradicional da psicanálise, a psicologia social, a psicologia analítica e o crescimento do ser humano até uma consciência mais completa ou até cósmica. Tadeu é pesquisador dos processos arquetípicos subjacentes nas religiões e culturas, além de ser conhecedor profundo do simbolismo astrológico.

O objetivo desta dissertação é mostrar como o processo de individuação corresponde à realização concomitante da transformação do sujeito humano e da sua integração na coletividade. Isto pode ser explicado através das funções da psique, em sua atuação individual e integrada, coordenada pelo self, como centro ordenador inconsciente. Realiza-se através da dinâmica de compensação, que comanda a transformação da energia psíquica. E pode ser dirigido, conscientemente, pela interpretação dos símbolos, que expressam a dinâmica de compensação inconsciente.

A realização dessa dupla consecução é possível através de um trabalho de elaboração do material simbólico que seja acompanhado de uma aplicação prática de seu sentido no mundo, por parte do indivíduo, através de um trabalho. Esse trabalho é entendido como realização criativa da perspectiva de integração do indivíduo à coletividade expressa no símbolo.

A obra de Jung tem sido incompreendida por uma parte daqueles que trabalham com psicologia. Já foi dito, entre outras coisas, que carece de base epistemológica e até mesmo de fundamentação empírica. Outros afirmam que está presa a uma tradição cientificista, ao passo que outros ainda qualificam-na como “religião”, “misticismo” ou como um rebento tardio do “individualismo burguês” (sendo, esta última crítica, decorrente de uma compreensão equivocada do que seja “individuação”). Trataremos de refutar, sem uma referência explícita, todos estes pontos, ao longo de nosso trabalho.

Nosso objetivo consiste em mostrar que, na “psicologia analítica”, concebida por Jung, a transformação da personalidade está indissociavelmente ligada a um compromisso de intervenção transformadora na coletividade. Que, ao processo de transformação da psique total, corresponde, concomitantemente, um desenvolvimento da participação do indivíduo na coletividade, como elemento transformador. Nos termos conceituais de Jung, a união ou “coniunctio” interior, psicológica, está diretamente relacionada a uma união e integração com o mundo, com o cosmos.

Fazemos nossas as palavras de Moacyr Felix que, sob outra perspectiva teórica, irmana-se ao que buscamos expressar:

“Um tema para escrever é a relação entre o verbo ter e o verbo ser. A relação entre o homem singular e o homem plural. Entre a totalidade e a simplicidade; entre o indivíduo e a história (ser social). O homem só será feliz, só reconquistará a ele mesmo no dia em que o outro também for. Eu só serei eu, na medida em que tu fores tu.” (FELIX, in GTNM, dezembro/2000)

Em suma, pretendemos demonstrar como, na psicologia analítica, isto está implícito tanto na estrutura funcional da psique, quanto na dinâmica psíquica e na interpretação na clínica ou fora dela.

Mostraremos isso, no primeiro capítulo, focalizando a estrutura da psique: definindo as funções que aí atuam; no segundo capítulo, expondo a dinâmica que se realiza entre as funções psíquicas e através delas em seu conjunto; e no terceiro capítulo trataremos da interpretação do dado psíquico como símbolo e de sua realização no mundo.

Os conceitos essenciais a serem elaborados, no decorrer desse trabalho são o de “self”, o de “individuação”, o de “intuição”, o de “símbolo” e o de “arquétipo”. “Self”, porque é a função responsável pela ordenação da psique total, possibilitando ao “eu” acesso ao material “compensador” inconsciente (complementar à consciência). “Individuação”, por ser o processo em que se desenvolve a integração psicológica no indivíduo (entre consciente e inconsciente) e deste com o mundo. “ Intuição”, pois corresponde ao canal cognitivo de acesso ao processo inconsciente. “Símbolo”, por ser um conceito chave, que caracteriza os produtos ou conteúdos da psique como expressivos e assim, aptos a serem interpretados. E finalmente o “arquétipo”, que é o elo simbólico entre a psique pessoal e a coletiva, como demonstraremos. Começaremos por expor, nesta introdução, como se define a noção de sujeito psicológico através do conceito de “psique”.

Ao analisar o conceito de sujeito, Jung parte de uma definição do “eu” como “sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” e mais adiante, “sujeito de todos os esforços de adaptação, na medida em que estes são produzidos pela vontade.” E descrevendo sua gênese afirma:

“Constitui, inclusive, uma aquisição empírica da existência individual. Parece que resulta, em primeiro lugar, do entrechoque do fator somático com o mundo exterior e uma vez que existe como sujeito real, desenvolve-se em decorrência de entrechoques posteriores, tanto com o mundo exterior quanto com o mundo interior.” (JUNG, 1982, 6)

Após delimitar a noção de “eu” ou sujeito consciente, ele prossegue:

“Esta definição descreve e estabelece, antes de tudo, os limites do sujeito. Teoricamente, é impossível dizer até onde vão os limites do campo da consciência, porque este pode estender-se de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança sempre o seu limite todas as vêzes em que toca o âmbito do desconhecido. Este desconhecido é constituído por tudo quanto ignoramos, por tudo o que não possui qualquer relação com o eu enquanto centro da consciência. O desconhecido divide-se em dois grupos: o concernente aos fatos exteriores que podemos atingir por meio dos sentidos e o que concerne ao mundo interior que pode ser objeto de nossa experiência imediata. O primeiro grupo representa o desconhecido do mundo ambiente e o segundo o desconhecido do mundo interior. Chamamos de inconsciente a êsse último campo” (JUNG, 1982, 2)

O sujeito psicológico é portanto definido por Jung como uma entidade complexa, constituída de dois níveis principais co-implicados: a consciência e o inconsciente.

“Da mesma forma que o nosso livre arbítrio se choca com a presença inelutável do mundo exterior, assim também os seus limites situam-se no mundo subjetivo interior, muito além do âmbito da consciência, lá onde entra em conflito com os fatos do si-mesmo. (...) É inclusive notório que o eu não é somente incapaz de qualquer coisa contra o si-mesmo, como também é assimilado e modificado, eventualmente, em grande proporção, pelas parcelas inconscientes da personalidade que se acham em vias de desenvolvimento.” (JUNG, 1982, 9) “Esta descoberta relativizou a posição até então [final do séc. XIX] absoluta do eu, quer dizer: este conserva sua condição de centro do campo da consciência; mas como ponto central da personalidade tornou-se problemático. Constitui parte desta personalidade, não há dúvida, mas não representa a sua totalidade.” (JUNG, 1982,11)

Ora, a clínica de Jung tem como objetivo desencadear o chamado “processo de individuação”, que se define, em primeiro lugar, como “produção do confronto entre sujeito e objeto” (isto é, entre o indivíduo e sua realidade) e em segundo lugar, como “união nupcial entre as duas metades antagônicas que constituem o self.” (os dois níveis que constituem o sujeito em sua totalidade: consciência e inconsciente). Esta segunda possibilidade nem sempre é viável, adverte Jung, uma vez que, em certos casos, torna-se um perigo para a integridade do eu, “quando um doente reconhece que a cura por transformação significaria renunciar demais à sua personalidade.” Neste caso, “o médico pode e deve renunciar à vontade de curar (...) o processo terapêutico não acarretará nenhuma transformação da personalidade e o paciente poderá, na pior das hipóteses, aceitar a sua neurose porque entendeu o sentido de sua doença.”

Iniciaremos, em seguida, definindo a relação entre a individuação e as funções da psique, no primeiro capítulo. No segundo capítulo abordaremos a individuação do ponto de vista da dinâmica psíquica. No terceiro capítulo mostraremos a função da interpretação no processo de individuação. Concluiremos destacando a importância do arquétipo como elemento de síntese para os dois aspectos do processo, a transformação da personalidade e a integração à coletividade.

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