Insólito - Capítulo 4
por Carlos Hollanda


Ilustração: Carlos Hollanda

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O Show Vai Começar

Abriram os portões e começou o “ritual” de entrada. Mal dava para dizer se era um estouro de boiada ou se eram jovens completamente “fissurados” pela ansiedade de verem os músicos. Empurra daqui, espreme de lá, Edgar, Ari e Rômulo foram cada um para um lado diferente. Não se importavam muito com isso, pois não se conheciam muito bem e preferiam manter-se separados. Rômulo, ávido por arrumar alguém para trocar uns beijos e, quem sabe, algo mais, buscava infrutiferamente uma moreninha que antes lhe sorrira de maneira sensual. Ari, muito ágil, saiu correndo para o local mais próximo possível do palco. Queria, se pudesse, ficar de pé ao lado do vocalista, cantar junto com ele as músicas que já decorara fazia tempo. Edgar, um tanto temeroso, apenas tentava não ser pisoteado pela turba. Acabou sendo levado pela multidão para um local meio afastado, no lado direito do palco. Percebeu de imediato que ali não daria para enxergar muito bem o grupo: havia uma enorme caixa de som barrando a visão. Tentou sair, mas o empurra-empurra o deteve. Resolveu esperar até ser possível se locomover, o que não parecia nada fácil.

O Legião Urbana não era um conjunto fantasiado e nem explorava com tanta ênfase os estereótipos punk, heavy metal ou new wave, bastante comuns na época. É verdade que eles tiveram uma origem bem próxima do punk, talvez até o tivessem sido de fato, quando a banda ainda estava em gestação nos tempos do “Aborto Elétrico”. Após os primeiros sucessos, no entanto, aparecia de uma maneira bastante original. Talvez a maior semelhança com as outras bandas era a mensagem de rebeldia. Ainda assim, a rebeldia professada nas letras de Renato Russo não era exatamente contra os pais ou um espasmo de rebelde sem causa ignorante de possibilidades políticas. As letras evocavam uma indignação com o sistema, uma espécie de convocação para uma visão mais crítica sobre a sociedade. Eram escritas de forma inteligente levando a reflexões, não prezando somente pelo agitar dos ânimos. Também falava bastante dos dramas vividos por adolescentes e por quem tinha entre 20 e 30 anos, comentando histórias de amor, de ódio, as frustrações dos sonhos... Enquanto algumas músicas eram verdadeiras bofetadas na hipocrisia humana, outras ressaltavam possibilidades, criando um pequeno brilho de esperança, incentivando, motivando. Não eram letras complexas. Apesar de conterem mensagens nas entrelinhas e alguns duplos sentidos, em geral eram, como diriam os astrólogos, “arianamente diretas”. Afinal de contas, segundo Ari, fanzoca ferrenho do Legião, Renato Russo, cantor e letrista, tinha nascido sob o signo de Áries. O próprio Renato fazia questão de deixar isso bem claro, quando, nos intervalos entre uma música e outra, mencionava sua amizade com Cazuza, outro “carinha do signo de Áries”, em suas palavras.

Edgar ainda sentia um pouco de enjôo, especialmente quando uma moça que estava sentada a seu lado levantava. Tal era a proximidade que num movimento brusco ela esbarrou acidentalmente na mão esquerda do rapaz. Foi nesse momento que ele sentiu novamente a dor de cabeça peculiar que sentira ao acordar pela manhã. Não era uma dor de cabeça comum. Localizava-se bem entre os olhos e latejava como se prenunciasse o brotar de alguma coisa. Olhou de relance para a moça e notou, em seu ventre, o pequeno feto que ela carregava. Ao mesmo tempo em que ficou estupefato pela visão, sentiu uma ternura sem igual, uma felicidade extrema, como se a criança que estava por nascer estivesse se comunicando com ele. Ela parecia dizer estar feliz por estar no útero da mãe, mas se sentia um tanto desconfortável com tanto barulho e com tanta agitação. “Talvez seja por isso que a sensação de felicidade venha junto com o enjôo” - assim pensou. Tratou de eliminar esse pensamento o mais rápido que pôde, afinal estava “imaginando coisas” outra vez. Parece que sempre que havia algum tipo de stress ou situação tensa essas “maluquices” se manifestavam. Assim, tratou de se controlar, como se pudesse realmente fazer isso.

Alguns metros atrás, sem saber da proximidade de Edgar, Rômulo notava a presença do policial que o abordara quando do salvamento do casal na entrada do jóquei clube. Ficou tentando entender o motivo da presença do policial fardado bem no meio da multidão, distante de onde se localizavam os seguranças e policiais do local. Coçou a cabeça cuidadosamente raspada ao se dar conta de algumas coisas muito estranhas:

a) O policial portava embainhada na cintura uma espada com o punho ricamente trabalhado. O que um policial comum estaria fazendo com uma espada daquelas? E parecia uma espada medieval, enorme. Será que era um cara fantasiado e não era polícia coisa nenhuma?

b) As pessoas pareciam não enxergar aquela figura anacrônica e ao mesmo tempo hilária. Passavam por ele como se não existisse. Notou também que o guarda o olhava de rabo-de-olho.

c) Demorou para se tocar de um detalhe, talvez em função do susto que levara e da estranha compulsão de salvar aquele casal na entrada do local: a história que aquele guarda contou ele conhecia muito bem. Era uma das histórias que ouvia de sua mãe sobre seu avô, Severino, que ficou conhecido como Onça.

Era uma coincidência grande demais e Rômulo tinha a sensação de estar sendo vigiado. Tentou disfarçar olhando para o lado e um segundo depois, ao voltar-se para onde estava o policial, notou que ele desaparecera.

Ari desembainhava uma máquina fotográfica pequenina que levava numa pochete. Mal podia esperar. Planejava burlar a segurança para conversar com os ídolos e tirar fotos para mostrar aos amigos. Bem, os “amigos” que tinha não gostavam de Legião Urbana, eram “mauricinhos” demais, preocupados com suas carreiras após a formatura. Eram pessoas do círculo de relacionamentos de seus pais, filhos de políticos e empresários importantes. Era-lhe difícil conviver com eles, seus assuntos e interesses não batiam. Apesar da boa situação financeira de seus pais, Ari não se interessava pelas etiquetas da moda, pelos tênis de marca e muito menos estava interessado nas conversas sobre carros, relógios e esportes caros que dos “amigos”. Sentia saudades dos amigos de Brasília, cidade do Legião, onde viveu quando criança, quando seu pai trabalhava num órgão do governo. Infelizmente a família se mudou de volta para o Rio e ele foi perdendo o contato com eles.

Ao experimentar a câmera para ver se podia enquadrar bem o palco, viu aquele guarda que falara com Rômulo no episódio do casal. Lá estava ele junto à barreira de seguranças em torno do palco. Os mesmos seguranças pareciam não notar a presença do policial. Tirou uma foto de teste e percebeu que na hora do clique vinha um brilho metálico ao longo da perna esquerda do policial. Parecia uma espada. Abaixou a câmera para ver melhor, mas o homem sumira de vista.

As luzes do palco se apagaram indicando que o show ia começar. A tensão da platéia era visível e todos que estavam sentados se levantaram.

Um Show e Alguns Fenômenos

Edgar preparou-se. Seu coração batia mais forte. Sua fronte latejava com mais intensidade, o que o fez inclinar-se um pouco. Ao levantar a cabeça novamente, o susto: a noite virara dia, a multidão estava inacreditavelmente diferente, com mulheres cobertas dos pés à cabeça com panos meio maltrapilhos e homens barbudos também vestidos como se estivessem numa peça da “Paixão de Cristo”. Ao lado rodavam algumas bigas romanas e transitavam soldados com lanças, couraças e escudos. Olhou para si mesmo e notou que trajava roupas iguais às das pessoas da multidão. Esfregou os olhos numa vã tentativa de voltar à realidade. Engoliu em seco ao olhar na direção do palco: diante da platéia estavam três condenados pela justiça romana. Eles estavam um tanto maltratados, sangrando muito, com tangas de pano enrolado, de peito nu e amarrados nas mãos e pés. Eram todos de pele escura, com feições árabes e tinham barbas e cabelos desalinhados pelo martírio. Em cada extremidade do que antes era o palco figurava um grupo de soldados romanos e um homem que parecia uma espécie de juiz. A cena era um tanto parecida com o texto bíblico, mas não se tratava do julgamento do Cristo, mesmo porque tudo indicava que aquelas circunstâncias eram posteriores ao que contam os Evangelhos.

Tapou o rosto tentando se desvencilhar da visão, mas mãos suaves e carinhosas de uma mulher jovem o fizeram tornar a vislumbrar todo o cenário. A mulher sorrindo serenamente fez sinal para que ficasse calado e observasse. Edgar acalmou-se com seu toque. Como se tivesse uma visão de raios-X, pôde divisar Rômulo e Ari no meio da massa de pessoas. Ambos estavam cabisbaixos, demonstrando imenso pesar. Pareciam-se fisicamente, como se fossem irmãos. Rômulo tinha cabelos desgrenhados e suas feições estavam um tanto diferentes, sua pele mais clara, embora com a tez semelhante à dos condenados. Ari não tinha traços muito diferentes de sua versão atual, exceto pela tonalidade bem amorenada da pele, pela barba e pelo cabelo bem mais comprido e crespo. Qualquer um que visse aqueles dois diria tratar-se de pessoas absolutamente distintas, mas Edgar de algum modo sabia que eram aqueles dois rapazes que vinha encontrando em situações estranhas. A mulher, que tinha um leve brilho em torno do corpo, apontava para ambos. Tocou-lhe a fronte com o indicador e a dor de cabeça aliviou. Em seguida ela aponta por cima do ombro de Edgar. Ele vê um casebre com um símbolo que não lhe era estranho: algo parecido com um peixe estilizado desenhado na porta. Ela chama a atenção novamente para seus conhecidos e ele nota que o mesmo símbolo brilhava próximo à fronte de cada um.

Uma voz interior informa o jovem que a multidão ali estava para comemorar a páscoa, com uma festividade típica de quando Roma era um Império. Os romanos costumavam libertar presos políticos nessa época. Edgar estremeceu quando prestou atenção no prisioneiro que estava mais à frente: era Renato! Diferente em corpo e feições, mas era Renato Russo! Ele tinha certeza disso. Não teve dificuldade para perceber algum tipo de semelhança dos outros dois com Dado Villa Lobos e Marcelo Bonfá, respectivamente, guitarrista e baterista, cada qual com sua cota de açoite.

A turba gritava ensandecida pelo circo de sangue que em breve iria ver. Apesar de perceber a barbaridade da situação, Edgar permanecia calmo, enquanto a mulher enigmática fazia um gesto indicando que Rômulo, Ari e ele tinham algum tipo de laço. A mulher foi-se desvanecendo numa nuvem luminosa. Ao olhar o palco, eis que ele vê o condenado da frente mexer-se de forma frenética numa tentativa desesperada de libertação: ele havia sido o primeiro a ser condenado à cruz, forma de execução bastante comum para os romanos naquela época e não uma exclusividade para a figura do Cristo, como muitos acreditam. A visão de Edgar escurece levemente e aos poucos a figura agitada de Renato Russo dançando de forma peculiar no palco assume o lugar daquele condenado que se debatia. Ele olha ao redor e é noite novamente. O show já começara e ele desperta de seu transe com um forte esbarrão de uma fileira de pessoas que pulavam de um lado para outro. O impacto leva-o ao chão enlameado, onde cai de cara. Embora todo sujo e irritado, se esforça por ver o que se passava a partir do local nada privilegiado onde estava. Acabou esquecendo por algumas horas o acontecido e vibrando com as músicas e com seus heróis.

Encontro com o Ídolo

O show estava terminado e a multidão tinha mais de uma opção de saída. Muitos cantavam as músicas enquanto casais que ali tinham se conhecido se beijavam. Rômulo estava meio decepcionado: não conseguira ninguém, logo ele, que era bom de lábia. Decidiu falar com um dos seguranças que era seu conhecido. Nesse ínterim, chega Ari, desviando-se como uma minhoca de um e de outro. Ele aproveita a distração do segurança que falava com Rômulo (Ari nem o percebeu) e, com a máquina fotográfica na mão, adentrou pelos bastidores. Edgar, premido pelo movimento da turba acaba dando de cara com Rômulo no exato momento em que uns quatro seguranças correm atrás de Ari. Ambos correm na mesma direção e se deparam com Ari, como sempre gesticulando tal qual uma marionete, na frente de Renato Russo, que se demorara um pouco além de Dado Villa Lobos e de Marcelo Bonfá. À aproximação dos enormes guardiões, Renato levanta a mão e diz:

- Está tudo bem, podem deixar, ele não está atrapalhando. Não vai demorar.

Perguntados sobre o que estariam fazendo ali, Rômulo e Edgar falaram ao mesmo tempo que estavam “acompanhando o cara da câmera”. Os rapazes mal podiam se conter de tanto entusiasmo. Bem na frente deles, e conversando animadamente, estava Renato Russo. Aristóteles, é claro, não pôde conter um sorrisinho ao perceber que o ídolo tinha alguns cacoetes. Rômulo observava calado, pois não era de agir explicitamente com essa tietagem. Edgar estava de olhos arregalados, todo enlameado, parecia ter chafurdado como um porco. Renato olha para os dois e sorri. Estava visivelmente cansado, mas procurava entender o entusiasmo dos rapazes.

Ari, que não parava de metralhá-lo com milhares de palavras soltas, finalmente lança uma pergunta:

- Renato, é o seguinte: eu sou técnico em equipamentos de áudio. Será que você não teria uma vaga pra alguém na sua equipe? Olha eu faço qualquer coisa, até lavar chão, mas queria muito trabalhar com vocês.

- Ih, cara, só que não vai dar dessa vez, sabe? Nosso pessoal tá completo. Se tivesse uma vaga eu até poderia ver se dava, mas, aí, agora não tem jeito.

Após uma breve despedida, autógrafos e um apertos de mão gratificantes para os rapazes, renato se vira e olha para o trio. Volta-se para o segurança e diz:

- Vem cá, esses três caras me parecem familiares. Você já os tinha visto antes?

- Não, é a primeira vez. Por quê?

- Sei lá... de repente me deu a impressão de tê-los visto representando uma peça da “Paixão de Cristo” e isso me fez sentir uma coisa estranha... foi como se eu tivesse me preparando pra morrer e deixar um legado pra um monte de gente. Esquisito mesmo... deu a impressão de que eu ocultava um segredo que não podia contar pra ninguém, como se eu fosse um preso nos porões da Ditadura e estivesse tentando salvar meus companheiros não os delatando.

Enquanto Renato se afastava, Edgar reparou que havia uma mancha escura pairando em meio a um campo luminoso esfumaçado em torno de seu corpo. Aquela mancha deu-lhe a sensação de perda característica da orfandade, coisa que conhecia bem. Isso durou apenas alguns segundos, até que os três se dirigiram ao portão de saída.

Rômulo foi o primeiro a dizer o que parecia inquietar os três desde que se encontraram nos bastidores. Falou sobre o fato de ter visto Edgar e Ari vestidos com togas sujas e rasgadas com um símbolo que parecia um peixe. Achou que fosse por causa da fumaça da maconha que um grupo de pessoas fumava ao lado dele. Aristóteles e Edgar arregalaram os olhos como querendo dizer: “vocês dois também viram??!!”

No caminho até o ponto de ônibus começaram a conversar sobre estranhas coincidências que vinham ocorrendo com os três desde o vestibular. Aristóteles narrou alguns sonhos bem estranhos. Rômulo disse ter tido sonhos um tanto parecidos e por volta dos mesmos dias. E “quem diabos era aquela mulher de três faces?” – perguntavam todos. Edgar perguntou se eles estavam presenciando situações estranhas ou tendo visões em plena luz do dia, ao que responderam negativamente. Ao que tudo indicava, daquele trio sui generis somente ele tinha tais visões enquanto acordado.

Cada um pegou um ônibus diferente, pois moravam em pontos distantes entre si. Nem Rômulo nem Ari comentaram sobre a estranha figura do policial portando uma espada estranha, pois acharam ter sido apenas uma impressão. No entanto, em certo ponto da viagem, simultaneamente, nos três ônibus, o mesmo policial entra e se senta um pouco atrás de cada um dos rapazes, com exceção do ônibus de Edgar, onde ele pára um pouco à frente e o cumprimenta com uma breve continência. Edgar responde estranhando um pouco a coincidência.

Começam as Aulas

As coisas pareciam até estar sendo combinadas, mas não estavam. Chegando exatamente no mesmo minuto no portão da UERJ, Edgar, Rômulo e Ari param e se cumprimentam. Ari pede-lhes um minuto e abre a mochila. Para o enorme espanto, principalmente de Rômulo, a primeira foto era a de uma fileira de seguranças com um homem negro com um brilhante halo em torno do corpo e com uma espada toda ornamentada na cintura. Mais impressionante que a confirmação da visão da espada era o formato do halo: ele parecia formar asas às costas do policial.

A segunda foto surpreendeu Edgar, mas não tanto quanto o fez com seus dois companheiros. Era uma foto impossível de ter sido tirada, até porque os três não se reuniram durante o show. Lá estavam os três lado a lado e acima, como que os envolvendo, a imagem diáfana de uma mulher jovem.

Capítulo 5