Insólito - Parte 2
por Carlos Hollanda


Ilustração: Carlos Hollanda

Continuação

Parte 1

A viagem de ônibus até a UERJ, onde Edgar faria a prova, não foi demorada. Conseguiu chegar a tempo. Fizera vestibular antes e não passara. Queria entrar para a faculdade de comunicação. Não conseguiu. Muitos candidatos, número normal de vagas e uma cabeça onde nada do que estudasse entrava. Só pensava em sexo, sexo, sexo e nos bicos que tinha que fazer para ajudar em casa. Desta vez estava decidido. Pelo menos achava que estava. Resolveu fazer sociologia. Na verdade queria ser antropólogo, como o Betinho, irmão do Henfil. A escolha foi uma mescla de admiração por Betinho, com toda sua história de exílio e participação política, e uma influência direta das composições do Legião Urbana. Edgar adorava aquele conjunto, especialmente Renato Russo, o vocalista, que adorava ver dançando daquele jeito louco no palco. Também tinha o sonho de conhecer as tribos menos acessíveis da Amazônia. Lembrava dos irmãos Villas Boas, especialmente o Orlando, sobre quem leu havia poucos anos. Era uma aventura e tanto fazer o que eles faziam.

Não somente sua avó, mas todos os homens da vizinhança perturbaram bastante o rapaz por sua escolha. “Vai estudar o quê??!!!” – era a pergunta que ouvia mais freqüentemente. Pudera. Num bairro onde parecia que ninguém tinha ouvido falar em outra coisa senão medicina, engenharia e direito, para fazer outra coisa alguém tinha que ser militar. O resto era coisa de filme, “bobagem”. Teimoso, o jovem prosseguiu em sua escolha. Claro que estava inseguro. Se era realmente certo, que seguiria em frente como cientista social não tinha a menor idéia, mas havia uma certeza íntima, uma esperança ou uma pretensão megalômana de que poderia mudar o país de algum modo.

O ano era 1988. Edgar vivera a efervescência do movimento das “Diretas Já”, em 85 e a morte de Tancredo Neves antes de assumir o mandato. Via o rebuliço em torno das eleições diretas para presidente que só aconteceriam em 1989. Ele já estava com vinte anos de idade e torcia para que Lula fosse presidente, muito embora a maioria das pessoas rissem dele e passassem a mão em sua cabeça compreensivamente. “Que é isso, garoto, você tem muito o que aprender de política. Não saia correndo pra votar no Lula. Ele não tem o menor preparo...”

O fato é que Edgar se identificava com tudo o que era rebelde e contra o sistema e se Lula naquela época era símbolo de resistência contra o domínio das elites, era nele que votaria. Pouco importava o que os mais velhos achavam. “Hipócritas!” – pensava ele, ao saber da “quantidade de nada” que fizeram para mudar as próprias situações, conformando-se como gado ao que se lhes impunha goela abaixo.

Mas nossa história realmente começa quando o rapaz chega às portas da UERJ. Uma hora antes da prova do vestibular, Edgar encontra o local, como seria de se esperar, repleto de estudantes, uns loucos por uma vaga e outros ali somente para satisfazer as pressões da família.

Ele aguardava sentado num canto um pouco mais vazio. Como sempre, apesar da já relativamente bem desenvolvida consciência política, tinha dificuldades em abordagens iniciais e no contato com pessoas de sua própria idade. Aliás, pensava ele, já não era alguém da mesma idade da maioria. Estava errado. Ao seu lado, simultaneamente, sentam dois outros rapazes, provavelmente tão “velhos” quanto ele. Um deles, um magricela bem comprido e muito branco, de óculos fundo de garrafa e com um jeito agitado. Ele o cutuca no ombro sem mais nem menos e aponta para um homem de seus quarenta anos encostado numa pilastra.

- Olha só aquele cara. Já é a terceira vez que ele vem fazer vestibular. O cara é persistente...

Edgar surpreendeu-se com a brancura do rapaz. Ficou pensando também por que cargas d’água ele estaria falando aquilo? O que ele tinha a ver com a vida daquele “velho”?

- Fiquei sabendo disso pelo segurança ali do portão – tornou a falar o branquelo agitando os braços de um modo engraçado - Ele falou que aquele cara viveu muitos anos numa favela e que o conhecia, pois morava lá perto. É persistente mesmo. Foi pedreiro quando ainda era moleque. Depois foi promovido a mestre de obras. Resolveu estudar. Quase se matava de tanto esforço. A mulher o largou, levando os filhos. Que coisa, né?

Edgar ainda não se apercebera de sua autopiedade e de seu pessimismo. Achava que aquele homem era um coitado. Se ele teria menos chances de conquista do que os outros candidatos, imagine aquele “velho”. Aquele rapaz desconhecido, mas estranhamente engraçado, pelo menos fê-lo rir.

O outro jovem que se sentara ao lado era um rapaz negro, pouca coisa mais alto que Edgar, mas com musculatura definida, embora não anabolizado. Usava roupas normais, não era como os marombeiros que adoravam se exibir com roupas apertadas e mostrando os braços tão logo seus músculos começassem a aparecer. Falou numa voz um tanto grossa para suas feições de garoto:

- E eu que pensava que era velho pra voltar a estudar. Estou com 23 anos e já estava me sentindo o último dos manés. Eu vou fazer prova pra sociologia. E vocês?

O magricela e Edgar fizeram uma ligeira expressão de espanto e de identificação. Era a mesma formação que iriam tentar. Continuaram a bater papo sobre os outros candidatos, sobre o que os motivou a escolher aquela formação universitária, e, é claro, sobre as moças “gostosas” que passavam no corredor. Até Edgar, tímido, lançou olhares e deu alguns pareceres sobre o formato do corpo de algumas. Mas o magricela realmente era engraçado e tagarela. Quase monopolizou a conversa. Falava muito e bastante depressa, sempre agitando aqueles brações compridos como varetas. Mexia com as meninas de uma forma não ofensiva. Elas riam e se afastavam. Ele fazia piadas engraçadíssimas enquanto falava sobre coisa sérias. Uma coisa verdadeiramente surreal. O rapaz negro sorria suavemente, meio de lado. Tinha um olhar cansado, bem mais maduro do que seus poucos anos de vida. Falava de forma inteligente, cheio de conhecimento de causa. Era externamente calmo, mas Edgar tinha a impressão de que nele havia uma fornalha oculta constantemente fabricando aço dos mais resistentes.

Soou o sinal. Era a hora da prova. Para surpresa dos rapazes, os três ficaram na mesma sala. Desejaram boa sorte entre si e começaram. Edgar olhou de canto de olho para seus dois recentes companheiros. Ambos escreviam e rabiscavam sem parar. Pelo jeito puderam estudar muito e sabiam tudo. O negro sorria, como quem dissesse: “tá no papo”. O magricela fazia bico com os lábios e com a maior tranqüilidade passava de folha em folha. Edgar, ao contrário dos dois, não lembrava absolutamente de nada. Passava também de folha em folha, mas era porque não conseguia responder as questões. Começou a ter ódio de si mesmo. Sabia que estudara pouco, mas não o suficiente para tirar zero. “Só eu mesmo para conseguir uma proeza dessas. Mais um ano sem faculdade...” – repetia para si mesmo.

Estava já para desistir, quando após sentir um suave formigamento do lado direito da cabeça, olha um jovem com pinta de professor entrar pela sala. Ninguém saiu da posição em que estava. Nem mesmo os fiscais de prova. Todos continuaram impassíveis. Tudo indicava que ninguém ouvira sua entrada, nem mesmo viram a porta abrir.

O tal professor, que tinha algo de familiar, colocou-se a seu lado e perguntou:

- Oi, Edgar. Lobato, hein! Nome de escritor. Não era de esquerda, mas fez umas coisas legais. Está fazendo uma boa prova?

- Estou sim... droga. Está uma porcaria. Estudei e não lembro nada. Tome, estou desistindo. Não tem motivo pra eu ficar aqui.

- Epa, epa, epa! Pode ficar sentadinho onde está! Estou aqui para ajudá-lo, meu jovem. Volte para a primeira página. Vamos fazer a prova juntos.

Se alguém pudesse ver a cara de espanto de Edgar naquele momento quase morreria de tanto rir. Nada naquele dia nada parecia ser normal. Não bastassem as esquisitices de casa até o local, o jovem corria o risco de ter a prova confiscada. Como ele poderia adivinhar que no meio da prova de física aquele professor maluco ficaria lhe dando cola? Absurdo dos absurdos! Ele olhou para os lados, mas todos continuavam agindo como se nada anormal estivesse acontecendo.

- Que é isso, moço! O que está havendo? – perguntou em voz alta.

Um dos fiscais se levantou e foi até o local onde ele estava sentado.

- Algum problema? Olha, é melhor você sentar aqui na frente, senão você prejudica a si mesmo e a quem estiver perto de você. Você não quer que sua prova seja anulada, quer?

- Não senhor, mas é que este outro senhor... – ao olhar para o lado o tal professor sumira.

- Que senhor? Anda, menino, vem aqui pra frente ou entrega sua prova, vai.

- Mas, mas...

- Vem.

Contrariado, sentindo-se injustiçado e ao mesmo tempo com aquele tão conhecido medo de estar enlouquecendo, Edgar resolveu que tentaria mais uma vez. Não demorou cinco minutos e novamente aquele formigamento na cabeça veio seguido da voz do tal professor misterioso:

- Bom, agora que estamos prontos, siga minhas instruções.

Edgar se rendeu. Ou era uma baita sacanagem que estavam fazendo com ele ou ele realmente estava ficando louco. De onde aquele maldito professorzinho viera? O que estava acontecendo ali? Tentou falar alto uma vez mais para reclamar, mas sua voz não saía. Notou que o professor estava com dois dedos suavemente encostados em seu pescoço e fazia sinal de silêncio com o indicador da outra mão na boca. Ele sorria brandamente. Sobreveio, então, uma leve sensação de paz e Edgar aquietou-se. Olhou para o fiscal, que o fitava, concluindo que seu desassossego se devia a uma péssima prova e a uma tentativa de cola.

O “professor” disse que nunca fora muito bom em matemática ou em física, mas que podia ajudá-lo a não zerar aquelas provas. Biologia não era seu forte, mas dava para alcançar um bom resultado. Já em ciências humanas a coisa era diferente. Disse-lhe para preparar-se para gabaritar nesses assuntos.

E assim foi. Toda a prova lhe foi ditada passo a passo. Edgar foi um dos últimos a terminar, sob o olhar desconfiado do fiscal, que olhara a prova e fez cara de surpresa pelo fato de estar toda preenchida.

Meio abilolado, Edgar foi saindo sem se dar conta de onde estava ou do que estava fazendo. Sentia-se sonolento e seu braço direito estava dormente. Estava muito mais cansado do que realmente poderia estar. Só queria dar uma parada e relaxar um pouco. Estava até então se indagando sobre o que estava acontecendo e sentia em si aquele espectro de depressão tomar conta de seu ser. “Eu sou burro mesmo” – pensou. “Será que alguém viu o que aconteceu? Pombas, eu não estudei muito, é verdade, mas ter a prova toda feita por outro cara e outro cara que não existe é dose pra elefante! Imagina se eu passar. Claro que será legal, mas vou continuar sendo uma besta quadrada!"

Seus pensamentos foram interrompidos pela tagarelice do magricela que veio todo sorridente junto com o aquele rapaz negro.

- Oi... como é mesmo seu nome? O meu é Ari. Bom, é Aristóteles. Meu pai é filósofo, sabe como é... e este aqui é o Rômulo. Sabia que ele joga capoeira? Legal, né? Um cara estudioso que pratica esportes... por isso ele tem cara de malhador. Pensei que era um daqueles retardados que desenvolvem músculos e atrofiam o cérebro, quando vi, he, he...

- Oi... sou Edgar. Vocês se deram bem?

- Acho que sim – respondeu Rômulo - Me dediquei bastante. Pelo jeito o Ari nem precisou de muito esforço. Os pais dele são professores. O que houve contigo, cara? Você ficou resmungando o tempo todo na sala. Pensei que o fiscal ia tirar sua prova. Você viu a cara dele quando levantou pela segunda vez?

- Uai, ele só levantou uma vez!

- Duas – confirmou Ari.

- Rapaz, você está mais branco que o Ari – gracejou Rômulo - O fiscal levantou, deu meia volta e sentou como se fosse um boneco de marionete. A turma inteira riu. Ele deve ter ficado puto da vida.

- Eu... eu... – Edgar não sabia o que dizer. Ficara com medo de ser tachado de débil mental pelos dois. Mal fazia amigos, talvez nunca mais viesse a ver aqueles dois outra vez, mas preferia não dar margem a rejeições.

- Eu estava tentando responder às perguntas. É meu jeito, sabe. Só sei fazer prova direito assim.

Os três já estavam indo embora, quando passaram por uma fotografia num corredor. Era o tal professor que fizera a prova com Edgar. Ele gelou, depois ficou feliz, pois ali estava a prova de que não estava louco como pensava. Perguntou a Ari se sabia quem era aquele homem da foto, pois fora ele quem o fizera ficar resmungando durante a prova. Ari deu uma gargalhada.

- Eu, hein! Tá doido, cara! Aquele ali é o falecido professor Antônio Pestana. Tive aula com ele num pré-vestibular. Ele era bastante conhecido e foi professor de antropologia aqui da UERJ. Morreu na metade deste ano. Ha, ha, ha, vai ver que de tão nervoso você acabou fazendo a prova no além.

Rômulo naquele momento pensou: “Que babaca, ficar zoando o cara. Ele deve ser meio lelé mesmo. Bom, cara de bichinha ele tem, mas deve ser bicha e lelé ”.

- Não ligo pra isso, Rômulo, e não sou gay – respondeu Edgar, sem perceber que Rômulo não dissera nada, pelo menos nada saíra de sua boca – Eu... estava só brincando. Gosto de fazer esse tipo de pegadinha.

Edgar então entendera porque achava o homem familiar. Já o havia visto na foto de uma reportagem sobre cultura e religião, onde ele dissertava sobre as facetas indígenas e africanas do Brasil. Não sabia que tinha morrido, o que o assustou sobremaneira. O que ele viveu na sala da prova foi tão real... Ele só saberia se havia mesmo uma relação entre uma coisa e outra quando chegasse o resultado das provas. Até então, já se considerava praticamente internado no Pinel.

Rômulo, por sua vez, após ouvir Edgar revelar aquilo que pensara, levantou a sobrancelha esquerda numa característica expressão de confusão. Como ele sabia o que ele tinha pensado? Ou será que ele falou baixo e o Edgar ouviu? Mas tinha quase certeza de que pensara e não falara. Rômulo resolveu não prolongar mais aquelas dúvidas. Estava com pressa, pois ainda iria encontrar-se com o grupo de capoeira naquele fim de semana. Deu de ombros e despediu-se de seus dois estranhíssimos acompanhantes na porta do campus. Algo estava lhe dizendo que se encontrariam novamente. Essa sensação o incomodou um pouco. Era muita maluquice para dois garotos tão magricelas e ele não estava com vontade de aturar essas coisas estranhas. Já pensou se os três acabam caindo na mesma turma?

Rômulo mal sabia que seu papel naquele trio já estava definido e ele não imaginava o que viria então.

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NOTA AO LEITOR:
Apesar da maior parte desta história tratar-se de ficção, há nela diversas citações de fatos e pessoas reais, como Betinho e Renato Russo. Se você quer saber um pouco mais sobre Herbert de Souza, o Betinho, clique aqui. Sobre Renato Russo, a seção Astro-Síntese tem o primeiro de uma série de artigos de Paulo Henrique Dantas, que pesquisou a fundo os fã-clubes e a relação entre mito, religião e a adoração sobre personalidades do mundo pop. Conheça esse trabalho clicando aqui.