Personagem norte-americano
com tempero brasileiro.

Fantasma lendo

Muitos podem estar se perguntando a razão de escolhermos falar do Fantasma logo na estréia da seção Arte & Cia. O personagem de Lee Falk nos é especialmente interessante em função de uma minuciosa análise sobre vários dos símbolos contidos em sua dinâmica feita numa parte do curso Astrologia e Mitologia nos Quadrinhos, de Astroletiva. É mais interessante ainda quando descobrimos que os produtores das histórias, tanto no exterior quanto no Brasil, têm traços em comum em seus mapas astrológicos. O Fantasma é um personagem com um quê sagitariano, em sua figura montada a cavalo, com a mira certeira e com a indisfarçada temática etnocêntrica e imperialista do homem branco ocidental liderando povos "primitivos" africanos. Esta seria a faceta negativa do expansionismo do centauro. Mas o Fantasma também tem um forte componente Plutão-Saturno em seu conjunto de símbolos: a caverna, a marca da caveira, os tesouros, a luta contra piratas, além da idéia de "nunca morrer" ou renascer periodicamente. É curiosa a coincidência entre o contexto de um personagem e os tipos psicológicos representados nos mapas de nossos entrevistados. Um mostra Saturno no Meio do Céu, o outro tem Lua em Capricórnio e o Sol em Escorpião, regidos repectivamente por Saturno e Plutão.

Wanderley Mayhé e José Menezes fizeram parte da equipe brasileira de produção dos quadrinhos do Fantasma nos tempos da Rio Gráfica e Editora, lá pelos idos dos anos 70 e 80. Ambos produziram muito naquela época e continuam produzindo para publicações de diversos gêneros, mormente as dirigidas ao público infantil e infanto-juvenil. Wanderley atualmente é responsável pela montagem da revista de passatempos para crianças Picolé, da editora Ediouro. Menezes tem produzido bastante para editoras e empresas de publicidade.

 
       

O Fantasma no traço de Sy Barry
e trajando o púrpura usado em todos
os países. Só no Brasil ele usa vermelho.


José Menezes: Lua em
Peixes na casa 10;
Netuno em conjunção com Vênus.


Wanderley Mayhé:
Meio do Céu - Peixes;
Netuno em conjunção com Vênus.
Nossa conversa se deu em meio a risadas e exclamações geradas pela visão dos originais de seus trabalhos. Ao longo do bate-papo, fomos trocando idéias a respeito do modo como aquilo que se produz artisticamente influi em nosso comportamento e em nosso humor. O ato de pôr uma imagem ou uma história no papel parece trazer à tona uma série de personalidades que o artista suprime em função de uma personalidade principal, que é a que ele mostra ao mundo normalmente. No entanto, todo artista tem um pouco de "todos e nenhum". Todo mundo que mexe com trabalhos criativos, seja desenho, pintura, música ou arte dramática, acaba percebendo que tem um pouquinho de cada pessoa, de cada história de vida que tenta reproduzir. Confiram as opiniões desses dois craques do traço e do texto e, ao final, vejam as imagens de seus mapas astrológicos. Para quem quer acrescentar dados em seus estudos de astrologia vocacional, eis uma oportunidade.

– Olá, José Menezes, olá Wanderley Mayhé. Contem como foi que vocês começaram a se interessar por quadrinhos. O que os levou a tal interesse?

– Ah, isso vem desde que eu era criança. Epa, falamos juntos (risos)!

Mayhé – Eu me lembro de colecionar as HQ’s do Superboy da Ebal. Meu negócio na época era Superman. Eu sabia tudo dele, até quem eram os tios do miserável. (risos). Colecionava tudo. Acho que aquilo foi o estopim para eu querer aprender a desenhar.

- Como foram seus primeiros contatos e tentativas de publicação com editoras? Vocês conseguiram publicar de uma vez ou padeceram um pouco?

– Eu saí do quartel aos 22 anos e consegui uma vaga na Rio Gráfica e Editora pra fazer o trabalho de paste-up, que é adaptar os desenhos originais ao formato dos quadrinhos brasileiros, por volta de 1976. Havia a diferença entre o formato deles e o chamado “formatinho”, no Brasil, aquelas revistinhas tipo as da Mônica e Cebolinha que todo mundo conhece. Na hora de fazer a adaptação os desenhos originais precisavam ser completados ou cortados em certos pontos. O paste-up serve para manter a estética do trabalho, inclusive alterando o formato dos balões, para adaptar a tradução. Desenhávamos sobre o original. O paste-up era o primeiro passo para quem queria transformar-se em desenhista.

– Hum... era uma forma muito bacana de fazer o treinamento dos futuros profissionais. Hoje damos nomes estrangeiros a isto: mentoring, coaching e coisas do tipo. Mas ao que parece, como as editoras brasileiras não têm interesse em criar títulos nacionais e muito menos abrir espaço para novos talentos. Muita gente com potencial não tem uma chance porque normalmente se quer que já tenha publicado algo, por exemplo. Mas como é que alguém vai publicar algo se não há uma chance de entrada no meio ou uma chance de aprender fazendo? Hoje os editores preferem receber projetos já prontos para ver se vale ou não a pena publicar. E você, Menezes? Chegou a criar personagens tipicamente brasileiros?

Menezes - Criei uma história baseada na Invasão Holandesa a Pernambuco, passada em 1630. Nunca foi publicada porque os editores acharam que o assunto não interessaria a ninguém...

– Imagino o quanto eles subestimavam o público... Ainda hoje muitos subestimam. Quando criança sempre adorava ler HQ`s em livros didáticos. Era muito mais informativo e facilitava enormemente o aprendizado, pois a associação entre imagens e textos comunica mais. Excetuando-se os personagens do Ziraldo e, mais ainda, os do Maurício de Souza, praticamente nenhuma outra HQ genuinamente brasileira teve longevidade...

- O editor quase sempre quer o retorno em curto prazo. É mais fácil importar. O Maurício de Souza teve suporte comercial da Cica quando o Jotalhão passou a ser veículo para o extrato de tomate elefante. O Ziraldo, que agora vem tentando manter o Menino Maluquinho, teve muitas dificuldades com o Pererê. Hoje meio sumido...

- Ah, você ainda não falou sobre sua “origem” como quadrinhista.

- Meu pai também desenhava e foi o grande incentivador. Foi olhando os desenhos de bichos que ele fazia que me interessei pelo assunto. Eu ganhava sempre a revista "O Tico-Tico", olhava as figuras e já gostava dos quadrinhos. Depois que aprendi a ler, juntava as moedas que ganhava fazendo tarefas domésticas e ia comprar os gibis. Gostava muito de "Chiquinho e Benjamin", desenhada por Loureiro que era uma cópia de "Buster Brown" de Outcault, editado na América.

e – Caramba! Nessa época nem pensávamos em nascer! (risos)

– Ah, você já estava programado, hein, Wanderley. Só o Hollanda que é garoto é que os deuses ainda estavam projetando (risos). Mas continuando, eu gostava das histórias ilustradas por Oswaldo Storni. Muitos anos depois, viria descobrir Alex Raymond, do Flash Gordon, que passei a copiar...

– Menezes, no meu caso tive a sorte de conseguir aquele “treinamento”, como o Hollanda falou. Mas no seu caso parece que não foi um mar de rosas, não é?

– Os primeiros contatos foram um tanto frustrantes. Bem cedo fiz uma história passada na Amazônia, baseada no desaparecimento dos explorador Fawcett, que me motivou a fazer umas sessenta tiras, mas ninguém quis publicar. Na verdade, comecei com quadrinhos em 1952, na revista O Sesinho, patrocinada pelo Sesi, onde publiquei curiosidades sobre animais. Fiz outras histórias sobre assuntos brasileiros e só consegui vender uma para o México.

– Na RGE acabávamos tendo que copiar mesmo. Só depois de um tempo é que passamos a desenhar com nosso próprio traço. Mesmo assim o traço tinha que ser um tanto semelhante ao do Sy Barry e de outros desenhistas clássicos do Fantasma, do Mandrake e por aí afora. Só ao Júlio Shimamoto, de quem o Hollanda é fã, é que permitiam o uso do próprio estilo sem ressalvas. Ali ele usava bastante aquele desenho bem escuro, como fazia com as HQ’s de terror que produzia, com o Fantasma todo musculoso. Ficava legal. Mas enfim, copiávamos muito dos americanos antes de ser possível fazer algo nosso mesmo. Depois das revistinhas do Mandrake e do Fantasma, tinha a Bolota, Riquinho, Popeye, Recruta Zero...


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– Enfim, vocês desenvolveram estilos extremamente variados de trabalhos. No Brasil a gente tem que fazer de tudo. Os quadrinhistas norte-americanos têm uma equipe meio grande, não?

– Eles tinham roteirista, desenhista, arte-finalista, colorista e letrista. Hoje, talvez por causa do computador, esse monte de gente pra fazer uma história deve ter-se reduzido, mas mesmo assim ainda é uma equipe de que nós aqui normalmente não dispomos. Os desenhistas de lá costumam utilizar-se de modelos vivos. Aqui a gente não pode arcar com esses custos. Quadrinhista brasileiro vive numa correria danada e as editoras normalmente põem os preços lá embaixo. A gente olha pro desenho que fez e nunca fica satisfeito, nunca acha bom, mas a pressão é tão grande que acabamos por entregar assim mesmo. Mas nossos artistas são tão bons que mesmo com toda essa correria eles conseguem fazer trabalhos de alta qualidade.

– É verdade. Mas falta em muitos quadrinhistas brasileiros de hoje o que costumo chamar de “injeção de autonomia”. É claro que há casos diferentes e há pessoas que realmente não tiveram oportunidade. Mas é preciso que todos se conscientizem de que são profissionais liberais. No seu tempo se justificava a busca por um patrono ou um patrão, pois era uma outra conjuntura e não havia outro jeito. Mas hoje não podemos ficar à espera de uma autoridade, de um padrinho. Temos que fazer por nós o que os grandões não se interessam em fazer. Quem já pode dispor de um computador com uma boa performance em programas gráficos tem em mãos uma possibilidade de ser mais ou menos independente.

– Pois eu também acho assim. Na época em que eu desenhava o Jim das Selvas volta e meia me pegava achando que a lâmpada do estúdio estava muito forte. Só depois é que notava que havia virado a noite trabalhando e o sol já tinha nascido fazia tempo. Tomava um banho bem frio pra me manter acordado e ia trabalhar em outras coisas mais rotineiras. Mesmo assim ficava doido pra que chegasse a noite para poder retornar aos quadrinhos. É a vida da gente. É a fantasia de quem ama o que faz.


Alguns trabalhos de Menezes expostos no dia 6 de agosto na ABI, no Rio de Janeiro
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– Na Rio Gráfica nunca houve intenção em publicar quadrinhos genuinamente brasileiros, como foi o caso da Vecchi?

– Não. Exceto talvez na época do Menezes, acho, quando era publicado o GIBI, aquela revista enorme, do tamanho de um jornal. Os personagens estrangeiros vendiam bem, não interessava a eles produzir coisas nacionais. Como já dissemos, não podíamos nem mesmo ter um estilo próprio, exceto se ele fosse muito próximo ao do americano.

- Agora uma coisa meio besta, mas que sempre me intrigou: por que cargas d’água o Fantasma usa aquela cueca listrada pra fora das calças? Ela parece com aquelas faixas de “proibida a entrada” ou “não ultrapasse”, com listras pretas e amarelas. (risos)

– Isso o Menezes deve saber melhor do que eu. Quando eu trabalhei lá ele escrevia as histórias do Fantasma e eu e mais alguns caras da equipe desenhávamos. O que fiquei sabendo é que aquelas listras não foram colocadas aleatoriamente. Há um motivo que é explicado em algumas histórias antigas, que falam sobre os primórdios da saga dos primeiros Fantasmas. Aquelas listras têm a ver com pirataria, com a idéia de caça aos malfeitores. Me parece que aquela estampa era usada por alguns piratas, nos lenços de suas cabeças. A própria caveira é um símbolo pirata.

– É como se o Fantasma estivesse fazendo o pirata provar de seu próprio veneno, então.

– O que o Wanderley disse é correto. Só que as listras amarelas só eram dessa cor no Brasil. No original são azuis e pretas. De qualquer modo a alusão a símbolos de pirataria está correta.

– E aquela “marca do bem”? Pelo que sei ela é um ícone com quatro espadas cruzadas. Aquelas pontas com formato de “P” são os cabos das espadas. Mas aquilo me sugere também uma derivação do monograma do Cristo, aquela figura que entrelaça as letras gregas “X” (qui) e “P” (rô). Repito: uma derivação, não estou dizendo que é igual. No monograma a figura parece um "X" (xis) trespassado por um "P" (pê).

– Só conheço a versão das espadas, mas como você disse antes da entrevista, o artista muitas vezes acaba representando um arquétipo sem perceber. Talvez tenha mesmo um pouco disso.

– Agora vamos mudar um pouco o rumo de nossa conversa e falar de um reflexo muito interessante que acontece no trabalho artístico. Como vocês se sentem quando estão desenhando? Quero dizer, quando fazem determinado tipo de cena, por exemplo, uma cena de luta, vocês assumem o comportamento dos personagens? Pergunto porque isso é extremamente comum nas artes cênicas. Quando desenho e escrevo também acontece muito. Volta e meia meu rosto assume uma forma coerente com a imagem que ponho no papel. No caso do Fantasma, para vocês, como era?

– Isso acontecia comigo mais na hora em que o fazia brigando. Eu me pegava fazendo caretas. Me transformava bastante mesmo. Lá no estúdio nós tínhamos um espelhinho em cada prancheta. Eles serviam para copiarmos nossos rostos, mãos, detalhes... enfim, era para ter referenciais como modelos vivos (improviso de brasileiro...). Aí quando eu olhava para o espelho durante a cena de luta era fatal: estava fazendo careta. Nesse ponto eu me transferia mesmo. Parece que isso acontece com todo desenhista. Já li numa reportagem que os profissionais da Disney quando fazem uma passagem triste fazem cara de choro sem perceber que fazem. Acho que isso acontece porque o artista tem que sentir de fato o que faz, senão a coisa não sai. Observe a si mesmo ao fazer uma cena de luta. Se você desenha com a mão direita, pode ter certeza de que seu punho esquerdo está cerrado.

– Sem dúvida. E eu pensei que essa coisa do punho era só comigo...

– É como se a gente ficasse pronto pra dar um soco em alguém.

– O Will Eisner, criador do “The Spirit”, naquele trabalho “Quadrinhos e Arte Seqüencial” tem umas revelações sobre este tipo de coisa, especialmente sobre as mensagens subliminares que o desenhista imprime às vezes sem saber na imagem. E muito disso vemos na escrita também.

– Eu vi um documentário na televisão sobre o Eisner quando ele veio ao Brasil. Ele explicou o desenho de uma forma que eu nunca tinha imaginado. Eu sempre pensei que desenhar quadrinhos era pegar o roteiro, desenhar e ponto final. Mas ele fazia uma análise sobre a forma de desenhar que nada para ele era por acaso, tudo tinha um significado.

– Pois é isso. O desenho e também o personagem literário, tem um apelo arquetípico, mexe com o inconsciente de quem produz e de quem lê. O processo de identificação do fã é com a imagem, não com a pessoa ou com o boneco, mas com o arquétipo. Para se ter uma idéia da força das imagens sutis contidas nas grafias, a letra “A” é a cabeça de um boi virada de cabeça para baixo. Em sua origem era de fato uma cabeça de boi. E olha que a primeira letra do alfabeto hebraico, o aleph, quer dizer “boi”. As letras gregas derivam dos mesmos caracteres que deram origem ao hebraico que se conhece hoje e as letras de hoje no ocidente derivam das letras gregas. Ora, o alfabeto é uma história em quadrinhos. Cada letra tem uma pequena história, pode representar um animal, um objeto, uma pessoa, o sol ou a lua... Partindo desta premissa, e sabendo que ideogramas chineses, assim como a escrita da própria Bíblia em hebraico, encerram em si um grande conjunto de significados a cada letra e palavra, entende-se que nunca as imagens transmitem uma só informação. Sempre há, principalmente quando se usa iconografia, um apelo a padrões, subconscientes em alguns casos, inconscientes em outros, que o ser humano traz consigo desde o alvorecer das sociedades.

– Puxa! Então, pra completar, não sei se você sabe de um detalhe bem esquisito sobre o Eisner e a criação do Spirit. Eu já observava isso quando entrei na Rio Gráfica e Editora. O pessoal de lá também percebia isso, não é, Menezes? Posteriormente ele mesmo disse numa entrevista o que vou dizer agora: quando ele criou o Spirit, o fez à sua própria semelhança física. E no contexto do personagem há o comissário Dolan. Eisner contou aquilo que nós havíamos percebido, mas estávamos um tanto incrédulos para associar uma coisa à outra: “Spirit era minha imagem quando eu era jovem. Hoje, com a idade que tenho, estou idêntico ao comissário Doyle”. Hollanda, ele ficou igualzinho mesmo! Isso até hoje me impressiona. É como se ele tivesse previsto a forma que tomaria quando velho.

- Será que ele, de algum modo, se condicionou a assumir aquela forma? Bom, realmente não sei explicar isso.

– Eu não sei o termo certo, mas o personagem é a alma do criador, é tudo do criador, tanto física quanto mentalmente. Para Eisner ficar ainda mais parecido com o personagem só faltaria levantar aquele topetinho.


O Comissário Dolan com Spirit e sua namorada.

– Acho que é bem por aí mesmo. Os quadrinhos são como uma versão moderna de práticas sacerdotais antigas. Principalmente se os compararmos à prática dos escribas. Os escribas costumavam representar dramas divinos, até porque a escrita era uma coisa atribuída aos deuses, especialmente Toth, no Egito, ou Hermes, na Grécia. E a própria narrativa da vida de um faraó era a narrativa de um épico divino, pois para os antigos egípicios o faraó era uma representação divina na Terra. O Menezes me contou também um episódio muitíssimo interessante sobre esse tipo de identificação psicológica com os personagens...

– Fiquei só escutando, porque é impressionante o quanto isso que vocês falaram me toca. Quando você desenha, você incorpora o que está fazendo, não tenham dúvida. A gente incorpora. Vou lhes dar dois exemplos rápidos só pra ilustrar. O Gutemberg Monteiro desenhou por mais ou menos 15 anos a dupla Tom & Jerry. Até que a Hanna Barbera propôs “sutilmente” a ele que se mudasse para Orlando, na Flórida. “Ou você vai pra Orlando desenhar por computador os personagens, ou vai deixar de desenhar a tirinha”. Ora, ele morava com a família em Nova Iorque e eles não queriam ir para Orlando. Gutemberg ficou numa situação muito difícil e preferiu não viajar, perdendo a chance de continuar a desenhar as tiras dos personagens. Agora, ele me disse que durante umas duas semanas ele sonhava, ele tinha a impressão de que o gato e o rato ficavam ao lado dele se lamentando. Ele disse: “Menezes, eu sentia os personagens tão fortes dentro de mim que eu sofria muito.” Tenho uma caricatura dele lá em casa que tem justamente os personagens ao lado dele chorando ao lado dele e ele também chorando por causa da separação. Aquilo lhe era tão inerente que ele dizia sentir como se tivesse perdido um parente próximo.

Com relação a mim esse tipo de coisa aconteceu muito fortemente com o Jim das Selvas. Um dia eu estava dentro da RGE e criava o departamento de arquivo e documentação de lá (sempre fui muito chato, um pesquisador compulsivo) quando fui chamado à redação. “Deixou de vir o Jim das Selvas dos Estados Unidos. Você quer fazer?” - foi o que ouvi. Olha, Carlos, eu só não dei um pulo e um berro dentro da redação porque ficaria ridículo. Eu teria que desenhar e escrever. Fui pra casa aos pulos de alegria. Bom, pra variar, o tempo era escasso. “São trinta e duas páginas e você só tem 15 dias pra fazer” – disse o editor. Argh, era tudo pra ontem! Ficava várias noites sem dormir, mas não me cansava. Leve-se em conta que um desenhista que produz normalmente, sem correr, faz umas duas páginas por dia, no máximo. Tem uns que fazem mais, mas para outros isso é correr demais. Mas eu me sentia o próprio Jim das Selvas de tanto entusiasmo.

– Você diz ser um pesquisador compulsivo. Como assim?

– Ah, só pra você ter uma idéia, quando recebi o “presente” de fazer o Jim das Selvas não me contentei em fazer como o Alex Raymond, que focalizou mais o lado aventureiro do herói. Eu queria dar um tom de realismo na coisa e por muito tempo me correspondi com Kuala Lumpur, na Malásia, recebendo material de pesquisa sobre os costumes, dados turísticos, termos de linguagem, as imagens típicas, as formas e coisas do tipo. Vou a fundo numa pesquisa. Trabalhei por um bom tempo, seis anos, com departamentos de pesquisa jornalística, chefiando o setor. Recebia cartas de embaixadores e tudo. Procurei levar o Jim por toda aquela região da Malásia. Depois de dois anos voltou a vir o material americano e eu deixei o personagem. Mas confesso que senti uma saudade imensa do herói.

– E nas cenas de luta? Era como o Wanderley falou?

– Vou te contar... soco na mesa eu dava (risos). A gente fica muito envolvido, não tem jeito.

– Tem gente (como eu) que nos primeiros cinco minutos após deixar a prancheta ainda pensa e age mais ou menos como o personagem. Dizem que o Marlon Brando mantém a personalidade fictícia por um bom tempo, quando faz um filme.

– Ainda mais da maneira que a gente trabalha aqui, fazendo tudo: texto, desenho etc. Se você é tudo, você é o Deus daquele universo e se o Deus se infunde naquela realidade, ele é aquela realidade.

- O Fantasma tem uma série de símbolos que astrologicamente podemos associar à dinâmica do signo de Escorpião. Wanderley, você é escorpiano, isto é, tem o Sol neste signo. É curioso o fato de haver uma identificação entre seu subconsciente e o personagem e, mais ainda, é curioso o fato de artistas com ênfases em determinados signos colocarem-se inconscientemente em circunstâncias tais que os levem a desenhar personagens condizentes com suas próprias naturezas. Assim foi com Steve Ditko, um outro escorpiano que desenhou as primeiras histórias do Homem-Aranha. Ora, escorpiões e aranhas são aracnídeos e nas historinhas do herói ele enfrenta umas crises de culpa típicas do signo. Tem também o elemento capricorniano, no que se refere a escalar (as paredes). Já o Menezes tem muito mais a ver com o Jim das Selvas mesmo. Esse personagem sempre me pareceu uma espécie de Tarzan vestido. Aliás, era o Johnny Weissmuller quem fazia o personagem no cinema e no seriado que passava na TV, o mesmo ator de Tarzan. Ambos eram “reis das selvas” e bem que isso tem a ver com o Sol em Leão do Menezes. Menezes, aliás, tem um mapa típico de um escritor que também é pesquisador. Com aquele planeta Mercúrio retrógrado e Vênus, regente do Ascendente dele em Virgem, além de Plutão na casa 3 temos um quadro bastante comum para quem gosta de escrever e contar histórias após pesquisar muito. Ah, também tem a Lua em Peixes, que está no mapa de gente muito imaginativa, o Sol em Leão, que sente necessidade do mito, do grandioso. São alguns dos fatores. Notem algumas coincidências nos mapas de vocês: Plutão, no mapa de Mayhé também está na casa 3 e o Mercúrio dele também está retrógrado. Quem tem essa configuração para o “mensageiro dos deuses” normalmente tem maior habilidade para comunicação por imagens ou por intermédio de metáforas, de poesias. Isso não quer dizer que não seja capaz de abstrair matematicamente, mas a capacidade de percepção global costuma se desenvolver mais rapidamente que o raciocínio sobre coisas muito objetivas, como Física ou Engenharia. O Carl Sagan, aquele astrônomo que apresentava o programa “Cosmos” na TV, também tinha Mercúrio retrógrado. Não admira o fato de seus escritos, especialmente o livro “Contato” ser delicioso de se ler.


Carta astrológica de José Menezes. Dados: 06/08/1933 - 23:40 - Rio de Janeiro-RJ

Bom, gente, pra finalizar: Wanderley, respondendo rápido: por que no Brasil o Fantasma trajava vermelho ao invés de roxo, que é a cor original:

– Porque no Brasil naquela época não se encontrava o roxo original. Resposta rápida e rasteira, mas foi isso mesmo. Foi preciso improvisar. Depois tentaram trocar a cor, mas aí os leitores reclamaram e ficou assim mesmo. Uma vez habituado, o leitor não gosta muito de grandes modificações no personagem. Há exceções. Parece que no caso do Aranha o uniforme preto teve um tempinho de sucesso, mas logo os editores optaram por voltar ao original.

– Menezes, os cariocas tiveram o prazer de ver seus trabalhos, além dos de outros mestres do traço, na exposição “Seis Ilustradores - Quadrinhos e Arte Publicitária”, na sede da ABI - Associação Brasileira de Imprensa. Foi no dia 6 de agosto de 2002. Você estava ao lado de uma turma muito boa mesmo. O Benício, por exemplo, faz cartazes sensacionais para cinema. Atualmente você tem se dedicado mais a que tipo de trabalho?

- O Benício têm estúdio próprio e é sempre requisitado para cartazes de cinema. Mas, seu trabalho está dirigido para a publicidade. Quanto a mim, faço ainda argumentos para editoras de São Paulo, ilustrações para livros-didáticos e desenhos de autores brasileiros para o Jornal de Letras, editado pela Academia Brasileira de Letras.

- Na época em que vocês começaram a trabalhar no Fantasma, Menezes desenhava e escrevia, não? Wanderley só desenhava, correto? Sabemos que muitos artistas tendem a viver situações um tanto paralelas ao que vêm produzindo (por escrito, nos desenhos ou no palco). Como andava a vida de vocês nas respectivas épocas? Refiro-me à vida conjugal, aos amigos, saúde, finanças...

- O Fantasma foi um caso curioso. Passei a me interessar pelo herói quando trabalhava na Rio Gráfica, pois era a revista que mais vendia. Em 1970, entrevistei em São Paulo, Lee Falk, e curiosamente, ele me disse que gostava mais do Mandrake. Em 1971, passei a desenhar e escrever o Fantasma, por coincidência quando nasceu o meu caçula. Meu relacionamento dentro da Rio Gráfica era ótimo e, nessa época, era também coordenador editoral da Editora Expressão e Cultura, ganhava bem e o Rio não tinha nenhuma violência. Era, então, a Cidade Maravilhosa...

– Foi um dos melhores períodos em minha vida, onde trabalhos freelancer não faltavam. Eu era uma máquina de trabalho na época. Virava noite como o Menezes e, pelo jeito, como você faz atualmente. Estava com 24 para 25 anos. Minha primeira TV a cores eu paguei trabalhando pra uma empresa que tinha um escritório na Av. Presidente Vargas, no Rio, fazendo letrinhas pra balões de HQ’s americanas. Eu fazia os textos e minha esposa ia colando nos quadrinhos. Depois, com o desenho mais apurado, passei a pegar freelas de desenho mesmo. Enfim, foi uma época muito boa, seja em termos financeiros, seja afetivamente. Não tinha filhos na época, então estávamos namorando bastante. Gozado que eu não me ligava muito em carro. Na época não estava motorizado e mesmo assim não tinha tempo ruim para passear. Não tinha preguiça de nada.

Rapaz, eu sempre tive um pé atrás com aquele pessoal que costuma dizer que prevê futuro, que resolve a vida e “traz o amor em três dias” (risos). Isso que você faz me parece interessante...


Wanderley Mayhé - Dados: 10/11/1953 - 19:30 - Rio de Janeiro - RJ

– Você é escorpiano com Ascendente em Gêmeos e Lua em Capricórnio. Não é tão incomum esta sua reação. A combinação Escorpião/Capricórnio geralmente está no mapa de pessoas um tanto desconfiadas. Quanto a seu bom humor ele está bastante de acordo com seu Ascendente. Você é bastante comunicativo. Note que todas as vezes que nos falamos pelo telefone nunca conseguimos levar menos que 20 minutos, mesmo que seja falando abobrinhas. Gêmeos é por excelência o signo da comunicação. O comportamento do tipo geminiano também costuma ser bastante cético, questionador e com bem menos certezas que dúvidas. Só precisa se aprofundar um pouco mais nas coisas para que suas dúvidas não o atormentem tanto. Bom, não vamos interpretar seu mapa todo, mas tem muita coisa a ser vista nas configurações, especialmente aquela artística conjunção de Vênus com Netuno que o Menezes também tem. Aqui só falei rapidamente de alguns pontos isolados.

Bom, gente, agradeço a presença de vocês aqui e o fato de compartilharem algumas de suas experiências. Espero que os leitores possam extrair daqui um bom material para reflexões.

Um grande abraço.

Veja como complemento a esta entrevista,
a matéria “Arte e Significado”.