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TANTÁLIDA NOSSA DE CADA DIA
por Marcelo Baglione - Fale com o autor


A Tragédia que Corrói Gaia


Um dia desses tive que ir buscar a Aninha Geléca e o Animal Lapeyronie no colégio, lá no lindo e inspirador bairro de Laranjeiras. Era um final de semana e havia uma competição esportiva no Lycée Molière onde eles estudam.

Na ida, ao parar num sinal, fui abordado, como sempre sou, pela alegria do Café, um menino de rua, um pacífico e desassistido jovem que luta diariamente como vendedor ambulante num sinal de rua do Rio.

Assim ele trabalha para sobreviver, comer e ir até onde Deus quiser.

Observo este garoto já há um bom tempo. Às vezes ele muda de roupa. Seu short, bermuda ou calça comprida podem até variar, somente a sua camisa do Flamengo se mantêm constante no seu humilde vestuário. “Esta camisa do Flamengo é muito mais do que uma simples camisa para o Café” — penso eu —, pouquíssimas coisas nesta vida devem-lhe fazer esquecer o frio da solidão, o maldito vazio da fome e o inferno da violência que permeiam o seu cotidiano desde a sua chega neste mundo”.

Em todo este tempo que conheço o Café, esta foi a primeira vez que a alegria em vê-lo logo se transmutou num sentimento de desalento e dor indescritível. Naquele momento, uma tristeza insolúvel prescrutava a minha Alma.

— E aí sangue, tudo bem? A gente vamu limpa legal, federal! Hoje não tem pobrema porque é sabu. Amanhã o mengão vão arrebentar no maraca e passa o rodo no Fruminense, valeu?

Enquanto o Café dizia isso, ele ia jogando água no meu pára-brisa e limpando a sujeira que ofuscava a minha estúpida e limitada visão da realidade que vivo e brigo.

Ao passo que isto era feito pelo meu amigo de esquina, mais e mais aumentava o trágico sentimento de que algo, invisível, erodia as profundezas de minh’Alma.

Era trágico ter o meu pára-brisa limpo e ver, de frente e sem maquiagem, uma imagem infeliz da realidade social brasileira.

Se quer conseguia chorar, tão forte era o sentimento de tristeza que tinha se apoderado de mim naquele breve período em que eu olhava o pára-brisa molhado e via uma pouco da minha infelicidade e da suprema impotência diante de problemas como estes.

Eu não precisava chorar mais, pois a água reaproveitada que o Café usava para (tentar) limpar o meu pára-brisa era, em verdade, um simples reflexo das obscuras lágrimas que carrego dentro do meu ser. O nosso momento de crise mundial é tão cruel que as minhas lágrimas só poderiam mesmo ser negras.

E continuei pensando: “Até quando o meu amigo resistirá? Até quando este meu herói das ruas conseguirá sufocar a sua realidade com as alegrias da sua camisa do Flamengo que tanto tem aquecido a sua triste e gélida realidade? Virá, ainda, o infeliz e funesto dia em que a ‘cola’, o ‘crack’ e outras camisas aquecerão o seu dia-a-dia, até estagna-lo, como um zumbi, no meio caminho entre Eros e Tanatos? Que tragédia”.

Deus foi benevolente para comigo e acabou com tudo aquilo. O Senhor Krishna abriu o sinal e o meu martírio, um instantâneo da realidade social em que vivo, chegou ao fim!

Abri a janela e olhei para a alegria cariada do Café que vestia um short azul da seleção e... é claro, sua sagrada e surrada camisa do Flamengo.

— Três reau, sangue? Valeu mermo. Aí..., semana que vem eu vamu vender chicrete e broco branco pa escreve. As coisa agora tá melhorando, maluco.

Estas foram as palavras finais do meu doce Café. Um inocente e bem intencionado menino de rua do Rio de Janeiro.

Embora ele tenha ficado contentíssimo com os três reais que lhe dei pelos seus préstimos, a sua alegria cariada não pode esconder uma dentição apodrecida: o fiel retrato do Brasil, um negativo, sem retoques, de um país que dá as costas para a gangrena social que decompõe o nosso tecido social que morre, desamparado, dia após dia.

Esta... foi a última vez que vi o Café.

Quando o meu amigo editor, O Tom, me convidou para redigir uma reflexão sobre o século XX, imediatamente comecei a ruminar comigo mesmo: “Quem está escrevendo o futuro? Certamente não é este menino, o Café, pois ele nunca foi a uma escola. É analfabeto. Não sabendo ler e escrever, como alguém assim poderia redigir o amanhã, ou construir uma realidade mais justa, saudável e organizada dentro de princípios verdadeiramente humanos que sempre lhe foram negados?”

Gente como ele, pode até não estar escrevendo o futuro como o fazem, de uma maneira mal sucedida, as elites governantes e “pseudo criativas” de nosso planeta. Manipulando complexos sistemas de comunicação ou gerando mais tecnologia — úteis e também inúteis —, “a casta cega” que dirige e governa o mundo é, em sua maioria, tão agramática e agráfica para escrever o futuro ou ditar uma nova ordem quanto o meu amigo de esquina, o desvalido Café.

O Café não está preocupado em escrever o futuro, não há tempo, mesmo porque a sua mão nunca teve a oportunidade de ser educada para ostentar uma pena ou clicar um computador. Ele apenas luta, diariamente, para sobreviver e suplantar as provações que a selva urbana lhe impõe. Sem saber, gente como ele mata, heroicamente, um leão atrás do outro a cada dia — até quando?

Que safári danado, não acha?

Da mesma forma, alguns dirigentes e políticos que compõe a “casta cega” não estão nem um pouco interessados em escrever o futuro. Preocupam-se unicamente em fazer guerras, produzir violência ou delapidar o erário público, por exemplo. São egoístas e, em essência, absolutamente inaptos no que tange a elaboração de uma mundo mais equilibrado e fraterno. Covardes também são, pois eles se quer tem a coragem de enfrentar, como qualquer Café ou honesto cidadão faz, as “feras” (os problemas) que habitam a realidade social que eles mesmos ajudaram a construir.

Pobres, oprimidos, todos os injustiçados do mundo em que vivo tiveram as “gônadas da cidadania” tiranicamente castradas!

Quem teria, por conseguinte, a real capacidade não de escrever, mas sim de reorientar o nosso futuro e, desse modo, redigir os fundamentos de uma amanhã enraizado em princípios sócioeconômicos e políticos mais justos?

Qual seria a solução para um mundo tão saturado pela supremacia fálico-masculina que vem oprimindo a possibilidade de um desenvolvimento mais sensato do planeta como um todo?

- II -

“Os átomos não são divisíveis, e não há divisão até o ilimitado”. Era assim que pensava o filósofo pré-socrático Demócrito (± 460-370 a.C.), um discípulo de Leocípo, o filósofo que desenvolveu a teoria dos átomos.

Enquanto maior expoente da escola atomista, Demócrito estabeleceu o “Ser” (de Parmênides) como a essência de todas as coisas, sendo este mesmo “Ser” composto por “átomos”, palavra grega que significa “indivisível”.

Mas a alvorada do século XX chegou, trazendo um cisma paradigmático na consciência científica que, até então, tinha sido estruturada dentro das concepções filosóficas-racionais e mecanicistas de Bacon, Descartes e Newton.

Já se passaram quase dois milênios e meio desde as idéias atomicistas de Leocípo e Demócrito até a primeira bomba atômica de plutônio.

Os átomos são divisíveis, sim, e apresentam um universo de partículas que transcende uma percepção submicroscópica. O homem, a natureza e os fenômenos naturais que o cerca já não são vistos e tratados como máquinas isoladas que podem ser compreendidas unicamente através de uma visão burocrata e racional tecno-analítica.

Se, por um lado, o progresso humano foi capaz de fissionar o núcleo de um átomo, despertando, assim, a fantástica energia que dormia no seu interior; por outro, ele ainda é incapaz de dividir, com justiça, o pão (a riqueza) da Terra entre os homens.

É muito estranho. O gigantesco progresso tecnológico parece ter um irmão que o acompanha por todos os lados. É a sua sombra: a miséria, filha das imprudências sociais, políticas e econômicas que as nações e seus respectivos governos produziram em todo o mundo.

O avassalador desenvolvimento industrial e econômico dos últimos séculos, de características eminentemente yang, portanto, masculino, não considerou as suas famintas investidas sobre a natureza e seus recursos, bem como os reflexos deste crescimento (nefasto, pois foi impensado) sobre o meio ambiente.

Que filhos são estes, que humanidade é esta que diariamente vem destruindo o meio ambiente?

Homens que aniquilam a natureza: pode existir uma relação mais decadente e obscura com a Mãe-natureza?

É um matricídio! O filho-humanidade está assassinando a própria mãe-terra sem um pingo de remorso, destruindo-a de uma maneira lenta e sádica todos os dias. Oceanos e rios, florestas, terras e o ar, os atributos da Mãe-natureza são poluídos e reduzidos a não vida com uma rapidez sem par na história humana.

Este progresso mundial que destrói a natureza e o meio ambiente é matricida antes de ser suicida.

A postura mal planejada (dos governos e das nações) ao se “relacionar” com o meio ambiente não poderia ser vista como uma grave neurose coletiva que acomete a consciência planetária, a humanidade, quando esta se coloca de uma maneira cega e destrutiva em relação a biosfera?

- III -

Várias histórias, contos e mitos povoaram a minha mente a medida que ia pensando nesta situação de desamparo em que se encontra a natureza atualmente que, sem sombra de dúvidas, é um (grave) sinal de uma total falta de habilidade do homem em lhe dar com o feminino numa escala mundial; portanto, com o aspecto yin numa perspectiva individual e coletiva.

Todos os benefícios científicos e tecnológicos que o mundo saboreia hoje em dia são o reflexo direto do mega desenvolvimento da cristandade ocidental, impulsionada e baseada na cultura euroamericana que elevou o poder da razão absoluta e da mente mecanicista a uma potência tal que tornou-se..., vejam só, impotente para solucionar os atuais problemas que ela mesmo criou: a miséria social, econômica e ambiental, assim como as suas anomalias e patologias (misteriosas equações ainda sem solução) que vem se desenvolvendo cada vez mais em todo o mundo.

Reorganizar a casa (a civilização, o mundo), dividir as riquezas com equilíbrio e justiça, nutrir e proteger, educar e alimentar o gênero humano, todas estas metas, creio eu, somente poderão ser alcançadas se a humanidade começar a se preocupar com um sério desenvolvimento das características yin, femininas, que foram tão reprimidas e massacradas no decurso do poder da Igreja Católica que influenciou o pensamento, a ciência e toda a civilização ocidental com uma noção errada e distorcida do elemento feminino, o que terminou por gerar uma civilização deploravelmente cruel, machista e sem compaixão.

É o individualismo levado as últimas conseqüências.

Esta situação inumana, a cadeia de atos agressivos contra a Mãe-natureza, é tão miserável que fizeram (por sorte minha) com que os “ventos frios do inverno carioca sibilassem sobre os ouvidos do meu coração” imagens do passado, arquétipos que podem axiliar-nos a ver e compreender melhor o nosso drama biosférico: de um lado a Mãe-natureza e, do outro, a humanidade e o seu progresso, um filho inconsciente e perdido, um homicida da natureza.

No palco da antiga Grécia, em torno de dois milênios e meio atrás, grandes tragediógrafos como Ésquilo, Sófocles e Eurípdes trataram com muita propriedade o tema de Electra que deve ser conhecido e correlacionado com a nossa já citada crise biosférica.

O mito de Electra é fascinante antes de ser altamente complexo ao tecer uma longa e interminável rede de causas e ações que os orientais naturalmente denominam karma. É um ciclo cruel, porém lógico.

Como este mito não é origem e sim manifestação, portanto, causa de uma “antiga maldição” é necessário, antes, visitar um outro relato: o mito de Tântalo, rei de Sípilo, no território da Lídia.

Certa vez, querendo pôr a prova o poder da clarividência dos senhores olímpicos, o filho de Zeus, o monarca Tântalo, convidou os deuses para um banquete. O rei de Lídia tinha um orgulho desmedido e não economizou esforços para afrontar os seus convidados, cometendo um sacrilégio que não pôde ser perdoado: o anfitrião ofereceu como prato principal a carne de Pélope, seu próprio filho. O sacrílego e infanticida foi logo descoberto pela onisciência de seus convidados que indignaram-se com o insulto. Tântalo foi sentenciado a sofrer de sede e fome nas regiões sombrias e infernais do Tártaro plutoniano, onde a água que havia fugia de sua boca, impedindo-o de saciar a sua sede e a árvore com seus frutos, elevava-se de sua presença, proibindo-o, também, de sanar a sua fome. Este foi o seu interminável castigo.

Daí em diante, todos os descendentes de Tântalo passam a ter a obscura marca de uma maldição sem fim, onde orgulho, traição, vingança e morte serão eternas companhias de todos estes herdeiros.

O filho de Tântalo e amante de Poseidon, Pélope, teve sorte (entre aspas!) e foi reconstituído pelos deuses olímpicos. Sua covardia e maldade foram tão inconcebíveis que Pélope foi amaldiçoado por Mírtilo quando este era tragado pelas águas do oceano, pois viu que tinha sido usado numa trama sórdida e traiçoeira de paixão e poder.

Ninguém escapa desta cadeia inquebrantável envolvendo ódio e morte.

A filha de Tântalo, Níobe, devido a sua vaidade mortal e a um ato de ofensa espiritual à deusa Latona, mãe de Apolo e Diana, teve o seu maior orgulho destruído: todos seus filhos são mortos como represália divina ao seu sacrilégio espiritual.

A trilha da obscura maldição passa por Pélope, chega aos seus dois filhos Tiestes e Atreu e alcança Agamenão, filho do segundo.

Agamenão se casou com Clitemnestra e tornou-se rei de Micenas. Durante a sua ausência no reino, em virtude de uma importante campanha militar, sua esposa acomunou-se com Egisto que usurpou o trono de Micenas e passou a ser amante da rainha. Electra, a filha da rainha, se revolta e não aceita a traição da mãe, passando a odiar o casal adultero. Cresce, por conseguinte, o ódio e a vingança na alma de Electra que atinge o máximo quando ela vê Egisto assassinando o seu pai Agamenão, sob as ordens de sua mãe. Como a filha de Agamenão era uma herdeira tantálida, ela soube aguardar o momento exato para a perfeita vingança. Quando o seu irmão Orestes retornou ao reino, ela conseguiu persuadi-lo a assassinar Egisto bem como a Clitemnestra, a mãe de ambos. Sob a influência de sua irmã, Orestes comete um matricídio. Assassinou a própria mãe.

A “maldição de Tântalo” tem início, portanto, quando esse desafia a ordem e o poder dos deuses olímpicos através da soberba que embriagou o seu ego real. Por um simples capricho mortal, Tântalo ofendeu as potestades através da obscuridade yang de sua personalidade imprudente e sacrílega. A psicologia masculina (yang) negativamente desenvolvida (distorcida) na personalidade do rei Tântalo é uma marca negra que pode ser constatada nos seus herdeiros, ao ponto de Níobe, sua filha, assumir uma postura fálica e inconseqüente, por pura vaidade e extravagância mortal. Devido a traumas e cismas familiares, Electra, um desvio psicológico, transforma-se numa criatura sem alma, onde todas as qualidades intrinsicamente femininas como o carinho, a proteção nutridora e a feminilidade em si são abissalmente afogadas num oceano revolto pelo ódio. Electra é mulher apenas por fora — o que não é de se espantar. Sua mãe, Clitemnestra, é uma criminosa e traidora adultera; seu padrastro (imposto), um usurpador assassino, e seu pai, um objeto de vingança do casal adultero. Logo, Electra é um distúrbio, um vazio composto por ódio e vingança. Não há mais afeto, ou muito menos compaixão; a lei e o limite são banidos de sua personalidade vingativa e transgressora, porém, covarde, pois ela não mata: Electra arquiteta um duplo homicídio que é empreendido pelo seu irmão Orestes que assassina a própria mãe. A tragédia consuma-se com o matricídio.

Não somente a mãe, o portal da vida, tornou-se nefasta, tudo é uma entropia só neste antiquíssimo relato mitológico: um ciclo lógico de causa e efeito que se perpetua de geração a geração até que atinge um ponto de tensão insustentável no palco da vida.

- IV -

Duas coisas chamam muito a atenção no mito de Tântalo: o desrespeito, a afronta (a natureza divina) e a punição.

Não me considero um ser humano pessimista. Não! Todavia é insofismável em nossa realidade planetária os claros efeitos de nossa afronta à Natureza.

Sob certo sentido, já estamos sofrendo o mesmo martírio do Rei Tântalo que tinha todo alimento que desejava, mas não podia alimentar-se dele.

Veja bem: a água, o sangue sagrado da Mãe-terra, tão essencial para o homem e toda a vida planetária, a cada dia que passa encontra-se mais e mais corrompido e maculado pela inconseqüência de um progresso yang (graças a Deus, em absoluto declínio) e plutoniano.

Digo plutoniano simplesmente porque, se lembrarmos, no banquete oferecido pelo rei Tântalo se diz que somente a deusa Ceres não percebeu que o monarca serviu a carne do próprio filho. Nem poderia, ela encontrava-se totalmente abalada pelo rapto da filha, a bela Perséfone que tinha sido levada por Hades, Plutão, para as profundezas do infra-mundo.

Hades não soube conquistar, seduzir e, sendo rejeitado, usurpou a filha de Ceres, usando de violência e tirania típicas de um caráter fálico em absoluto desequilíbrio.

Mas como Ceres era uma manifestação da Mãe-natureza em si, o arquétipo que sustentava e nutria toda a bisofera, seu protesto, sua vingança foi mortal: ela entristeceu-se ao ponto de retirar todo o seu poder do mundo natural, e recolheu-se, como a seiva das árvores no inverno, gerando todo tipo de miséria ambiental e, conseqüentemente, social e econômica.
A situação tornou-se tão insustentável que os próprios deuses pediram a Hades que devolvesse Perséfone a Ceres. Assim se fez, e a Natureza regularizou-se com a alegria da Ceres que consegui reaver sua filha.

O atual modelo de desenvolvimento planetário agressivo e, não canso de dizer, inconseqüente que destrói matas e florestas incontáveis e deteriora a terra e o ar, a carne e o alento da Mãe-terra, com Mercúrio e gases tóxicos não é progresso! É suicídio coletivo. É, portanto, um inominável MATRICÍDIO!

Está muitíssimo claro: a atual falta biosférica que a consciência planetária leva adiante é um pecado pentagrâmico contra a própria Terra e todos seus filhos do mundo mineral, vegetal, animal, humano e espiritual.

Compreender a atual crise biosférica dessa forma não é, de maneira alguma, voltar-se para um concepção primitiva e animista. Muito pelo contrário, é entender e integrar-se com o próprio pulsar tecnológico-reformista de uma era que super integra o planeta através dos sistemas de comunicação — principalmente.

Quanto mais a humanidade mergulhar nesta “Onda Tecnológica e Digital” que unifica o mundo através de moderníssimos sistemas de comunicação, mais aguçado tornar-se-á o sentido de Totalidade Orgânica do Planeta, onde a Mãe-terra, a biosfera, e seus filhos, a humanidade, se interpenetram como raízes no seio de um Igarapé planetário, por onde fluiu — como diz a própria palavra tupi— “o caminho da água”, da vida e da reunificação sócioespiritual.

Todavia, a “Onda Tecnológica” é, a meu ver, um dos elementos dessa reorientação planetária, um importantíssimo elemento que encontra-se ainda num estado embrionário.

Era tecnológica alguma poderá ser edificante e útil sem que seja estabelecida, ao longo dos próximos séculos, o mais rápido possível, uma Ética Planetária de desenvolvimento e ocupação ambiental que considere a humanidade como “herdeira de uma cidadania planetária” — como concebeu magistralmente o profeta e avatar pérsa Bahá’u’lláh.

Progredir e desenvolver-se industrialmente, tecnologicamente, sem considerar os efeitos deste crescimento sobre o meio ambiente é inaceitável! É o mesmo que legar ao nosso amanhã a mesma herança que o rei Tântalo perpetuou, inconseqüentemente, a todos os seus descendentes: a amargura e o horror da Tragédia.

- V -

Quando retornou de sua vitoriosa pacificação da Gália e da Espanha (13 a.C.), o filho adotivo do monarca Júlio César, o Imperador Otávio Augusto (63 a.C.-14 d.C.), recebeu uma grande homenagem do Estado que ele governava. O Senado romano decretou que seria construído no Campo de Marte, o Ara Pacis Augustae, o monumento que eternizaria a Pax Augusta, a maior dádiva — ainda que tardia — da administração de Otávio a frente do — já decadente — Império Romano.

O lado leste deste altar traz uma belíssima ideação artística. Além das crianças e ninfas, as aves, a ovelha e o touro, vê-se, também, o trigo, as flores, os frutos da terra e, no centro, a nutridora, a regente soberana da natureza: Tellus, a Mãe-Terra.

O altar de Ara Pacis não foi somente um instrumento de culto ao principado de Otávio Augusto (31 a.C.-14 d.C.). Ele simbolizou a restauração da ordem social, política e econômica do Império sob a égide da Pax Romana que se estendeu por dois séculos.

Sob a regência de Otávio Augusto, o estado universal romano começava a atingir a sua Idade de Ouro. As realizações do Imperador, unidas a sua habilidade política, foram tão glorificadas que, após a sua morte, ele foi cultuado como um Deus. Era a divinização de César.

Pretensão, culto a personalidade? Pouco importa. Mas nada acontece por acaso.

A Pax Romana que estendeu-se por duzentos anos sobre o mundo helênico, desenvolveu habilmente os meios de comunicação e de transportes, viga mestra de qualquer estado de proporções universais como o romano. Grandes mentes gregas da época como Élio Aristides e Epíteto, por exemplo, traduziram, em palavras, os níveis de segurança e tranqüilidade alcançados pelos viajantes através das rotas imperiais.

Que ironia! Bastaram poucos séculos sem contendas, proporcionadas pela Pax Romana, para que fossem pavimentadas, ainda que inconscientemente, as “vias (seguras!) de dispersão e expansão das “Augustas” Sementes do Cristianismo”. A paz imperial inaugurada por Otávio Augusto sem querer forneceu as condições básicas e elementares para o sucesso e a conseqüente vitória do cristianismo sobre a opressão e o gigantismo de Roma. As vias de acesso e comunicação do mundo helênico transmutaram-se nas principais veias e artérias por onde passou a fluir o sangue ressuscitado de Cristo sobre a Terra. O corpo moribundo de César, o Império Romano, era lentamente invadido e vitalizado pela mensagem espiritual dos apóstolos e seguidores do Cristo.

Do Estado de César que oprimiu e assassinou os cristãos emergentes ao Pleroma de Jesus-Cristo que busca a conciliação com o próprio inimigo, algo de muito importante pode ser detectado.

A paz que Augusto ofereceu ao mundo helênico foi, historicamente, tardia, embora bem sucedida. A bandeira branca da Pax Romana foi perecível. Na acepção da palavra, foi quase uma “Paz Menor”, como bem descreveu o profeta Bahá’u’lláh que convocou o mundo e todos os seus governantes, do Oriente ao Ocidente, a abraçarem a genuína e eterna paz: a “Paz Maior”.

Bahá’u’lláh (1817-1892) foi, sem sombra de dúvidas, uma das personalidades mais expressivas e comoventes na história política e espiritual de todos os tempos. Foi um legítimo herdeiro no Estado persa, onde seu pai era um ministro, mas recusou a transitoriedade deste poder para abraçar uma causa global em pleno islão do século passado: a Unidade do Gênero Humano, independente de credos religiosos ou políticos.

Enquanto avatar planetário, Bahá’u’lláh encarnou com primazia, através de sua vida, obra, e atos, os mais elevados Preceitos Éticos para o futuro estabelecimento de um governo mundial.

A nossa atual crise de Planetarização roga, e invoca, por esta Paz Suprema tão ventilada por Bahá’u’lláh.

A nova ordem, a qual Ele se refere em muitas de suas escrituras sagradas está alicerçada em dois princípios chaves: a INTERDEPENDÊNCIA e a MULTICOOPERAÇÃO do gênero humano como uma única família; o próprio profeta bahá’í dizia: “Sois todos as folhas de uma só árvore e os frutos de um mesmo ramo”.

Portanto, se a Ideação Planetária de hoje nos remete para uma — inevitável — sociedade global de euroasiafroamericanos, a paz, logicamente, não pode mais ser limitada ou setorizada. A Paz Maior não é protecionista. É transcontinental.

Atualmente, já temos todos os meios necessários para a iniciar e disseminar este Estado Universal proposto pelo avatar bahá’í. Todos os meios de transporte (terrestres, marítimos e aéreos) e a revolução digital com a sua sempre mutante tecnologia da comunicação já encontram-se aí, a disposição de uma reforma, de uma revolução de proporção planetária e, logicamente, biosférica.

O apóstolo Paulo, o perseguidor convertido, conseguiu um assombroso sucesso em suas missões pacificadoras de cristianização (45-57 d.C.) sem ter em mãos um único telefone celular, internet, imprensa, ou ao menos um pager; mas teve a sorte (?) de realiza-la sob a proteção e a segurança da Paz Romana — assim como os seus sucessores.

Sendo assim, a Pax Biosférica — proserpínica — que renascerá no século XXI será uma importantíssima meta planetária a ser desenvolvida por cada um de nós no alvorecer do terceiro milênio e conquistada pela humanidade dos séculos vindouros.

Se a Pax Romana, e o próprio Império Romano, se tornaram o húmus que abrigou e nutriu as sementes do cristianismo emergente — totalmente corrompido no decurso do poder católico —, que tipo de semente reformista ou meta planetária a atual crise econômica juntamente com a revolução tecnológica poderão estar ocultando nos bastidores da nova ordem?

Como dinamizar em todo o mundo a luta pela Pax Biosférica no atual hiato de uma civilização pré-planetária?

A paz proposta por Otávio Augusto foi uma solução tardia e desesperada para salvar o Império Romano que, em essência, já se assemelhava a um homem que afogava-se com a água aos seus pés.

Não é possível, não é justo que o único preito que podemos oferecer a Gaia e a todos os seus filhos, nossos irmãos do amanhã, seja uma paz perecível, um altar, ou qualquer monumento de pedra como fez a Roma de Augusto. A Mãe-Terra (Tellus) não merece, de maneira alguma, efêmeras migalhas que, com o tempo, transformam-se em relíquias arqueológicas. Basta de heranças e inclinações tantálidas!

Não esperemos, portanto, que o pestilento chorume da degradação ambiental sufoque os ideais e as metas da Paz Maior e Biosférica. Esta grave lesão político-ambiental será cauterizada se nos reeducarmos a compreender, externa e internamente, a nossa eterna filiação à Grande Mãe, à deusa Kali. Não importa o nome, todas são o mesmo arquétipo, sinônimos da Mãe Divina, tão exaltada pelos Sábios Iogues que, recentemente, tiveram uma missão avatárica em nossa civilização ocidental.

- VI -

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...Amém!”

— Sagrada Maria, Mãe Divina do Ocidente, onde fostes parar nesta misteriosa equação espiritual?

Perguntas como estas sempre conquistaram o meu universo de dúvidas, pois (historicamente) além de cultuar um Jesus semi-morto e dominado na imobilidade da cruz, a cristandade ocidental foi educada a cultuar muito mais as características masculinas de Deus; diga-se de passagem, um Deus Pai que deve ser temido, antes de amado.

— Onde estás, Maria, Mãe Divina do Ocidente?

Bem ou mal, nós, ocidentais, abituamo-nos a reverenciar Deus apenas como Pai, apesar Dele ser cultuado e — acima de qualquer coisa — vivenciado através do aspecto feminino em outras culturas religiosas, onde a Mãe Divina surge com expressão máxima desta compreensão psico-espiritual de Deus. Nossa civilização, fálica, tecnológica e agressiva, progrediu como um homem que sai de casa para sustentar a família, esquecendo-se de dar a devida atenção ao seu lar, sua família e sua esposa: a mulher que carrega em si o destino de nutrir a todos sobre a face da Terra através dos seios, das mãos, do ventre e do coração. Portanto, possui a mulher o dom único outorgado por Deus de nutrir o mundo sob uma forma quaternária! Mesmo assim, oprimimos, através do tempos, por um grave erro social, político e espiritual, o saudável desenvolvimento do elemento feminino em nós mesmos, homens, bem como na vida das mulheres como um todo. Um casamento mal fadado como este entre o progresso de uma civilização tantálida e o elemento feminino não poderia ir mesmo muito longe — graças a Deus!

Onde estás, Mãe Divina do Ocidente?

Sri Ramakrishna (1836-1886), um mestre iluminado que bem cedo em sua vida teve os primeiros contatos e vivências com a Mãe do Universo, é um genuíno exemplo a ser compreendido pela civilização que endeusa o progresso tecnológico, em detrimento do meio ambiente. Seu principal discípulo, Swâmi Vivekananda estendeu ao mundo ocidental esta possibilidade de compreendermos e vivenciarmos Deus como Mãe Divina ao difundir, na transição do século XIX para o século XX, o legado de seu Mestre entre nós.

Se Deus também é Mãe (Terra), e fomos feitos a sua imagem e semelhança, o Ocidente e a civilização pré-planetária emergente não tem outra saída senão buscar em si mesmo o caminho para a recomposição desta fratura anímica que corrompeu a evolução psicológica e espiritual da cristandade dispersa por este mundo.

— Onde estás, Mãe Divina?

Todos os grandes e verdadeiros avatares sempre salientaram, independente de sua raiz (mundana) étnica ou religiosa: o verdadeiro templo ou altar de Deus está em nós. Somos como peixes imersos no oceano; estamos tão permeados por esta “presença (Energia) divina” que não nos damos conta do quanto somos todos onda e oceano ao mesmo tempo! Portanto, experienciar, em algum grau, a presença — sempre — viva da eterna Mãe Divina é um caminho sólido e vital para recuperarmos o nosso reequilíbrio planetário, já que toda vida em nosso mundo começa num ponto, num ovo ou célula-semente que é gestada por uma Mãe. A Pax Biosférica, por conseguinte, tem a sua principal embaixada na vida interna da humanidade em seu conjunto, no Templo de nossas Almas. Propor apenas uma Paz exterior é criar um tratado morto; é como, já disse, estabelecer os frágeis alicerces para uma paz que nem chega a ser Menor...é criar uma paz perecível e passageira como foi a Pax Romana.

O Iluminado iogue hindu, Swâmi Paramahansa Yogananda (1893-1952) dedicou toda uma existência para instruir e mostrar aos ocidentais que — através de uma incondicional e devotada relação Guru x Discípulo — Deus, e todas as suas sagradas manifestações, como a própria paz, podem ser vivenciadas e encontradas por cada ser humano — basta querer. Yogananda mostrou, como devoto da Mãe Divina, que esta manifestação feminina de Deus é uma realidade que está ao alcance de todos. O Diálogo com Ela, ou com todas as manifestações de Deus, é um eterno exercício de devoção e amor incondicionais.

Esta compreensão e vivência psicoespiritual — como propõe Yogananda — dinamizará e levar-nos-a, enquanto eternos filhos de Kali, a Mãe Divina, a um natural reencontro com princípios cosmo-ontobiosféricos. Será um Renascimento Planetário. O Mundo não está em entressafra! Vivemos, ainda sem saber, uma piracema do Espírito!

A Mãe Divina está em nós. A biosfera também.

— Onde estamos?

Estamos no limiar do terceiro milênio, e de um novo século, e nunca estivemos tão próximos, mais do que em qualquer outro tempo da evolução planetária, dos aspectos numinoso e obscuro de nosso mundo. Nunca esta criança, a humanidade travessa, precisou tanto de colo, carinho e orientação espirituais com agora. Como diz o Gil, “se eu quiser falar com Deus...”, tenho que abrir mão de muitas coisas. As marcas tantálidas — em absoluto declínio cíclico — são mais que evidentes em nossa atual humanidade. Nada, portanto, como a doçura e o carinho da Mãe Divina para cortar e dissolver, definitivamente, as raizes daninhas de Tântalo, assim como os erro e o ódio de Electra que ainda residem no jardim da evolução humana.

JAI MA
Dedicado à Mãe Divina

Meu Amargo Café

Não poderia concluir a minha participação aqui, sem terminar a historinha sobre o Café, aquele menino de rua que citei no início do texto, lembra? Pois bem...

— O Flamengo perdeu. Levou um sacode horroso do Fluminense. Quero ver o que o Café vai dizer — pensava no meio do caminho.

A medida que ia me aproximando do sinal onde trabalhava o Café, vi que o trânsito estava horrível, tudo muito lento, tumultuado e um calor insuportável. Coisas típicas do Rio.

Com sempre, o meu carro parou no sinal e eu, logicamente, procurei a figura e...o que somente vi debaixo da marquise — uma de suas prováveis residências — foi o seu corpo estendido. Fiquei estático! Dentro de mim, naquele momento, o trânsito parou! Olhei, olhei e vi apenas os seus pés: um descalço e o outro vestido com um tênis furado. Seu corpo estava totalmente coberto, de modo que se quer vi a sua camisa do Flamengo. Não havia sangue, marcas, não havia mais nada ali, e muito menos dentro de mim. Não existia mais Café, apenas o amargor em minha boca de uma cicuta que executa gente forte e desamparada como este nobre menino de rua.

Olhar para a minha direita e ter que ver o corpo morto do Café, doía-me a Alma. Rapidamente, olhei para a minha esquerda e vi (acreditem!) o rei Tântalo rindo, gargalhando, comendo banana com os pés e dando cambalhotas para trás. A minha tragédia parecia-se mais com um quadro de Bosch. Era o inferno.

Petrifiquei-me. Foi quando ouvi gritos e palavrões de toda a ordem. Eram todos para mim, pois o sinal já estava aberto e eu não tinha saído do lugar tamanho tinha sido o meu choque. Segui como pude, pois meus olhos eram pequenos para suportar a vazão de tamanha tristeza.

Não sei do que o Café morreu. Deve ter sido, frio, fome, solidão, overdose; já sei! Em suas andanças pelos lixões da vida, onde muitas vezes comia, ele deve ter encontrado uma linda caixa. Mal sabia ele que, ao abri-la, terminou por libertar e evocar para si todos os males de Pandora.

Durante alguns dias, fiquei profundamente deprimido, ao ponto de não conseguir escrever se quer uma linha.

Neste período, durante o café da manhã, a Bete me perguntou:

— Amor, você não quer Café?

Eu então respondi:

Não há mais café, nem manhã, só há amargor.

Meu amigo Café: não foi somente o Flamengo que perdeu. A sociedade foi derrotada porque perdeu Você.

Café,

Que a Mãe Divina te receba com o carinho e a ternura que a sociedade lhe negou nesta existência.

Com as Bênçãos da Mãe Divina a todos os Cafés deste mundo, in memorian.

Este texto pertence ao livro "Quem está escrevendo o futuro - 25 textos para o século XXI", Ed. Letraviva, DF, 1999.