Infelizes
por Carlos Hollanda

Dobrou-se de dor em meio ao tráfego intenso da megalópole. Os transeuntes desvairados mal percebiam que ali, diante de enormes monumentos à tecnologia, um ser humano ajoelhava-se, não em gesto de súplica, mas absorto em seu sofrimento.

Ouve-se o bradar de um buzina. O homem de meia idade, curvado, presta atenção no carro importado com um jovem impaciente gritando impropérios. Com esforço, ele se afasta do trânsito, um milésimo de segundo antes de ser transformado em tapete por aquele que o ofendera.

Pensa consigo mesmo: "Não teria sido melhor morrer?". Ele afasta esse pensamento torpe com um olhar lânguido em direção à lanchonete à frente, numa esperança vã de conseguir algo para forrar o estômago, que, desacostumado ao calor de um bom desjejum, talvez regurgitasse. Tomou, portanto, o rumo do bar mais próximo. Pudera, ali, encontrar um trago, um alívio para seu tormento de dois dias sem alimento para o vício.

No curto caminho até a entrada, onde o odor de lixo, bebida, suor e urina se mesclavam, subitamente vê a si mesmo envolto por uma estranha nebulosidade. Uma névoa incomum reluzia sem haver uma fonte de luz identificável. Olha para os lados e nada vê. Pára e nada ouve. Os odores se dispersam. A incômoda sensação de dependência o abandona. Uma paz incalculável o invade. "Que lugar é esse?" – ele pergunta a si mesmo. "Onde estão os carros, as pessoas... tudo?".

Mário – ouve-se uma voz suave, vinda não se sabe de onde, chamando-o pelo nome.

--Quem é que tá aí? – pergunta assustado.

A neblina se dispersa e uma silhueta luminosa se apresenta. Confuso, segue perguntando:

--Pode apagar a luz? Num enxergo. O que foi que aconteceu? É a tal da bomba atômica?

--Não aconteceu nada de extraordinário, amigo – responde a voz, que agora se mostra na forma de um homem vestido de branco, estendendo a mão direita em sinal de acolhida – Você agora está precisando cuidar de si. Gostaria de vir comigo para tratar de seus males?

--Queria sim, seu moço, mas eu não tenho como pagar. Tô muito doente e não trabalho há mais de ano.

--Não há necessidade de dinheiro, Mário, aqui somos todos amigos uns dos outros. Só precisamos trabalhar um pouco, mas para isso temos que cuidar de nossas feridas. Venha, vamos nos juntar ao grupo de recém-chegados. Você agora tem uma tarefa a desempenhar. Estou aqui para lembrá-lo de quem você é de fato. Todavia, ainda temos bastante tempo. Aqui você terá toda a tranqüilidade de que precisa para fazer o que tem de fazer. Entenda que as pessoas do lugar de onde você está saindo são muito infelizes...

Ouvindo todas as explicações do homem de branco, ambos seguiram em frente. Agora com a visão mais clara, Mário via-se ao lado de um grupo de pessoas rodeando alguma coisa que ali jazia. Deu-lhes as costas e foi-se embora junto com seu novo amigo, desaparecendo em meio a novo nevoeiro.

Os curiosos se perguntavam o que estava acontecendo, ao que ouviam a seguinte resposta:

--Este bêbado estava no lugar errado e na hora errada. Dois caras que discutiam por causa de uma batida de carros sacaram armas e saíram atirando. Nenhum dos dois se feriu, mas uma bala perdida acertou esse infeliz na cabeça. Este mundo não tem mais jeito. Leva ele pro rabecão, ô Mendonça! Que profissão miserável, ficar tirando esse tipo de lixo das ruas... um dia ainda ganho na Mega-Sena e aí sim vou ser feliz...