A Subjetividade em Jung
Uma Interpretação
Emanuel Tadeu Borges - fale com o autor

Há na obra de Jung algo que poderíamos denominar um “dispositivo da subjetividade”, no sentido de que se apresentam figuras ou categorias (ego, persona, sombra, anima/ânimus, self, as quatro funções psicológicas, introversão/extroversão) que não constituem uma topologia, isto é, partes ou instâncias de uma substância ou estrutura que seria o sujeito, mas que responderiam por um funcionalismo (“tipos psicológicos”) e constituiriam uma energética, buscando dar conta da singularidade no indivíduo humano.

O que é uma tipologia? Talvez fosse interessante começarmos com um “caso clínico”, ou melhor, com o enfoque clínico de um caso familiar. Há um conhecido meu que tem um filho de um ano e três meses que, como tantas outras crianças na sua idade, tem entre outros apelidos o de “Zuzu”. Nos momentos em que, ao ser contrariado, sai correndo e joga-se chorando, esperneando e sacudindo os braços sobre um “puf” de couro, seus pais, para lidar “humorístico-pedagogicamente” com a situação, sem deixar-se dobrar pelos caprichos do garoto, chamam-no de “Al Zuzu, o califa”. E neste momento, de fato, é como se ele se transformasse num pequeno califa temperamental, na pequena comédia instaurada pelos pais... Seus pais introduziram um traço tipológico. E o conjunto dos apelidos de Zuzu que remetem a uma sua “reação característica” (quer dizer, que compõem um traço marcante em seu caráter) constituem uma tipologia: o conjunto dos caracteres tipológicos de Zuzu.

Um outro exemplo de tipologia é o método de Nietzsche, segundo delineado por Deleuze, como “dramatização”: a teatralização dos personagens ou tipos gerais da história. Ao invés de perguntar “o que é” um fenômeno a ser interpretado, Nietzsche produz uma nova questão conceitual, uma nova forma de definição com a questão “quem é?” e a resposta é dada a partir da avaliação do conjunto de acontecimentos engendrados pelo tipo em foco e como ele os vive. Por exemplo, o cristianismo é trabalhado conceitualmente a partir do cristão como “persona” ou tipo característico (o “caráter típico” do cristianismo que define o “personagem cristão”), isto é, segundo o tipo de vida que ele inventa e põe em prática: segundo Nietszche o cristão é o homem do ressentimento.

Como exemplo, vejamos a análise de Deleuze acerca da “tipologia do ressentimento”, em Nietzsche:

“... um ‘tipo’ é, na verdade, uma realidade ao mesmo tempo biológica, psíquica, social e política. (...) Porque o ressentimento é um espírito de vingança? Poder-se-ia acreditar que o homem do ressentimento se explica acidentalmente: tendo experimentado uma excitação muito forte (uma dor) ele teve que renunciar a reagir, não sendo forte o bastante para replicar. Experimentaria então um desejo de vingança e, generalizando, desejaria exercer essa vingança contra o mundo inteiro. Tal interpretação é errônea; ela leva em conta apenas quantidades, quantidades de excitação recebida, que se compara “objetivamente” à quantidade de força de um sujeito receptivo. Ora, o que conta para Nietzsche não é a quantidade de força, abstratamente, mas uma relação determinada, no próprio sujeito, entre forças de naturezas diferentes que o compõem: o que se chama um tipo.” (para a citação completa, Deleuze, 1976 p. 95-97 e notas 6, p. 95 e 11, p. 97).

Temos aí a passagem de enfoque do tópico para o típico ou como diz Deleuze: “fazer uma psicologia que seja verdadeiramente uma tipologia, fundar a psicologia no plano do sujeito.” Ou no jogo das diferentes forças que o qualificam. É o que ocorre em Jung quando ele põe em cena as funções, os modos de funcionamento da psique, como modos de apreensão da vida.

A união ego/self.

O self é o sujeito, na concepção de Jung (a rigor esse termo apresenta duas acepções, significa ora a “totalidade da psique” ou o sujeito em sua totalidade, ora aparece com o sentido de “centro regulador da psique”) Enquanto totalidade da psique, caracteriza-se por um “multifuncionalismo”, levado a termo por um certo número de funções com atribuições diferenciadas. A especificidade dessas funções está ligada às suas respectivas dinâmicas e a psique é o resultado do intercâmbio que se verifica entre as diferentes funções, a correlação entre os movimentos decorrentes da realização de suas atribuições funcionais e o grau em que as realizam, individual e coletivamente, produzindo um “tipo”.

O sujeito, como o próprio nome indica, está submetido ou subjugado, é confrontado ou submisso a dois tipos de determinações, se o considerarmos em sua totalidade, a saber: as experiências ou processos conscientes, e as influências inconscientes (estas últimas passíveis de serem constatados apenas por seus efeitos conscientes).

O segundo sentido do termo “self” apresenta-nos um paradoxo interessante: o self é também o centro regulador da psique ou spiritus rector inconsciente (“orientador espiritual inconsciente”), justamente por corresponder à totalidade da psique. Ao que tudo indica, para Jung há uma apercepção macrocósmica inconsciente que, em determinadas condições, torna-se acessível ao ego, à consciência e passa a atuar como orientadora no processo de orientação. Tentaremos explicar como isso se dá, recorrendo à letra de uma canção. Para isso, faz-se necessária uma breve digressão sobre um ponto pertinente.

O que é um caso clínico? A nosso ver (e podemos aí recorrer à confirmação do próprio Jung e de Freud) a clínica não deve limitar-se aos casos de psicoterapia individual, grupal ou institucional, mas pode também elaborar suas análises a partir de produções artísticas, culturais, científicas e religiosas; de fenômenos sociais ou políticos; de figuras históricas, ficcionais ou biográficas, entre outros “casos”. Temos os exemplos de Freud com Schreber, Da Vinci, Michelangelo, Shakespeare, Dostoievski etc.; e os de Jung com Picasso, Joyce, o fascismo e seus ditadores, Nietzsche e outros. Podemos assim, perfeitamente, recorrer a um poema, a um romance, conto, pintura ou escultura e falar sobre a vida de seu criador, ou pelo menos sobre “o que ele vê na vida”, sobre “como ele olha para a vida”. Do mesmo modo no caso de uma manifestação coletiva (vejam-se as análises, profundamente distintas, aliás, de Jung e Freud acerca das religiões), como comentário clínico acerca de grupos humanos ou da humanidade em geral. Dito isto, voltemos ao ponto que nos interessa, qual seja, a concepção do self como compreensão macrocósmica.

Há uma versão musical da “Volta do filho pródigo”. Trata-se de uma canção de um músico irlandês, Rory Galagher, chamada “Going to my home town” (Voltando pra minha cidade natal”):

“Mama’s in the kitchen baking up a pie
Daddy’s in the backyard ‘Get a job, son,
You know you ought to try’

I packed down my bag, I headed down the road
I got me a job from Henry Ford
But I made a mistake, I moved much too far
And now I know what the lonesome blues are…”

(Tradução livre: Mamãe está na cozinha fazendo uma torta/Papai está no quintal: ‘Tá na hora de você arranjar um emprego, filho’/Peguei minhas coisas e botei o pé na estrada/Consegui um emprego com Henry Ford/Mas cometi um erro: fui pra muito longe/E agora eu sei o que é a solidão...”). O que se segue, tanto na letra como na melodia, é uma celebração da volta ao lar, do retorno à cidade natal, através da repetição festiva do refrão: “Yes, I’m going to my home town”. Há outros indícios, nas letras de Rory Galagher, nos quais não cabe aqui nos determos, de que ele se encontrava vivendo o que Jung denominou um “processo de individuação”. No entanto, o que nos interessa é partirmos dessa saga para ilustrarmos o sentido desse conceito e é o que tentaremos, em seguida.

A tendência do ego ou sujeito consciente é “excêntrica”, ou seja, mergulhar na distância, buscar o horizonte, “afastar-se da terra natal”. O ego é andarilho. Irá necessariamente distanciar-se do Self, o centro regulador da psique, do campo da consciência em sua totalidade. Até que num determinado momento, devido a “experiências muito duras, difíceis”, reinicia o caminho de volta para a terra natal, a “Casa do Pai”. Mas essa volta não é uma fuga, um retorno amedrontado, uma busca de isolamento, reclusão, proteção. É, muito mais, um movimento de ligação, o estabelecimento de um intercâmbio, de uma dinâmica de troca, entre os dois pólos da psique, segundo Jung, ego e Self.

O Self, enquanto centro regulador da psique, é um “mecanismo” ou atividade inconsciente, isto é, à parte das faculdades racionais. Dentre as funções psicológicas, a responsável pelo acesso a essa atividade reguladora inconsciente é a intuição. Jung define-a da seguinte maneira, em “Tipos Psicológicos”:

“É a função psicológica que transmite a percepção por via inconsciente. Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas internas ou externas e suas relações. O específico da intuição é que ela não é sensação dos sentidos, nem sentimento e nem conclusão intelectual, ainda que possa aparecer também sob essas formas. Na intuição, qualquer conteúdo se apresenta como um todo acabado sem que saibamos explicar ou descobrir como este conteúdo chegou a existir. ( ... ) Como na sensação, seus conteúdos têm caráter de dados, em oposição ao caráter de derivado, produzido dos conteúdos do sentimento e do pensamento. Daí provém seu caráter de certeza e exatidão que levou Spinoza a considerar a scientia intuitiva como a forma mais elevada de conhecimento”. [ Jung acrescenta em nota de rodapé referente a essa última afirmação: “Igualmente BErgson”] (Jung, 1991; parágrafo (§) 865, nota 62).

Talvez possamos afirmar que o papel da intuição, como função psicológica, seja o de, progressivamente, explicitar os insights provenientes do Self enquanto centro ordenador da psique. Trata-se, portanto, de um “pensamento subterrâneo”, mais abrangente, compreensivo, inclusivo que o pensamento racional ou intelectual e ao qual, aliás, se acede a duras penas (como diz Jung: “Não se chega à consciência psicológica sem dor”). Talvez aqui trate-se da mesma questão em Deleuze (ainda que os pressupostos teóricos e o resultado especulativo sejam profundamente divergentes): “a gênese do pensamento no interior do próprio pensamento”. Para ambos o pensamento enquanto tal (em Jung: enquanto produto vivo da individuação), não é uma faculdade da razão mas precisa ser forçado e o é na “vida que é posta à prova”.

De qualquer maneira, o que nos interessa, de início, é colocar essa idéia do Self como uma cosmovisão orientadora do percurso existencial. Esse percurso, que não é pré-determinado e se desenvolve de modo fluido, de maneira imprevisível, resulta do grau de cooperação entre um executor ou agente, o sujeito consciente, e um coordenador ou orientador que seria o Self. Quer dizer, a orientação do percurso ou processo é simultânea à sua realização e depende de como esta se dá.

O trabalho do analista, sua tarefa em estrita aliança com o “paciente” tem como objetivo mais geral, justamente, ajudá-lo a conquistar a autonomia na condução de seu próprio processo. Temos aqui uma interessante analogia, segundo nos parece, na “Divina Comédia”, de Dante, onde, no percurso através do Inferno e do Purgatório, o peregrino é conduzido pela figura de um “mestre”, personificado pelo poeta Virgílio, uma espécie de guia, instrutor e protetor, que no entanto é dispensado quando do encontro com a Amada, Beatriz, personagem de cunho nitidamente espiritual e que doravante conduzirá o peregrino pelas camadas do Céu, cada vez mais próximo da Luz.

Ora, o inconsciente, para Jung, atua através do que ele define como arquétipos, isto é, focalizando imagens coletivas que estão na base da formação de todo e qualquer indivíduo e que se desenvolvem, se modificam e se transformam ao longo da vida. Tais como o Masculino, o Feminino, a Velhice e a Infância, como experiência pessoal e através dos indivíduos (homens, mulheres, crianças e idosos) contatados no decorrer da existência. Assim, essas imagens arquetípicas (fundamentais, coletivas, universais) atuam no elemento da singularidade pessoal, desenvolvendo-se em tons únicos, para cada existência. Por isso, o inconsciente é dito por Jung simultaneamente “pessoal’ e “coletivo”.

Mas, ao que parece, segundo ressaltou Jung, notadamente pelo que se depreende de seu estudo dos sonhos, a liberação dos conteúdos inconscientes depende de sua compreensão e elaboração por parte da consciência. Digamos que a primeira meta do Self é que a consciência compreenda as suas “comunicações”. Em seguida, faz-se necessário que a pessoa as utilize em termos pragmáticos, ou seja, numa ação correspondente, redimensionando-se existencialmente conforme sua compreensão do que foi apreendido. É óbvio que nos esforçamos em exprimir o inexprimível, uma vez que o inconsciente não é apenas uma atividade semiótica ou expressiva, mas também energia e criatividade. E nesse sentido, será capaz de prover a energia necessária ao desencadeamento das mudanças.

Em contrapartida, a função reguladora do inconsciente, o Self, parece responder às demandas da vida objetiva, aos problemas que se colocam no decurso do processo de individuação e que se exprimem também, é claro, através de dados da existência concreta relativos à compreensão consciente, aos objetivos pessoais e aos desejos de mudança. O que, remetendo ao plano da clínica, significa que a interpretação, no caso a mediação entre os conteúdos ou imagens simbólicas provenientes da psique inconsciente e os dados ou expressões da vida “objetiva”, condiciona a produção inconsciente.

Clínica e Individuação.

Há, se considerarmos uma certa perspectiva, uma semelhança entre a função do analista e a do pajé ou xamã das sociedades “primitivas”: “expulsar os maus espíritos”. Ocorre que, no caso do analista, os maus espíritos mudaram de nome, passaram a chamar-se neurose, histeria, depressão, mania, paranóia, esquizofrenia... E o espaço de tratamento passou a ser fechado (consultório ou “setting analítico”), ao passo que, para o feiticeiro, o tratamento, em geral, constitui-se de uma série de procedimentos de verificação e busca por todo o campo social. O xamã, pajé ou feiticeiro deve percorrer todo o campo social para curar uma simples dor de dente que seja. Não há esferas independentes no espaço social, tudo se acha co-implicado (há um exemplo n’ ”O Anti-Édipo”, p. 212 / 213).

As lições do índio D. Juan, na obra de Castaneda, geralmente se iniciam com um convite para uma caminhada, durante a qual o jovem aprendiz deverá ser testado ao ser posto à mercê dos “poderes que regem o mundo e nossas vidas”. Trata-se de uma espécie de análise pragmática ou peripatética.

Jung comenta que o chamado processo de individuação leva potencialmente o indivíduo a distanciar-se, progressivamente, do homem médio (de sua visão do mundo, posições, opiniões). Trata-se, por conseguinte, de um “movimento de singularização” em que o indivíduo vai rompendo com as fronteiras restritivas da persona (quer dizer, com os elementos da personalidade retirados do senso comum e atuando semi-conscientemente ou inconscientemente). Conseqüentemente o inconsciente deixa de determinar exclusivamente o âmbito pessoal e passa a abrir-se para o social, para a coletividade, deslocando, com isso, o eixo de interesses do indivíduo e gerando uma preocupação e uma ação correspondentes. Algum tipo de envolvimento em questões coletivas começa a despontar (é interessante, por exemplo, acompanhar o devir revolucionário do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, como líder do “Movimento contra a fome e pela cidadania” e no desfecho de sua vida, sua confrontação com a morte, desencadeando um desassombro absoluto e um júbilo vital, direcionado para um problema eminentemente social). É que o desenrolar do processo de individuação, a partir de um certo limiar ou numa certa etapa, gera uma certa sensibilidade às transformações coletivas em curso (políticas, sociais, espirituais etc.). Como diz Nise da Silveira, em seu livro sobre Jung, acerca do processo de individuação: “Vindo a ser o indivíduo que é de fato, o homem não se torna egoísta”, no sentido ordinário da palavra, mas está meramente realizando as particularidades de sua natureza e isso é enormemente diferente de egoísmo ou individualismo”. (Silveira, 1994, p. 92 / 93).

Portanto, é nesse sentido que podemos dizer que a individuação leva a um estreitamento da relação com os conteúdos coletivos do inconsciente e concomitantemente, a um progressivo apagamento dos interesses e apegos pessoais (de modo algum neurótica ou patologicamente, mas segundo um desdobramento natural e irreversível). Segundo essa perspectiva, a realização do inconsciente de modo total, revelando o próprio arquétipo humano em sua consecução, afirma Jung, teria sido realizada por Cristo (Ver “Cristo como arquétipo” em “Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo”).

Mas o que seria, inicialmente, a personalidade comum ou homem médio? Para elucidar este ponto, vamos comparar a categoria de persona, em Jung, à noção de tonal, que aparece na obra de Castaneda. O índio D. Juan define esse termo, literalmente, como “a pessoa social”. Vejamos, na íntegra:

“Agora estou usando as suas palavras, o tonal é a pessoa social. (...) – O tonal é, de direito, um protetor, um guardião; um guardião que geralmente se transforma num guarda. (...) – O tonal é o organizador do mundo. Talvez o melhor meio de descrever seu trabalho monumental seja dizer que sobre seus ombros repousa o trabalho de dar ordem ao caos do mundo. Não é exagero afirmar, como fazem os feiticeiros, que tudo quanto sabemos e fazemos como homens é obra do tonal. Neste momento, por exemplo, aquilo que está empenhado em fazer sentido desta conversa é o seu tonal; sem ele só haveria sons estranhos e caretas e você nada compreenderia do que estou falando. Eu diria então que o tonal é um guardião que protege algo de precioso, o nosso próprio ser. Portanto, uma qualidade inerente ao tonal é ser astucioso e zeloso do que faz. E como seus atos são, de longe, a parte mais importante de nossas vidas, não admira que, no fim, ele se transforme, em todos nós, de guardião em guarda. (...) Um guardião tem vistas largas e é compreensivo. Um guarda, ao contrário, é vigilante, intolerante e a maior parte do tempo, despótico. Digo, pois, que o tonal em todos nós foi transformado num guarda mesquinho e despótico, quando deveria ser um guardião de larga visão.”

D. Juan nomeia esses dois tipos de tonal: o “tonal rígido”, do homem comum e o “tonal fluido”, do “homem de conhecimento”. Esse duplo aspecto é levado em conta por Jung ao trabalhar, no plano analítico, o conceito de persona.

O tonal rígido é o homem que confunde a persona com sua própria essência, ou seja, que “acredita no seu personagem”, que confunde a identidade pessoal com uma certa imagem ideal (social ou mítica). Por exemplo, aquele que é médico ou militar, que age como tal em todos os momentos da vida. Ou (tolice suprema nas hostes junguianas) acreditar que encarar a “essência do masculino” ou pior, o “arquétipo do homem” é “agir como herói”; ou, por outro lado, que o suposto “arquétipo feminino” ou “essência da mulher” seja agir como a “donzela presa na masmorra do castelo”; ou ainda “incorporar” o deus ou a deusa tal ou qual. Isto significa avaliar de modo superficial o valor clínico da noção de arquétipo, negligenciando seu pólo singular, isto é, a maneira peculiar como se atualiza em cada processo de individuação. Em suma: confundir arquétipo com estereótipo, “modelo de comportamento”. É o que o próprio Jung denomina “identificação com a persona” (popularmente chamado: “fazer um tipo” ou “ser possuído pelo personagem”), como situação limitadora, contrária à “individuação”. Quando Jung escreve, no início de “Símbolos de transformação”, em se “viver o mito pessoal”, não está falando que se deva representar um personagem mitológico, reproduzir um certo padrão de comportamento heróico. Muito ao contrário, trata-se de dar vazão à singularidade latente que corresponde ao que é denominado “individuação”. Os mitos heróicos, aliás, são relatos simbólicos (literários, religiosos, mitológicos, folclóricos), poderíamos dizer, “protocolos de experiências” alusivos, deixados em todas as épocas e por toda parte, referentes a transformações espirituais individuais e coletivas. Nos quais pessoas ou grupos (coletividades) passam por situações em que tudo o que tinham como mais certo e seguro se desfaz completamente (é nesse sentido que o espiritual se confunde com o psicológico, através da experiência numinosa). Convicções, sentimentos, maneiras de ver e avaliar, agir e reagir, tudo se modifica e se depura, às custas de muito sacrifício. E o que daí advém é algo de inteiramente novo.

Quanto ao “tonal fluido”, corresponde, por sua vez, ao apagamento progressivo das fronteiras restritivas do ego pessoal, a partir da trajetória processual sugerida pelo Self como função reguladora da psique, o que leva a pessoa a alargar seus limites e, num certo sentido, realizar um movimento existencial de extroversão, quer dizer, desprender-se de si mesmo, desapegar-se das coisas queridas, despreocupar-se consigo mesmo e de uma maneira especial, “voltar-se para fora”. (O que não deve ser confundido com uma “auto-renúncia”, presente, aliás, na posição anterior, de identificação com a persona). A persona deixa de ser um “fim” (identidade pessoal) e passa a ser um “meio” (modus operandi ou meio de relação).

O papel da intuição

Voltemos ao problema das funções psicológicas, na obra de Jung, cujo objetivo prático, clínico, é o delineamento de um tipo mais geral. Tiramos daí duas conclusões: em primeiro lugar a tipologia, em Jung, é a expressão de um funcionalismo, ou seja, são as quatro funções psicológicas (pensamento, sentimento, sensação e intuição) que respondem, ao problema dos tipos. Ao passo que, num segundo momento, entra em cena um segundo tipo de funções relativas à existência singular: a persona ou função social; a sombra (o “inconsciente pessoal”) ou função compensadora; anima/animus ou função complementar; e o self ou função reguladora. Em segundo lugar, damo-nos conta do quanto é estéril cair-se numa “tipomania”, utilizando exclusivamente as quatro funções psicológicas, na medida em que se trata apenas da metade do caminho quanto ao problema da subjetividade, no pensamento de Jung.

Nossa hipótese é a de que as funções dão-se concomitantemente como componentes da experiência; mais precisamente, três delas: o pensamento como função intelectual ou analítica, o sentimento como atividade emocional e valorativa e a sensação correspondendo ao esquema sensório-motor que visaria a ação prática. Estas funções não se sucederiam atuando uma de cada vez mas atuariam concomitantemente, constituindo o comportamento ou atividade psicológica consciente. Haveria uma “hierarquia de expressão” que se traduziria naquilo que Jung formulou como grau de desempenho de cada uma das funções: “função superior ou dominante” (aquela que caracteriza o principal meio de relação com a vida, para cada indivíduo); “função auxiliar ou secundária” (de eficácia intermediária); e “função inferior ou primitiva” (aquela pouco desenvolvida e cujo desempenho se daria sempre de modo impulsivo ou pouco elaborado). A eficácia de cada função varia de indivíduo para indivíduo. Ou de um grupo para outro, se quisermos estabelecer a tipologia de uma coletividade. Jung coloca, por exemplo, para a civilização ocidental, o “pensamento” como função superior, sendo o “sentimento” a função inferior a ser elaborada.

Pensamos ser a quarta função, a intuição, que apresenta um estatuto especial. Ela é a função sintética por excelência, em primeiro lugar porque, para que se torne efetiva, para que atue, depende de um certo alinhamento ou coordenação das outras três, e principalmente pois é a função responsável pela ligação do ego ou sujeito consciente ao Self, como centro regulador. Diríamos mesmo que a função da intuição seria a de comunicar a cosmovisão do Self à personalidade consciente, estabelecendo com isso a “coniunctio” (conjugação dos opostos, operação alquímica traduzida em termos psicológicos por Jung como a possibilidade latente de união entre os dois centros da psique: o ego, agente consciente e o Self, orientador inconsciente).

Já vimos que as funções psicológicas são formas de relação com a realidade ou como disse a doutora Nise da Silveira, “de adaptação”. Vimos também o quanto isso se torna problemático em relação a pelo menos uma função, a intuição, que supomos ter um papel especial de ligação do eu à função reguladora, a macrovisão latente à consciência, o self. Coloca-se portanto, aqui, a hipótese de uma forma de apreensão cognitiva inconsciente.

Integração de opostos

As funções psicológicas não são faculdades, uma vez que, em seu desempenho, dependem de fatores que extrapolam o chamado “livre arbítrio”, a direção autônoma da consciência. São, no entanto, relacionais, mecanismos de interação, que ligam a subjetividade ao mundo. São também modos de atuar da consciência. Por exemplo, a “função do real”, a sensação, pode ser colocada como modo de funcionamento da consciência como “esquema sensório-motor”.

Com o intuito de ilustrar as funções, Jung as coloca como as extremidades de dois eixos cruzados, marcando assim as oposições funcionais entre pensamento e sentimento e entre sensação e intuição. Veremos que a tendência natural da psique é a “integração dos opostos”, através do processo de individuação. Essa integração não é uma resolução da oposição através do surgimento de uma unidade que faz desaparecer a dualidade mas dá-se sob a forma de uma atuação em cooperação. É a coniunctio (conjunção), cujo paradoxo se enuncia como: “unidade preservando-se a dualidade”. No caso da oposição entre pensamento e sentimento, sua coniunctio pode ser formulada através do seguinte axioma alquímico: “É preciso unir o coração à mente, para que a mente pense com amor e o coração ame com sabedoria”.

A compreensão do conceito de “enantiodromia”, harmonia entre opostos ou simplesmente a “oposição’, como mecanismo essencial da vida, é fundamental em Jung e provém do pensamento oriental, notadamente o chinês, com as idéias do “Tao Te King” (“O livro do Caminho Perfeito”, numa tradução aproximada) e do “I Ching” (“O Livro das Mutações”), amplamente estudados por Jung, com sua dualidade ontológica: Yin & Yang (o “Receptivo” e o “Criativo”). O pensamento de Jung é repleto de oposições com esse sentido de integração latente ou possível ou melhor, de ligação, intercâmbio, circulação, todos processos-chave para a dinâmica de compensação, essencial na psicologia de Jung. Simbolicamente falando, Mercúrio é o símbolo da mente, do intelecto, da razão, da psique. A “função mercurial” aparece como tendência, realizada ou não, a integração de opostos na psique, “promover o comércio” entre consciência e inconsciente.

Usando o modelo chinês podemos dizer de forma enigmática, como num oráculo acerca da Vida: O ”caminho” (“Tao”) são “mutações” (“I”) que ocorrem devido às circunvoluções dos dois princípios: o “receptivo” e o “criativo” (“yin” & “yang”). Ou mais simplesmente: “A interação entre o receptivo e o criativo é o caminho das mutações”. Podemos dizer que este é o princípio geral da ontologia milenar taoista. E o pensamento de Jung constitui-se numa aplicação desse princípio. Citemo-lo:

“O segredo da atitude oriental é o seguinte: a consideração dos opostos ensina ao homem oriental a natureza do ‘maya’ {ilusão]. É ela que confere o caráter de ilusão à realidade. Por trás dos contrários e nos contrários é que está o verdadeiramente real que vê e abrange o ‘todo’. O hindu chama-o de ‘atman’. A auto-reflexão nos permite dizer: ‘Sou eu quem diz o que é o bom e o que é o mau’. Ou melhor: “Eu sou aquele pelo qual foi dito que isto é bom ou mau. Aquele que está em mim e pronuncia os principia [princípios], serve-se de mim como expressão. Fala por meuj intermédio’. Isto corresponde ao que o homem oriental denomina ‘atman’, isto é, aquilo lque, para falarmos em linguagem figurada, ‘me atravessa como um sopro’. Mas não somente a mim, como a todas as coisas. Não é apenas o atman individual que me atravessa e me penetra como um sopro, mas também o ‘atman-purusha’, o atman universal, o ‘pneuma’. (...) Do que acabamos de expor resulta que esse ‘si-mesmo’não é apenas um ‘eu’ (ego) um pouco mais consciente ou ampliado, o que se poderia entender pelas expressões ‘consciente de si-mesmo’ ou contente consigo mesmo’. O que chamamos de ‘si-mesmo’ (self) não se encontra somente dentro de mim mas em todas as coisas, como o atman, como o tão. É a ‘totalidade psíquica’. Cometem um equívoco aqueles que me acusam de ter criado, com tal conceito, um ‘deus imanente’e conseqüentemente um ‘sucedâneo de Deus’. Sou um empírico e é empiricamente que posso demonstrar a existência de uma ‘totalidade’ superior à consciência. Esta totalidade superior é sentida numinosamente pela consciência, isto é, como um ‘tremendum’ e ‘fascinosum’ [como algo terrível e fascinante]”. (Jung, 1980, p. 631/632).

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