Há na obra de Jung algo que poderíamos 
                        denominar um “dispositivo da subjetividade”, 
                        no sentido de que se apresentam figuras ou categorias 
                        (ego, persona, sombra, anima/ânimus, self, as quatro 
                        funções psicológicas, introversão/extroversão) 
                        que não constituem uma topologia, isto é, 
                        partes ou instâncias de uma substância ou 
                        estrutura que seria o sujeito, mas que responderiam por 
                        um funcionalismo (“tipos psicológicos”) 
                        e constituiriam uma energética, buscando dar conta 
                        da singularidade no indivíduo humano.
                      O que é uma tipologia? Talvez fosse interessante 
                        começarmos com um “caso clínico”, 
                        ou melhor, com o enfoque clínico de um caso familiar. 
                        Há um conhecido meu que tem um filho de um ano 
                        e três meses que, como tantas outras crianças 
                        na sua idade, tem entre outros apelidos o de “Zuzu”. 
                        Nos momentos em que, ao ser contrariado, sai correndo 
                        e joga-se chorando, esperneando e sacudindo os braços 
                        sobre um “puf” de couro, seus pais, para lidar 
                        “humorístico-pedagogicamente” com a 
                        situação, sem deixar-se dobrar pelos caprichos 
                        do garoto, chamam-no de “Al Zuzu, o califa”. 
                        E neste momento, de fato, é como se ele se transformasse 
                        num pequeno califa temperamental, na pequena comédia 
                        instaurada pelos pais... Seus pais introduziram um traço 
                        tipológico. E o conjunto dos apelidos de Zuzu que 
                        remetem a uma sua “reação característica” 
                        (quer dizer, que compõem um traço marcante 
                        em seu caráter) constituem uma tipologia: o conjunto 
                        dos caracteres tipológicos de Zuzu.
                      Um outro exemplo de tipologia é o método 
                        de Nietzsche, segundo delineado por Deleuze, como “dramatização”: 
                        a teatralização dos personagens ou tipos 
                        gerais da história. Ao invés de perguntar 
                        “o que é” um fenômeno a ser interpretado, 
                        Nietzsche produz uma nova questão conceitual, uma 
                        nova forma de definição com a questão 
                        “quem é?” e a resposta é dada 
                        a partir da avaliação do conjunto de acontecimentos 
                        engendrados pelo tipo em foco e como ele os vive. Por 
                        exemplo, o cristianismo é trabalhado conceitualmente 
                        a partir do cristão como “persona” 
                        ou tipo característico (o “caráter 
                        típico” do cristianismo que define o “personagem 
                        cristão”), isto é, segundo o tipo 
                        de vida que ele inventa e põe em prática: 
                        segundo Nietszche o cristão é o homem do 
                        ressentimento.
                      Como exemplo, vejamos a análise de Deleuze acerca 
                        da “tipologia do ressentimento”, em Nietzsche: 
                      
                      “... um ‘tipo’ é, na verdade, 
                        uma realidade ao mesmo tempo biológica, psíquica, 
                        social e política. (...) Porque o ressentimento 
                        é um espírito de vingança? Poder-se-ia 
                        acreditar que o homem do ressentimento se explica acidentalmente: 
                        tendo experimentado uma excitação muito 
                        forte (uma dor) ele teve que renunciar a reagir, não 
                        sendo forte o bastante para replicar. Experimentaria então 
                        um desejo de vingança e, generalizando, desejaria 
                        exercer essa vingança contra o mundo inteiro. Tal 
                        interpretação é errônea; ela 
                        leva em conta apenas quantidades, quantidades de excitação 
                        recebida, que se compara “objetivamente” à 
                        quantidade de força de um sujeito receptivo. Ora, 
                        o que conta para Nietzsche não é a quantidade 
                        de força, abstratamente, mas uma relação 
                        determinada, no próprio sujeito, entre forças 
                        de naturezas diferentes que o compõem: o que se 
                        chama um tipo.” (para a citação completa, 
                        Deleuze, 1976 p. 95-97 e notas 6, p. 95 e 11, p. 97). 
                      
                      Temos aí a passagem de enfoque do tópico 
                        para o típico ou como diz Deleuze: “fazer 
                        uma psicologia que seja verdadeiramente uma tipologia, 
                        fundar a psicologia no plano do sujeito.” Ou no 
                        jogo das diferentes forças que o qualificam. É 
                        o que ocorre em Jung quando ele põe em cena as 
                        funções, os modos de funcionamento da psique, 
                        como modos de apreensão da vida.
                      A 
                        união ego/self.
                      O self é o sujeito, na concepção 
                        de Jung (a rigor esse termo apresenta duas acepções, 
                        significa ora a “totalidade da psique” ou 
                        o sujeito em sua totalidade, ora aparece com o sentido 
                        de “centro regulador da psique”) Enquanto 
                        totalidade da psique, caracteriza-se por um “multifuncionalismo”, 
                        levado a termo por um certo número de funções 
                        com atribuições diferenciadas. A especificidade 
                        dessas funções está ligada às 
                        suas respectivas dinâmicas e a psique é o 
                        resultado do intercâmbio que se verifica entre as 
                        diferentes funções, a correlação 
                        entre os movimentos decorrentes da realização 
                        de suas atribuições funcionais e o grau 
                        em que as realizam, individual e coletivamente, produzindo 
                        um “tipo”.
                      O sujeito, como o próprio nome indica, está 
                        submetido ou subjugado, é confrontado ou submisso 
                        a dois tipos de determinações, se o considerarmos 
                        em sua totalidade, a saber: as experiências ou processos 
                        conscientes, e as influências inconscientes (estas 
                        últimas passíveis de serem constatados apenas 
                        por seus efeitos conscientes). 
                      O segundo sentido do termo “self” apresenta-nos 
                        um paradoxo interessante: o self é também 
                        o centro regulador da psique ou spiritus rector inconsciente 
                        (“orientador espiritual inconsciente”), justamente 
                        por corresponder à totalidade da psique. Ao que 
                        tudo indica, para Jung há uma apercepção 
                        macrocósmica inconsciente que, em determinadas 
                        condições, torna-se acessível ao 
                        ego, à consciência e passa a atuar como orientadora 
                        no processo de orientação. Tentaremos explicar 
                        como isso se dá, recorrendo à letra de uma 
                        canção. Para isso, faz-se necessária 
                        uma breve digressão sobre um ponto pertinente.
                      O que é um caso clínico? A nosso ver (e 
                        podemos aí recorrer à confirmação 
                        do próprio Jung e de Freud) a clínica não 
                        deve limitar-se aos casos de psicoterapia individual, 
                        grupal ou institucional, mas pode também elaborar 
                        suas análises a partir de produções 
                        artísticas, culturais, científicas e religiosas; 
                        de fenômenos sociais ou políticos; de figuras 
                        históricas, ficcionais ou biográficas, entre 
                        outros “casos”. Temos os exemplos de Freud 
                        com Schreber, Da Vinci, Michelangelo, Shakespeare, Dostoievski 
                        etc.; e os de Jung com Picasso, Joyce, o fascismo e seus 
                        ditadores, Nietzsche e outros. Podemos assim, perfeitamente, 
                        recorrer a um poema, a um romance, conto, pintura ou escultura 
                        e falar sobre a vida de seu criador, ou pelo menos sobre 
                        “o que ele vê na vida”, sobre “como 
                        ele olha para a vida”. Do mesmo modo no caso de 
                        uma manifestação coletiva (vejam-se as análises, 
                        profundamente distintas, aliás, de Jung e Freud 
                        acerca das religiões), como comentário clínico 
                        acerca de grupos humanos ou da humanidade em geral. Dito 
                        isto, voltemos ao ponto que nos interessa, qual seja, 
                        a concepção do self como compreensão 
                        macrocósmica.
                      Há uma versão musical da “Volta do 
                        filho pródigo”. Trata-se de uma canção 
                        de um músico irlandês, Rory Galagher, chamada 
                        “Going to my home town” (Voltando pra minha 
                        cidade natal”):
                      “Mama’s in the kitchen baking up a pie
                        Daddy’s in the backyard ‘Get a job, son,
                        You know you ought to try’
                      I packed down my bag, I headed down the road
                        I got me a job from Henry Ford
                        But I made a mistake, I moved much too far
                        And now I know what the lonesome blues are…”
                      (Tradução livre: Mamãe está 
                        na cozinha fazendo uma torta/Papai está no quintal: 
                        ‘Tá na hora de você arranjar um emprego, 
                        filho’/Peguei minhas coisas e botei o pé 
                        na estrada/Consegui um emprego com Henry Ford/Mas cometi 
                        um erro: fui pra muito longe/E agora eu sei o que é 
                        a solidão...”). O que se segue, tanto na 
                        letra como na melodia, é uma celebração 
                        da volta ao lar, do retorno à cidade natal, através 
                        da repetição festiva do refrão: “Yes, 
                        I’m going to my home town”. Há outros 
                        indícios, nas letras de Rory Galagher, nos quais 
                        não cabe aqui nos determos, de que ele se encontrava 
                        vivendo o que Jung denominou um “processo de individuação”. 
                        No entanto, o que nos interessa é partirmos dessa 
                        saga para ilustrarmos o sentido desse conceito e é 
                        o que tentaremos, em seguida.
                      A tendência do ego ou sujeito consciente é 
                        “excêntrica”, ou seja, mergulhar na 
                        distância, buscar o horizonte, “afastar-se 
                        da terra natal”. O ego é andarilho. Irá 
                        necessariamente distanciar-se do Self, o centro regulador 
                        da psique, do campo da consciência em sua totalidade. 
                        Até que num determinado momento, devido a “experiências 
                        muito duras, difíceis”, reinicia o caminho 
                        de volta para a terra natal, a “Casa do Pai”. 
                        Mas essa volta não é uma fuga, um retorno 
                        amedrontado, uma busca de isolamento, reclusão, 
                        proteção. É, muito mais, um movimento 
                        de ligação, o estabelecimento de um intercâmbio, 
                        de uma dinâmica de troca, entre os dois pólos 
                        da psique, segundo Jung, ego e Self.
                      O Self, enquanto centro regulador da psique, é 
                        um “mecanismo” ou atividade inconsciente, 
                        isto é, à parte das faculdades racionais. 
                        Dentre as funções psicológicas, a 
                        responsável pelo acesso a essa atividade reguladora 
                        inconsciente é a intuição. Jung define-a 
                        da seguinte maneira, em “Tipos Psicológicos”:
                      “É a função psicológica 
                        que transmite a percepção por via inconsciente. 
                        Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas 
                        internas ou externas e suas relações. O 
                        específico da intuição é que 
                        ela não é sensação dos sentidos, 
                        nem sentimento e nem conclusão intelectual, ainda 
                        que possa aparecer também sob essas formas. Na 
                        intuição, qualquer conteúdo se apresenta 
                        como um todo acabado sem que saibamos explicar ou descobrir 
                        como este conteúdo chegou a existir. ( ... ) Como 
                        na sensação, seus conteúdos têm 
                        caráter de dados, em oposição ao 
                        caráter de derivado, produzido dos conteúdos 
                        do sentimento e do pensamento. Daí provém 
                        seu caráter de certeza e exatidão que levou 
                        Spinoza a considerar a scientia intuitiva como a forma 
                        mais elevada de conhecimento”. [ Jung acrescenta 
                        em nota de rodapé referente a essa última 
                        afirmação: “Igualmente BErgson”] 
                        (Jung, 1991; parágrafo (§) 865, nota 62).
                      Talvez possamos afirmar que o papel da intuição, 
                        como função psicológica, seja o de, 
                        progressivamente, explicitar os insights provenientes 
                        do Self enquanto centro ordenador da psique. Trata-se, 
                        portanto, de um “pensamento subterrâneo”, 
                        mais abrangente, compreensivo, inclusivo que o pensamento 
                        racional ou intelectual e ao qual, aliás, se acede 
                        a duras penas (como diz Jung: “Não se chega 
                        à consciência psicológica sem dor”). 
                        Talvez aqui trate-se da mesma questão em Deleuze 
                        (ainda que os pressupostos teóricos e o resultado 
                        especulativo sejam profundamente divergentes): “a 
                        gênese do pensamento no interior do próprio 
                        pensamento”. Para ambos o pensamento enquanto tal 
                        (em Jung: enquanto produto vivo da individuação), 
                        não é uma faculdade da razão mas 
                        precisa ser forçado e o é na “vida 
                        que é posta à prova”. 
                      De qualquer maneira, o que nos interessa, de início, 
                        é colocar essa idéia do Self como uma cosmovisão 
                        orientadora do percurso existencial. Esse percurso, que 
                        não é pré-determinado e se desenvolve 
                        de modo fluido, de maneira imprevisível, resulta 
                        do grau de cooperação entre um executor 
                        ou agente, o sujeito consciente, e um coordenador ou orientador 
                        que seria o Self. Quer dizer, a orientação 
                        do percurso ou processo é simultânea à 
                        sua realização e depende de como esta se 
                        dá.
                      O trabalho do analista, sua tarefa em estrita aliança 
                        com o “paciente” tem como objetivo mais geral, 
                        justamente, ajudá-lo a conquistar a autonomia na 
                        condução de seu próprio processo. 
                        Temos aqui uma interessante analogia, segundo nos parece, 
                        na “Divina Comédia”, de Dante, onde, 
                        no percurso através do Inferno e do Purgatório, 
                        o peregrino é conduzido pela figura de um “mestre”, 
                        personificado pelo poeta Virgílio, uma espécie 
                        de guia, instrutor e protetor, que no entanto é 
                        dispensado quando do encontro com a Amada, Beatriz, personagem 
                        de cunho nitidamente espiritual e que doravante conduzirá 
                        o peregrino pelas camadas do Céu, cada vez mais 
                        próximo da Luz.
                      Ora, o inconsciente, para Jung, atua através do 
                        que ele define como arquétipos, isto é, 
                        focalizando imagens coletivas que estão na base 
                        da formação de todo e qualquer indivíduo 
                        e que se desenvolvem, se modificam e se transformam ao 
                        longo da vida. Tais como o Masculino, o Feminino, a Velhice 
                        e a Infância, como experiência pessoal e através 
                        dos indivíduos (homens, mulheres, crianças 
                        e idosos) contatados no decorrer da existência. 
                        Assim, essas imagens arquetípicas (fundamentais, 
                        coletivas, universais) atuam no elemento da singularidade 
                        pessoal, desenvolvendo-se em tons únicos, para 
                        cada existência. Por isso, o inconsciente é 
                        dito por Jung simultaneamente “pessoal’ e 
                        “coletivo”.
                      Mas, ao que parece, segundo ressaltou Jung, notadamente 
                        pelo que se depreende de seu estudo dos sonhos, a liberação 
                        dos conteúdos inconscientes depende de sua compreensão 
                        e elaboração por parte da consciência. 
                        Digamos que a primeira meta do Self é que a consciência 
                        compreenda as suas “comunicações”. 
                        Em seguida, faz-se necessário que a pessoa as utilize 
                        em termos pragmáticos, ou seja, numa ação 
                        correspondente, redimensionando-se existencialmente conforme 
                        sua compreensão do que foi apreendido. É 
                        óbvio que nos esforçamos em exprimir o inexprimível, 
                        uma vez que o inconsciente não é apenas 
                        uma atividade semiótica ou expressiva, mas também 
                        energia e criatividade. E nesse sentido, será capaz 
                        de prover a energia necessária ao desencadeamento 
                        das mudanças.
                      Em contrapartida, a função reguladora do 
                        inconsciente, o Self, parece responder às demandas 
                        da vida objetiva, aos problemas que se colocam no decurso 
                        do processo de individuação e que se exprimem 
                        também, é claro, através de dados 
                        da existência concreta relativos à compreensão 
                        consciente, aos objetivos pessoais e aos desejos de mudança. 
                        O que, remetendo ao plano da clínica, significa 
                        que a interpretação, no caso a mediação 
                        entre os conteúdos ou imagens simbólicas 
                        provenientes da psique inconsciente e os dados ou expressões 
                        da vida “objetiva”, condiciona a produção 
                        inconsciente.
                      Clínica 
                        e Individuação.
                      Há, se considerarmos uma certa perspectiva, uma 
                        semelhança entre a função do analista 
                        e a do pajé ou xamã das sociedades “primitivas”: 
                        “expulsar os maus espíritos”. Ocorre 
                        que, no caso do analista, os maus espíritos mudaram 
                        de nome, passaram a chamar-se neurose, histeria, depressão, 
                        mania, paranóia, esquizofrenia... E o espaço 
                        de tratamento passou a ser fechado (consultório 
                        ou “setting analítico”), ao passo que, 
                        para o feiticeiro, o tratamento, em geral, constitui-se 
                        de uma série de procedimentos de verificação 
                        e busca por todo o campo social. O xamã, pajé 
                        ou feiticeiro deve percorrer todo o campo social para 
                        curar uma simples dor de dente que seja. Não há 
                        esferas independentes no espaço social, tudo se 
                        acha co-implicado (há um exemplo n’ ”O 
                        Anti-Édipo”, p. 212 / 213).
                      As lições do índio D. Juan, na obra 
                        de Castaneda, geralmente se iniciam com um convite para 
                        uma caminhada, durante a qual o jovem aprendiz deverá 
                        ser testado ao ser posto à mercê dos “poderes 
                        que regem o mundo e nossas vidas”. Trata-se de uma 
                        espécie de análise pragmática ou 
                        peripatética.
                      Jung comenta que o chamado processo de individuação 
                        leva potencialmente o indivíduo a distanciar-se, 
                        progressivamente, do homem médio (de sua visão 
                        do mundo, posições, opiniões). Trata-se, 
                        por conseguinte, de um “movimento de singularização” 
                        em que o indivíduo vai rompendo com as fronteiras 
                        restritivas da persona (quer dizer, com os elementos da 
                        personalidade retirados do senso comum e atuando semi-conscientemente 
                        ou inconscientemente). Conseqüentemente o inconsciente 
                        deixa de determinar exclusivamente o âmbito pessoal 
                        e passa a abrir-se para o social, para a coletividade, 
                        deslocando, com isso, o eixo de interesses do indivíduo 
                        e gerando uma preocupação e uma ação 
                        correspondentes. Algum tipo de envolvimento em questões 
                        coletivas começa a despontar (é interessante, 
                        por exemplo, acompanhar o devir revolucionário 
                        do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, como 
                        líder do “Movimento contra a fome e pela 
                        cidadania” e no desfecho de sua vida, sua confrontação 
                        com a morte, desencadeando um desassombro absoluto e um 
                        júbilo vital, direcionado para um problema eminentemente 
                        social). É que o desenrolar do processo de individuação, 
                        a partir de um certo limiar ou numa certa etapa, gera 
                        uma certa sensibilidade às transformações 
                        coletivas em curso (políticas, sociais, espirituais 
                        etc.). Como diz Nise da Silveira, em seu livro sobre Jung, 
                        acerca do processo de individuação: “Vindo 
                        a ser o indivíduo que é de fato, o homem 
                        não se torna egoísta”, no sentido 
                        ordinário da palavra, mas está meramente 
                        realizando as particularidades de sua natureza e isso 
                        é enormemente diferente de egoísmo ou individualismo”. 
                        (Silveira, 1994, p. 92 / 93). 
                      Portanto, é nesse sentido que podemos dizer que 
                        a individuação leva a um estreitamento da 
                        relação com os conteúdos coletivos 
                        do inconsciente e concomitantemente, a um progressivo 
                        apagamento dos interesses e apegos pessoais (de modo algum 
                        neurótica ou patologicamente, mas segundo um desdobramento 
                        natural e irreversível). Segundo essa perspectiva, 
                        a realização do inconsciente de modo total, 
                        revelando o próprio arquétipo humano em 
                        sua consecução, afirma Jung, teria sido 
                        realizada por Cristo (Ver “Cristo como arquétipo” 
                        em “Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo”).
                      Mas o que seria, inicialmente, a personalidade comum 
                        ou homem médio? Para elucidar este ponto, vamos 
                        comparar a categoria de persona, em Jung, à noção 
                        de tonal, que aparece na obra de Castaneda. O índio 
                        D. Juan define esse termo, literalmente, como “a 
                        pessoa social”. Vejamos, na íntegra:
                      “Agora estou usando as suas palavras, o tonal é 
                        a pessoa social. (...) – O tonal é, de direito, 
                        um protetor, um guardião; um guardião que 
                        geralmente se transforma num guarda. (...) – O tonal 
                        é o organizador do mundo. Talvez o melhor meio 
                        de descrever seu trabalho monumental seja dizer que sobre 
                        seus ombros repousa o trabalho de dar ordem ao caos do 
                        mundo. Não é exagero afirmar, como fazem 
                        os feiticeiros, que tudo quanto sabemos e fazemos como 
                        homens é obra do tonal. Neste momento, por exemplo, 
                        aquilo que está empenhado em fazer sentido desta 
                        conversa é o seu tonal; sem ele só haveria 
                        sons estranhos e caretas e você nada compreenderia 
                        do que estou falando. Eu diria então que o tonal 
                        é um guardião que protege algo de precioso, 
                        o nosso próprio ser. Portanto, uma qualidade inerente 
                        ao tonal é ser astucioso e zeloso do que faz. E 
                        como seus atos são, de longe, a parte mais importante 
                        de nossas vidas, não admira que, no fim, ele se 
                        transforme, em todos nós, de guardião em 
                        guarda. (...) Um guardião tem vistas largas e é 
                        compreensivo. Um guarda, ao contrário, é 
                        vigilante, intolerante e a maior parte do tempo, despótico. 
                        Digo, pois, que o tonal em todos nós foi transformado 
                        num guarda mesquinho e despótico, quando deveria 
                        ser um guardião de larga visão.”
                      D. Juan nomeia esses dois tipos de tonal: o “tonal 
                        rígido”, do homem comum e o “tonal 
                        fluido”, do “homem de conhecimento”. 
                        Esse duplo aspecto é levado em conta por Jung ao 
                        trabalhar, no plano analítico, o conceito de persona.
                      O tonal rígido é o homem que confunde a 
                        persona com sua própria essência, ou seja, 
                        que “acredita no seu personagem”, que confunde 
                        a identidade pessoal com uma certa imagem ideal (social 
                        ou mítica). Por exemplo, aquele que é médico 
                        ou militar, que age como tal em todos os momentos da vida. 
                        Ou (tolice suprema nas hostes junguianas) acreditar que 
                        encarar a “essência do masculino” ou 
                        pior, o “arquétipo do homem” é 
                        “agir como herói”; ou, por outro lado, 
                        que o suposto “arquétipo feminino” 
                        ou “essência da mulher” seja agir como 
                        a “donzela presa na masmorra do castelo”; 
                        ou ainda “incorporar” o deus ou a deusa tal 
                        ou qual. Isto significa avaliar de modo superficial o 
                        valor clínico da noção de arquétipo, 
                        negligenciando seu pólo singular, isto é, 
                        a maneira peculiar como se atualiza em cada processo de 
                        individuação. Em suma: confundir arquétipo 
                        com estereótipo, “modelo de comportamento”. 
                        É o que o próprio Jung denomina “identificação 
                        com a persona” (popularmente chamado: “fazer 
                        um tipo” ou “ser possuído pelo personagem”), 
                        como situação limitadora, contrária 
                        à “individuação”. Quando 
                        Jung escreve, no início de “Símbolos 
                        de transformação”, em se “viver 
                        o mito pessoal”, não está falando 
                        que se deva representar um personagem mitológico, 
                        reproduzir um certo padrão de comportamento heróico. 
                        Muito ao contrário, trata-se de dar vazão 
                        à singularidade latente que corresponde ao que 
                        é denominado “individuação”. 
                        Os mitos heróicos, aliás, são relatos 
                        simbólicos (literários, religiosos, mitológicos, 
                        folclóricos), poderíamos dizer, “protocolos 
                        de experiências” alusivos, deixados em todas 
                        as épocas e por toda parte, referentes a transformações 
                        espirituais individuais e coletivas. Nos quais pessoas 
                        ou grupos (coletividades) passam por situações 
                        em que tudo o que tinham como mais certo e seguro se desfaz 
                        completamente (é nesse sentido que o espiritual 
                        se confunde com o psicológico, através da 
                        experiência numinosa). Convicções, 
                        sentimentos, maneiras de ver e avaliar, agir e reagir, 
                        tudo se modifica e se depura, às custas de muito 
                        sacrifício. E o que daí advém é 
                        algo de inteiramente novo.
                      Quanto ao “tonal fluido”, corresponde, por 
                        sua vez, ao apagamento progressivo das fronteiras restritivas 
                        do ego pessoal, a partir da trajetória processual 
                        sugerida pelo Self como função reguladora 
                        da psique, o que leva a pessoa a alargar seus limites 
                        e, num certo sentido, realizar um movimento existencial 
                        de extroversão, quer dizer, desprender-se de si 
                        mesmo, desapegar-se das coisas queridas, despreocupar-se 
                        consigo mesmo e de uma maneira especial, “voltar-se 
                        para fora”. (O que não deve ser confundido 
                        com uma “auto-renúncia”, presente, 
                        aliás, na posição anterior, de identificação 
                        com a persona). A persona deixa de ser um “fim” 
                        (identidade pessoal) e passa a ser um “meio” 
                        (modus operandi ou meio de relação).
                      O 
                        papel da intuição
                      Voltemos ao problema das funções psicológicas, 
                        na obra de Jung, cujo objetivo prático, clínico, 
                        é o delineamento de um tipo mais geral. Tiramos 
                        daí duas conclusões: em primeiro lugar a 
                        tipologia, em Jung, é a expressão de um 
                        funcionalismo, ou seja, são as quatro funções 
                        psicológicas (pensamento, sentimento, sensação 
                        e intuição) que respondem, ao problema dos 
                        tipos. Ao passo que, num segundo momento, entra em cena 
                        um segundo tipo de funções relativas à 
                        existência singular: a persona ou função 
                        social; a sombra (o “inconsciente pessoal”) 
                        ou função compensadora; anima/animus ou 
                        função complementar; e o self ou função 
                        reguladora. Em segundo lugar, damo-nos conta do quanto 
                        é estéril cair-se numa “tipomania”, 
                        utilizando exclusivamente as quatro funções 
                        psicológicas, na medida em que se trata apenas 
                        da metade do caminho quanto ao problema da subjetividade, 
                        no pensamento de Jung.
                      Nossa hipótese é a de que as funções 
                        dão-se concomitantemente como componentes da experiência; 
                        mais precisamente, três delas: o pensamento como 
                        função intelectual ou analítica, 
                        o sentimento como atividade emocional e valorativa e a 
                        sensação correspondendo ao esquema sensório-motor 
                        que visaria a ação prática. Estas 
                        funções não se sucederiam atuando 
                        uma de cada vez mas atuariam concomitantemente, constituindo 
                        o comportamento ou atividade psicológica consciente. 
                        Haveria uma “hierarquia de expressão” 
                        que se traduziria naquilo que Jung formulou como grau 
                        de desempenho de cada uma das funções: “função 
                        superior ou dominante” (aquela que caracteriza o 
                        principal meio de relação com a vida, para 
                        cada indivíduo); “função auxiliar 
                        ou secundária” (de eficácia intermediária); 
                        e “função inferior ou primitiva” 
                        (aquela pouco desenvolvida e cujo desempenho se daria 
                        sempre de modo impulsivo ou pouco elaborado). A eficácia 
                        de cada função varia de indivíduo 
                        para indivíduo. Ou de um grupo para outro, se quisermos 
                        estabelecer a tipologia de uma coletividade. Jung coloca, 
                        por exemplo, para a civilização ocidental, 
                        o “pensamento” como função superior, 
                        sendo o “sentimento” a função 
                        inferior a ser elaborada.
                      Pensamos ser a quarta função, a intuição, 
                        que apresenta um estatuto especial. Ela é a função 
                        sintética por excelência, em primeiro lugar 
                        porque, para que se torne efetiva, para que atue, depende 
                        de um certo alinhamento ou coordenação das 
                        outras três, e principalmente pois é a função 
                        responsável pela ligação do ego ou 
                        sujeito consciente ao Self, como centro regulador. Diríamos 
                        mesmo que a função da intuição 
                        seria a de comunicar a cosmovisão do Self à 
                        personalidade consciente, estabelecendo com isso a “coniunctio” 
                        (conjugação dos opostos, operação 
                        alquímica traduzida em termos psicológicos 
                        por Jung como a possibilidade latente de união 
                        entre os dois centros da psique: o ego, agente consciente 
                        e o Self, orientador inconsciente).
                      Já vimos que as funções psicológicas 
                        são formas de relação com a realidade 
                        ou como disse a doutora Nise da Silveira, “de adaptação”. 
                        Vimos também o quanto isso se torna problemático 
                        em relação a pelo menos uma função, 
                        a intuição, que supomos ter um papel especial 
                        de ligação do eu à função 
                        reguladora, a macrovisão latente à consciência, 
                        o self. Coloca-se portanto, aqui, a hipótese de 
                        uma forma de apreensão cognitiva inconsciente.
                      Integração 
                        de opostos
                      As funções psicológicas não 
                        são faculdades, uma vez que, em seu desempenho, 
                        dependem de fatores que extrapolam o chamado “livre 
                        arbítrio”, a direção autônoma 
                        da consciência. São, no entanto, relacionais, 
                        mecanismos de interação, que ligam a subjetividade 
                        ao mundo. São também modos de atuar da consciência. 
                        Por exemplo, a “função do real”, 
                        a sensação, pode ser colocada como modo 
                        de funcionamento da consciência como “esquema 
                        sensório-motor”.
                      Com o intuito de ilustrar as funções, Jung 
                        as coloca como as extremidades de dois eixos cruzados, 
                        marcando assim as oposições funcionais entre 
                        pensamento e sentimento e entre sensação 
                        e intuição. Veremos que a tendência 
                        natural da psique é a “integração 
                        dos opostos”, através do processo de individuação. 
                        Essa integração não é uma 
                        resolução da oposição através 
                        do surgimento de uma unidade que faz desaparecer a dualidade 
                        mas dá-se sob a forma de uma atuação 
                        em cooperação. É a coniunctio (conjunção), 
                        cujo paradoxo se enuncia como: “unidade preservando-se 
                        a dualidade”. No caso da oposição 
                        entre pensamento e sentimento, sua coniunctio pode ser 
                        formulada através do seguinte axioma alquímico: 
                        “É preciso unir o coração à 
                        mente, para que a mente pense com amor e o coração 
                        ame com sabedoria”.
                      A compreensão do conceito de “enantiodromia”, 
                        harmonia entre opostos ou simplesmente a “oposição’, 
                        como mecanismo essencial da vida, é fundamental 
                        em Jung e provém do pensamento oriental, notadamente 
                        o chinês, com as idéias do “Tao Te 
                        King” (“O livro do Caminho Perfeito”, 
                        numa tradução aproximada) e do “I 
                        Ching” (“O Livro das Mutações”), 
                        amplamente estudados por Jung, com sua dualidade ontológica: 
                        Yin & Yang (o “Receptivo” e o “Criativo”). 
                        O pensamento de Jung é repleto de oposições 
                        com esse sentido de integração latente ou 
                        possível ou melhor, de ligação, intercâmbio, 
                        circulação, todos processos-chave para a 
                        dinâmica de compensação, essencial 
                        na psicologia de Jung. Simbolicamente falando, Mercúrio 
                        é o símbolo da mente, do intelecto, da razão, 
                        da psique. A “função mercurial” 
                        aparece como tendência, realizada ou não, 
                        a integração de opostos na psique, “promover 
                        o comércio” entre consciência e inconsciente.
                      Usando o modelo chinês podemos dizer de forma enigmática, 
                        como num oráculo acerca da Vida: O ”caminho” 
                        (“Tao”) são “mutações” 
                        (“I”) que ocorrem devido às circunvoluções 
                        dos dois princípios: o “receptivo” 
                        e o “criativo” (“yin” & “yang”). 
                        Ou mais simplesmente: “A interação 
                        entre o receptivo e o criativo é o caminho das 
                        mutações”. Podemos dizer que este 
                        é o princípio geral da ontologia milenar 
                        taoista. E o pensamento de Jung constitui-se numa aplicação 
                        desse princípio. Citemo-lo:
                      “O segredo da atitude oriental é o seguinte: 
                        a consideração dos opostos ensina ao homem 
                        oriental a natureza do ‘maya’ {ilusão]. 
                        É ela que confere o caráter de ilusão 
                        à realidade. Por trás dos contrários 
                        e nos contrários é que está o verdadeiramente 
                        real que vê e abrange o ‘todo’. O hindu 
                        chama-o de ‘atman’. A auto-reflexão 
                        nos permite dizer: ‘Sou eu quem diz o que é 
                        o bom e o que é o mau’. Ou melhor: “Eu 
                        sou aquele pelo qual foi dito que isto é bom ou 
                        mau. Aquele que está em mim e pronuncia os principia 
                        [princípios], serve-se de mim como expressão. 
                        Fala por meuj intermédio’. Isto corresponde 
                        ao que o homem oriental denomina ‘atman’, 
                        isto é, aquilo lque, para falarmos em linguagem 
                        figurada, ‘me atravessa como um sopro’. Mas 
                        não somente a mim, como a todas as coisas. Não 
                        é apenas o atman individual que me atravessa e 
                        me penetra como um sopro, mas também o ‘atman-purusha’, 
                        o atman universal, o ‘pneuma’. (...) Do que 
                        acabamos de expor resulta que esse ‘si-mesmo’não 
                        é apenas um ‘eu’ (ego) um pouco mais 
                        consciente ou ampliado, o que se poderia entender pelas 
                        expressões ‘consciente de si-mesmo’ 
                        ou contente consigo mesmo’. O que chamamos de ‘si-mesmo’ 
                        (self) não se encontra somente dentro de mim mas 
                        em todas as coisas, como o atman, como o tão. É 
                        a ‘totalidade psíquica’. Cometem um 
                        equívoco aqueles que me acusam de ter criado, com 
                        tal conceito, um ‘deus imanente’e conseqüentemente 
                        um ‘sucedâneo de Deus’. Sou um empírico 
                        e é empiricamente que posso demonstrar a existência 
                        de uma ‘totalidade’ superior à consciência. 
                        Esta totalidade superior é sentida numinosamente 
                        pela consciência, isto é, como um ‘tremendum’ 
                        e ‘fascinosum’ [como algo terrível 
                        e fascinante]”. (Jung, 1980, p. 631/632).
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