| 
           | 
    
 
            
          
          
              
           
          
             
               
                 
                  
                    - Religião 
                      e Psicologia
 
                    - Sob 
                      Uma Visão Junguiana
 
                    -  Emanuel Tadeu Borges - fale 
                      com o autor
 
                   
                 
                
                   
                     
                      O objetivo desta matéria é 
                        enfocar o problema da religião, no intuito de estabelecer 
                        seu significado em termos de individuação. 
                        A religião, como fenômeno espiritual, está 
                        relacionada com a questão moral da existência 
                        humana e coloca-a de diversas maneiras ao longo da história 
                        do homem, através de vários sistemas e grupos 
                        religiosos. Trata-se do problema do “bem” 
                        e do “mal”. 
                      Não cabe aqui abordar a discussão propriamente 
                        política ou sociológica, que se refere ao 
                        uso da religião como poder de manipulação 
                        e nem a questão das possíveis alianças 
                        entre as lideranças religiosas e o poder político, 
                        com objetivos de dominação. Também 
                        não pretendemos focalizar as lutas sangrentas e 
                        insanas entre as diferentes “profissões de 
                        fé”, em busca de uma suposta hegemonia espiritual, 
                        afirmação de superioridade ou pior ainda, 
                        visando o extermínio de adversários tidos 
                        como infiéis, hereges ou profanos, que se oporiam 
                        aos desígnios e à obra de um suposto “deus 
                        verdadeiro”. 
                      Todos esses graves problemas decorrem, segundo pensamos, 
                        de uma concepção e prática totalmente 
                        distorcidas da religião, que é um fenômeno 
                        psicológico e não ideológico, de 
                        cunho eminentemente individual e não massivo, como 
                        mostrou Jung. Mais precisamente, para Jung, a religião 
                        é a expressão simbólica arquetípica 
                        do processo de individuação e portanto 
                        algo passível de ser vivenciado por todo e qualquer 
                        indivíduo, de maneira particular e singular, podendo 
                        levá-lo, progressivamente, a uma perfeita integração 
                        com o todo de que faz parte, a sua coletividade e mais 
                        profundamente com o todo maior, no sentido cosmológico 
                        da experiência. 
                      A questão moral, do ponto de vista da psicologia 
                        analítica, tem como ponto de partida a “confrontação 
                        com a sombra”, por parte do indivíduo (JUNG, 
                        1982, p. 14). A sombra, o nome dado por Jung ao inconsciente, 
                        é constituída de conteúdos incompatíveis 
                        com a consciência, tudo o que se nos afigura como 
                        desagradável, perturbador e de que, por esse motivo, 
                        a consciência se afastou ou dito de outro modo, 
                        renunciou (“censurou”, nos termos de Freud). 
                       
                      Numa segunda etapa, dá-se o confronto com os conteúdos 
                        do inconsciente coletivo, os arquétipos. São 
                        elementos que se encontram nas camadas mais profundas 
                        da psique inconsciente e que representam a experiência 
                        genérica da humanidade, funcionando como eixos 
                        ou núcleos em torno dos quais se “constelam” 
                        ou se agregam as experiências individuais, com sua 
                        respectiva carga de afetividade ou investimento emocional 
                        armazenado, formando os complexos pessoais. Os arquétipos 
                        constituem-se pois como núcleos dos complexos, 
                        que “giram” em torno deles, por assim dizer, 
                        retendo a libido que concentram. Faz-se portanto necessária 
                        uma dupla operação, analítica: (1) 
                        a dissolução ou resolução 
                        dos elementos problemáticos pessoais, os complexos; 
                        e concomitantemente, (2) a progressiva conscientização 
                        ou assimilação, isto é, integração 
                        à consciência, dos conteúdos coletivos 
                        representados pelos arquétipos. Este duplo movimento 
                        que caracteriza a individuação, leva a uma 
                        cosmovisão de amplitude crescente, resultante da 
                        transformação da personalidade, que possibilita 
                        um crescente poder de intervenção criativa 
                        no mundo. A transformação da personalidade 
                        ocorre como consequência da resolução 
                        dos complexos pessoais e a ampliação da 
                        perspectiva existencial e criativa decorre da conscientização 
                        dos arquétipos, enquanto símbolos da experiência 
                        humana genérica. Ou dito de outro modo, a integração 
                        progressiva no coletivo gera a transformação 
                        da personalidade através da dissolução 
                        dos complexos e esta mesma dissolução aumenta 
                        a aptidão do indivíduo a atuar criativamente 
                        e de forma integrada na coletividade. A individuação 
                        é portanto uma espécie de feedback entre 
                        a função pessoal e a função 
                        coletiva na psique humana. 
                      Essa cosmovisão ou macropercepção, 
                        a partir da assimilação consciente dos conteúdos 
                        arquetípicos, é uma imagem da totalidade, 
                        a partir da qual dá-se uma progressiva integração 
                        da experiência do eu pessoal à experiência 
                        coletiva. Os conteúdos arquetípicos aparecem 
                        nas manifestações simbólicas produzidas 
                        pelo inconsciente. Essa produção simbólica 
                        é proporcionada pelo self, a função 
                        ordenadora inconsciente. A função do self 
                        é, pois, a de proporcinar a “auto-regulação 
                        psíquica” ou na terminologia adotada por 
                        Jung, a compensação inconsciente 
                        à atividade do eu consciente, buscando complementá-la. 
                        Ou seja, o self ou a atividade que ele representa, visa 
                        complementar, através da revelação 
                        do processo inconsciente, o que a consciência realiza 
                        em sua própria esfera de atividade. A imagem da 
                        totalidade é portanto a expressão dessa 
                        compensação ou complementaridade, que se 
                        processa na psique, na medida em que acrescenta ao conteúdo 
                        cognitivo que corresponde a atividade do eu consciente, 
                        a “outra metade” até então desconhecida, 
                        os conteúdos inconscientes, que são revelados 
                        nos sonhos, nas intuições, na imaginação, 
                        nas projeções e nas transferências. 
                        Ou seja, a totalidade da psique inclui aquilo que está 
                        em desarmonia com o processo consciente ou ausente dele. 
                        E o equilíbrio psíquico implica a confrontação 
                        e posterior integração desses dois regimes, 
                        a saber: consciente e inconsciente. 
                      A imagem de totalidade é constantemente renovada, 
                        atualizada, ampliada, no processo de individuação. 
                        Quer dizer, isso só irá ocorrer quando se 
                        estabelecer uma dialética funcional entre os representantes 
                        ou operadores das duas instâncias psíquicas: 
                        o eu, para a consciência e o self, atuando 
                        no inconsciente. O primeiro funciona como agente do 
                        processo e o segundo como seu guia ou orientador 
                        “spiritus rector” (o verdadeiro guru é 
                        o self). A cada símbolo ou manifestação 
                        orientadora inconsciente, decorrente da atividade compensadora 
                        do self, deve corresponder um ajuste real, uma ação 
                        ou atitude compensadora, da parte do eu consciente. Caso 
                        isso ocorra, há, como consequência prática, 
                        uma gradual integração do indivíduo, 
                        enquanto agente de transformação da realidade 
                        objetiva. 
                      De fato, à medida em que se aprofunda o confronto 
                        subjetivo com a sombra pessoal, com os conteúdos 
                        pessoais do inconsciente (os assim chamados problemas 
                        pessoais), o indivíduo toma uma consciência 
                        cada vez mais clara de algo até então inacessível 
                        ou apenas parcialmente acessível a ele, a sombra 
                        coletiva, isto é, os elementos perturbadores 
                        inconscientes que atuam na coletividade produzindo as 
                        problemáticas e distorções sociais. 
                        Ao confrontar-se, progressivamente, com a totalidade de 
                        sua psique, dá-se conta, o indivíduo, de 
                        que ela comporta dois tipos de experiência ou dois 
                        níveis de existência, o pessoal 
                        e o coletivo ou arquetípico. Pois o confronto 
                        com os conteúdos pessoais da sombra é, na 
                        verdade, um confronto com a persona, a “máscara 
                        social” do eu pessoal. Todo um conjunto de valores 
                        impostos, por forças sociais, ao indivíduo, 
                        tendo sua contraparte nos costumes, idéias, comportamentos 
                        e tantos outros traços comuns que constituem a 
                        representação coletiva e que o eu vai desinvestindo 
                        no decorrer do percurso da individuação. 
                        Por outro lado, toda essa parafernália social, 
                        que constitui a complexidade relativa das diferentes culturas, 
                        tem como base experiências humanas universais, isto 
                        é, presentes em toda parte e em todas as épocas. 
                        Ora, os arquétipos são justamente as imagens 
                        simbólicas dessas experiências universais 
                        que se manifestam através da psique..  
                     
                   
                  -  
                    
Individuação 
                      e Roupagens Sociais 
                   
                   
                     
                      Na medida em que o eu se despe das roupagens da persona, 
                        dos conteúdos morais que assumiu inconscientemente, 
                        duas coisas acontecem:  
                      Em primeiro lugar, o eu se diferencia, no sentido mais 
                        preciso da expressão, torna-se diferente dos outros 
                        indivíduos em sua homogeneidade moral, característica 
                        do desempenho de valores coletivamente assumidos. Isto 
                        é, a personalidade se transforma e inicia um movimento 
                        na direção da genuína individualidade 
                        (etimologicamente: “aquele que não está 
                        dividido em dois”: “in-divi-dual”). 
                        O indivíduo, como resultado do processo de 
                        individuação, é aquele que curou 
                        a sua cisão psíquica ou psicológica 
                        ao religar os dois processos constituintes da psique, 
                        consciência e inconsciente, integrando-os 
                        funcionalmente. Este é o verdadeiro 
                        sentido da religião, como função 
                        psicológica. Tornar-se aquilo que 
                        se é verdadeiramente. Daí o termo escolhido 
                        por Jung, individuação: 
                        o indivíduo é a singularidade, a diferença 
                        em relação a todos os outros, que ao retirar 
                        o eu da homogeneidade social faz dele um ser conscientemente 
                        integrado no todo. 
                      Ë este, precisamente, o segundo sentido da individuação. 
                        Ao desinvestir-se das “roupagens sociais” 
                        o indivíduo as vê claramente, no que apresentam 
                        de bom e ruim, funcionando na coletividade, pois já 
                        não atuam mais “às suas costas”, 
                        isto é, como projeção inconsciente. 
                        Ele já não mais se encontra “possuído” 
                        pela persona, segundo a expressão de Jung, pois 
                        desembaraçou-se da identificação 
                        com o “senso comum”. O indivíduo é 
                        então determinado a realizar aquilo que impõe 
                        a sua nova condição, a sua personalidade 
                        transformada: iniciar um serviço à coletividade, 
                        uma ação criativa e integrada no coletivo 
                        ao qual pertence, de amplitude e alcance variáveis, 
                        em função do grau de individuação 
                        em que se encontra num dado momento (levando-se em conta 
                        de que se trata de uma dinâmica de alcance imprevisível). 
                       
                      É preciso que se faça referência 
                        também aos casos em que a individuação 
                        fracassa. Isto pode ocorrer em uma das duas etapas principais 
                        do confronto com o inconsciente: ou como “possessão 
                        pela sombra”, caso em que a ego se identifica com 
                        seu lado obscuro, deixando-se substituir por um ou mais 
                        complexos. Ou ainda, no caso em que o eu se identifica 
                        com o self e é tomado por um arquétipo. 
                        Vejamos a fenomenologia desses dois casos. 
                      No primeiro caso, a pessoa deixa-se enredar por um conteúdo 
                        da sombra e um complexo assume o comando da vontade consciente. 
                        Isso pode ocorrer quando a carga de energia de um complexo 
                        (libido inconsciente) torna-se superior à energia 
                        voluntária do eu (libido consciente).  
                      No segundo caso, ocorre algo de similar, com a diferença 
                        de que o que assume o comando no campo da consciência 
                        é um representante arquetípico. Em outras 
                        palavras, o eu identifica-se com o self, personifica em 
                        si a função psíquica ordenadora e 
                        é então tomado por uma ambição 
                        de tipo messiânica, que reflete o fato de que o 
                        indivíduo entrou em sintonia com o inconsciente 
                        coletivo e é levado a atuar como o seu intérprete, 
                        ante os demais indivíduos de uma dada coletividade 
                        (Hitler, na Alemanha nazista, por exemplo). Ao identificar-se 
                        à instância ordenadora da psique (o self), 
                        o sujeito passa a projetar sua necessidade de ordenação 
                        na coletividade. Aquilo que seria o seu modo singular 
                        de integrar-se ao coletivo, passa a ser visto como valendo 
                        para todos.  
                      Este tipo de manipulação só se torna 
                        possível devido ao fato de que os seguidores desse 
                        gênero de liderança não realizaram, 
                        por sua vez, o seu confronto com a sombra, o que os leva 
                        a uma unilateralidade psíquica, quer dizer, a uma 
                        incapacidade de discriminação objetiva entre 
                        o bem e o mal, entre o que é verdadeiramente favorável 
                        e desfavorável a eles (uma vez que não desembaraçaram, 
                        em si mesmos, o individual do coletivo ou o indivíduo 
                        da persona). Ou seja a vítima do paranóico 
                        é a massa composta de neuróticos 
                      Unilateralidade psíquica é a causa da neurose, 
                        ou melhor, sua descrição funcional. É 
                        a consequencia da cisão entre consciência 
                        e inconsciente. O indivíduo neurótico é 
                        o que considera, exclusivamente, a parte consciente da 
                        atividade psíquica, despreza e muitas vezes nem 
                        mesmo admite a existência da psique inconsciente. 
                        Ao agir assim, ele favorece a associação 
                        de elementos afetivamente carregados aos complexos inconscientes 
                        já existentes, aumentando sua carga libidinal e 
                        com isso, favorecendo o caráter autônomo 
                        de sua manifestação. Isto significa que 
                        os conteúdos problemáticos inconscientes 
                        continuarão atuando compulsivamente, através 
                        do mecanismo de projeção, rompendo o controle 
                        do eu, aumentando seu poder de autonomia e gerando conflitos 
                        em relação à vontade consciente. 
                        A tendência à repetição projetiva 
                        dos comportamentos neuróticos, tem duas consequências 
                        possíveis: uma favorável à individuação, 
                        a saber, a conscientização dos conteúdos 
                        problemáticos, graças à repetição; 
                        a outra, patológica, qual seja, a irrupção 
                        do complexo na consciência, destronando o controle 
                        e a direção do eu (dissociação 
                        psicótica). 
                      A invasão de conteúdos inconscientes turva 
                        o discernimento e abala o equilíbrio emocional 
                        tornando a personalidade vulnerável e portanto 
                        sujeita a se deixar levar pela primeira “tábua 
                        de mandamentos” que for apresentada, na qual possa 
                        projetar seus sentimentos, sensações e idéias 
                        confusos. Deve-se, portanto, reafirmar a importância 
                        do confronto com a sombra, a aceitação e 
                        o enfrentamento em relação ao que é 
                        desagradável e perturbador em nós: aquele 
                        que não se defronta com o que o perturba em si 
                        mesmo, dá vazão a que esses impulsos se 
                        manifestem livre e cada vez mais descontroladamente através 
                        de projeções e está sujeito, em maior 
                        ou menor grau, a identificar-se com manifestações 
                        de impulsos similares no plano coletivo. Pois o que é 
                        desconhecido ou inconsciente, no plano pessoal, é 
                        “reconhecido” inconscientemente, por empatia, 
                        no plano objetivo, isto é, no outro e ainda mais 
                        imediatamente numa massa. A personalidade, nessas condições, 
                        dadas as circunstâncias de pressão social, 
                        está sujeita a acolher uma “solução 
                        final”, isto é, “um projeto para resolver 
                        os problemas de uma vez por todas” e a ele dedicar 
                        todos os seus esforços num “movimento de 
                        massa”.  
                      Temos aqui a oportunidade de aplicar no plano dos fenômenos 
                        psicológicos, por analogia, o conhecido princípio 
                        da física formulado por Arquimedes: “todo 
                        corpo mergulhado num fluido recebe um empuxo, de baixo 
                        para cima, igual ao peso do fluido deslocado”. Esta 
                        lei da dinâmica dos fluidos, vale para o inconsciente 
                        e seus conteúdos afetivamente carregados, que na 
                        analogia corresponderiam, respectivamente, ao fluido e 
                        aos corpos nele mergulhados. Poderia pensar-se, perfeitamente, 
                        tendo por base o pensamento de Jung, o inconsciente como 
                        um “fluido” ou “meio de imersão 
                        psíquico” ou a própria psique como 
                        um “fluido”. E os complexos e os conteúdos 
                        psíquicos, em geral, como “corpos”, 
                        sua carga afetiva correspondendo a seus “pesos” 
                        respectivos. Quanto mais tempo e mais intensamente renuncia-se 
                        ao confronto com os complexos, mais pronta e violentamente 
                        expõe-se a uma irrupção de conteúdos 
                        inconscientes na consciência. No caso das comoções 
                        de massa, o sujeito pode ser “arrastado” por 
                        uma onda coletiva de afetos indiferenciados. O neurótico, 
                        como já demonstraram pensadores como Freud, Reich 
                        e Canetti, tende a agir de acordo com a massa. Em situações 
                        críticas de caráter pessoal reage de forma 
                        estereotipada e durante as crises sociais, é levado 
                        a se comportar de modo irracional e em bando. Nesses casos, 
                        o eu é dominado por um complexo que o submete e 
                        pode até mesmo destruí-lo. Nas crises sociais, 
                        o indivíduo tende a indiferenciar-se numa massa 
                        juntando-se a outros, também indistinguíveis. 
                        Todos se nivelam como partículas indiferenciadas 
                        formando uma onda irresistível, uma força 
                        descontrolada e irracional, constituindo um complexo de 
                        massa que irrompe na vida social. 
                      Quanto aos “guias” ou líderes desse 
                        gênero de empreitada, são, por sua vez, tomados 
                        por um complexo de poder. Creem-se inspirados por um deus, 
                        por Deus, pela “alma nacional” ou pela “vontade 
                        e anseios coletivos”, etc. Sua consciência 
                        é progressivamente subjugada por uma “convicção”, 
                        que ele assume como a quintessência da verdade. 
                        Pressente então a “iminência de um 
                        destino glorioso” ou a “urgência de 
                        uma missão sagrada” e a necessidade de assumir 
                        um compromisso do qual não pode se furtar. 
                      Em função do que acabamos de mostrar, é 
                        possível apontar duas possibilidades de expressão 
                        do self. A primeira em que ele atua como centro ordenador 
                        inconsciente, como função orientadora do 
                        processo de individuação. Mas há 
                        ainda a sua faceta, digamos, sombria. A religião 
                        cristã expressa claramente essas duas possibilidades 
                        nas figuras do Cristo e do AntiCristo. O Cristo como símbolo 
                        do self, do Homem Realizado e o AntiCristo como expressão 
                        simbólica da sombra e das forças perturbadoras 
                        do inconsciente (ver JUNG, 1982, cap.5). Porque essa duplicidade 
                        de manifestação do inconsciente coletivo? 
                        Porque ambas as facetas do self estão ligadas a 
                        destinos coletivos, referem-se às possibilidade 
                        de realização de duas imagens de totalidade 
                        incompatíveis entre si e que poderíamos 
                        denominar, alusivamente, “Bem” e “Mal” 
                        ou psicologicamente, “união” e “dissociação”, 
                        no plano coletivo.  
                      Os símbolos arquetípicos, que representam 
                        os conteúdos mais profundos da psique inconsciente, 
                        possuem um caráter arcaico (JUNG, 1991, p.764) 
                        e por isso exigem um trabalho de elaboração, 
                        desvelamento, decifração, da parte da consciência, 
                        uma vez que se referem a realidades “impessoais”, 
                        desconhecidas e inicialmente incompreensíveis ao 
                        eu. São porém “realidades de fato”, 
                        ainda que relativas a fatos psíquicos, visíveis, 
                        por exemplo, na linguagem e símbolos característicos 
                        das profecias, da experiência numinosa, dos êxtases 
                        religiosos, dos delírios, visões, sonhos, 
                        de certas expressões artísticas, etc. O 
                        caráter arcaico, enigmático, hermético, 
                        oracular, dos símbolos arquetípicos, é 
                        representado mitologicamente pela figura da Sibila, definida 
                        muito propriamente por Heráclito, no estilo que 
                        lhe é peculiar: “...com delirante boca, sem 
                        risos, sem belezas, sem perfumes, ressoando mil anos, 
                        ultrapassa com a voz, pelo deus nela.” ( HERÁCLITO, 
                        1985, p.88). De fato, o riso, as belezas e os perfumes, 
                        são experiências fornecidas pelos sentidos 
                        objetivos, portanto exclusivas da vida consciente. Ao 
                        passo que só o inconsciente, delirando, pode fazer 
                        falar um deus que, através de sua voz, faça 
                        ressoar a sabedoria dos séculos. É a linguagem 
                        sibilina dos símbolos arquetípicos que, 
                        por não se referirem ao que é conhecido, 
                        não podem usar a linguagem racional.  
                      O símbolo refere-se ao que se conhece pouco: os 
                        complexos pessoais; ou se desconhece por completo: os 
                        arquétipos. Assim, os sonhos, por exemplo, não 
                        escondem um “conteúdo latente” que 
                        estaria sob um “conteúdo manifesto”. 
                        O que está oculto, parcial ou completamente, não 
                        é um suposto conteúdo integral do sonho, 
                        é ao contrário, justamente aquilo a que 
                        o sonho se refere. O sonho e os demais meios de compensação 
                        inconsciente, “esforçam-se” por revelar 
                        o inconsciente no sentido de fornecer uma complementaridade 
                        à consciência, um complemento ao material 
                        consciente Caso contrário, atuariam em prol da 
                        dissociação psíquica, favorecendo 
                        a cisão entre os processos consciente e inconsciente. 
                        No entanto, isso não ocorre, a função 
                        auto-reguladora da psique possibilita o acesso da consciência 
                        ao material inconsciente e ao fazê-lo estabelece 
                        uma ligação e uma possibilidade de integração 
                        entre os dois processos. 
                      Contudo, é necessário um cuidado extremo 
                        ao se lidar com os conteúdos arquetipicos, pois 
                        o inconsciente tem, junto ao temor que exerce, um forte 
                        poder de sedução. Aparece ora como assustador, 
                        ora como fascinante. E o arquétipo, por ser oriundo 
                        das camadas mais profundas da psique, possui uma poderosa 
                        carga libidinal. Corresponde ao extra-pessoal no indivíduo, 
                        portanto ao que há de mais estranho à ação 
                        da vontade. Por isso, a arte suprema do eu é equilibrar 
                        o terrível e o maravilhoso do espírito, 
                        não se deixando levar pelo fascínio do numinoso, 
                        o caráter impressionante do material inconsciente, 
                        mas não cedendo também ante o medo que ele 
                        inspira. Cabe aqui o conhecido preceito de Buda, também 
                        para o processo de individuação: “buscar 
                        sempre o difícil caminho do meio”. Isto é 
                        exato até mesmo do ponto de vista das funções: 
                        deve-se centrar a ação no ego como “fiel 
                        da balança”, pois ele encontra-se “no 
                        meio”, flutuando precariamente entre os mundos objetivo 
                        e subjetivo, entre as experiências consciente e 
                        inconsciente, como agente do processo. Jung define assim 
                        a situação dos dois principais operadores 
                        da psique: o eu ou complexo egóico é o centro 
                        da psique consciente e o self, o centro da psique total 
                        (JUNG, 1982, p.1 e 9). O self orienta virtualmente o processo, 
                        enquanto princípio regulador inconsciente mas é 
                        o eu quem atua. O ego está pois “sobre o 
                        fio da navalha” ou “na corda bamba”, 
                        entre as duas grandes realidades da vida, a experiência 
                        consciente e a experiência inconsciente, oscilando 
                        entre essas duas demandas. 
                     
                   
                  -  
                    
O 
                      Ego Como Fiel da Balança 
                   
                   
                     
                      De fato, o ego encontra-se numa posição 
                        psicologicamente essencial, de extrema importância 
                        estratégica, no que se refere à realização 
                        do processo de individuação. Ora voltado 
                        para as representações coletivas que regulam 
                        a vida social e isso requer um comportamento adaptativo 
                        desempenhado através persona. Ora às voltas 
                        com o material inconsciente, o que requer assimilação 
                        e integração, ou seja, interpretação 
                        e elaboração desses conteúdos. É 
                        o ego quem realiza o símbolo, quem o investe na 
                        vida objetiva. A partir do material simbólico fornecido 
                        pelo self, cabe ao ego um difícil trabalho em que 
                        deve realizar um movimento pendular entre a psique e o 
                        mundo, para construir uma ponte que os ligue de modo seguro 
                        e realizar, na travessia, a transformação 
                        da carga simbólica em ato. Essa passagem é 
                        perigosa, pois o ego pode sucumbir ao símbolo ou 
                        ao mundo. O primeiro caso corresponderia a uma identificação 
                        com a sombra e o segundo a uma identificação 
                        com a persona, o que significaria, em ambos os casos, 
                        uma paralisação do processo de individuação, 
                        na medida em que este objetiva uma integração 
                        das duas instâncias da psique e não uma predominância 
                        de qualquer uma das duas sobre a outra. O eu não 
                        deve, pois, ser confundido com sua função 
                        de adaptação social, nem com a cosmovisão 
                        decorrente do processo inconsciente, pois ele é, 
                        na verdade um mensageiro, uma função de 
                        intercâmbio entre as duas perspectivas. 
                      Um princípio, portanto, fundamental à psicoterapia 
                        e aliás a qualquer técnica ou arte que vise 
                        a individuação, o auto-conhecimento ou a 
                        transformação da personalidade é 
                        o de que “o ego precisa ser protegido a todo custo”, 
                        quanto à preservação da sua integridade, 
                        mesmo, como frisa Jung, que isso signifique interromper 
                        o aprofundamento do processo analítico, na medida 
                        em que se perceba que a integridade da personalidade consciente 
                        está ameaçada (JUNG, 1981, p.11).  
                      Talvez o meio mais importante, não só de 
                        proteger mas de fortalecer o ego e ao mesmo tempo favorecer 
                        a individuação, é o trabalho enquanto 
                        atividade criativa. O trabalho criativo como expressão 
                        simbólica, produção de símbolos, 
                        é um excelente meio de acesso ao material inconsciente, 
                        que pode então ser interpretado e elaborado. É 
                        um esplêndido recurso terapêutico, introduzido 
                        e desenvolvido pela dra. Nise da Silveira, ao longo de 
                        seu trabalho no tratamento de psicoses e neuroses graves. 
                        O que era precariamente realizado sob o nome de “terapia 
                        ocupacional”, foi por ela profundamente modificado 
                        com a adoção de todo o tipo de atividades 
                        criativas, lúdicas e interativas, tais como as 
                        artes plásticas, as artes cênicas, a dança, 
                        o uso de animais como “co-terapeutas”, a participação 
                        de profissionais das mais variadas proveniências 
                        atuando como coordenadores, entre outras tantas inovações. 
                        O ponto fundamental dessa prática terapêutica 
                        é a procura do meio de expressão mais apropriado 
                        em cada caso. E o objetivo principal, dar vazão 
                        à afetividade enclausurada no espírito, 
                        em função do isolamento social imposto ao 
                        “doente”, através da convivência 
                        facultativa e livre: sem internação e sem 
                        medicação. O que um paciente batizou com 
                        o nome de “emoção de lidar”, 
                        num poema escrito após a execução 
                        de um trabalho artístico:  
                      “ ‘Posso com esse pano fazer um gato?’ 
                        A resposta foi sim. Então Luís Carlos começou 
                        a manipular o pedaço de veludo, dando-lhe a forma 
                        de um gato. (...) Completado o gato, Luís Carlos 
                        tomou um lápis e escreveu:  
                      Gato simplesmente angorá 
                        do mato 
                        azul olhos nariz cinza 
                        orelha castanho macho 
                        agora rapidez 
                        Emoção de lidar.” (SILVEIRA, 1998, 
                        p. 30) 
                      “Terapia ocupacional” “virou”, 
                        assim, Emoção de lidar (sem aspas...) 
                      De qualquer modo, o trabalho, seja como atividade terapêutica 
                        ou atividade profissional, desde que responda a um chamado 
                        interior, a uma vocação portanto, constitui-se 
                        num meio de proteção e fortalecimento do 
                        ego e de possível transformação da 
                        personalidade total. Ë uma “âncora” 
                        para o eu consciente e uma “vara de pescar de símbolos”, 
                        pois mantém o ego integrado às condições 
                        da vida material e ao mesmo tempo é um canal para 
                        a atividade criativa. Com relação a esses 
                        dois benefícios, não podemos deixar de remeter 
                        como exemplo, ao uso do trabalho e da brincadeira 
                        por Jung, no momento crucial de seu confronto pessoal 
                        com o inconsciente, como meio de aplacar a força 
                        dos conteúdos que irrompiam em sua consciência, 
                        durante esse período. Foi nessa etapa 
                        de sua vida que ele construi, por conta própria, 
                        sua torre, lavrou, plantou, colheu e cozinhou seus próprios 
                        alimentos, desenhou, esculpiu, pintou, brincou com soldadinhos 
                        de chumbo, etc. E foram justamente estas experiências, 
                        realizadas com dedicação e paixão 
                        que o permitiram, não só atravessar a crise 
                        psicológica, como integrar o seu material e transformá-lo 
                        em sua obra. (JUNG, 1984, p. 152-211)  
                      O trabalho enquanto atividade criativa é 
                        o meio mais eficaz de ancoragem do eu na realidade objetiva, 
                        ao longo do processo de individuação 
                        pois é, por definição e objetivamente 
                        falando, a própria transmutação da 
                        energia psíquica, que se expressa no símbolo, 
                        em ação criativa: forma singular de modificar 
                        o meio para beneficiar o outro; comunhão ou união 
                        com o outro; o ato em que o sujeito realiza a sua parte 
                        no todo. Coniunctio. 
                      Talvez seja lícito afirmar que a personalidade 
                        transforma-se de uma forma natural, segundo seu próprio 
                        princípio de individuação, na medida 
                        em que transforma o mundo, intervindo assim no processo 
                        da vida coletiva e porque não dizer, da vida na 
                        Natureza. Mas isso deve ocorrer num circuito em que o 
                        símbolo concretize-se no mundo e em contrapartida, 
                        o mundo reflua à psique tornando-se o símbolo 
                        de uma nova transformação possível 
                        (pois a experiência consciente é a fonte 
                        do símbolo, do mesmo modo que este é a semente 
                        da ação criativa). O mundo transforma-se 
                        em símbolo no trabalho inconsciente que redimensiona 
                        o mundo, preparando o seu porvir, para o pior ou para 
                        o melhor, dependendo da atitude consciente de integração 
                        ou negação desses conteúdos simbólicos. 
                         
                       
                     
                   
                 
                
                  
                 
                 | 
             
           
            
           |