Religião e Psicologia
Sob Uma Visão Junguiana
Emanuel Tadeu Borges - fale com o autor

O objetivo desta matéria é enfocar o problema da religião, no intuito de estabelecer seu significado em termos de individuação. A religião, como fenômeno espiritual, está relacionada com a questão moral da existência humana e coloca-a de diversas maneiras ao longo da história do homem, através de vários sistemas e grupos religiosos. Trata-se do problema do “bem” e do “mal”.

Não cabe aqui abordar a discussão propriamente política ou sociológica, que se refere ao uso da religião como poder de manipulação e nem a questão das possíveis alianças entre as lideranças religiosas e o poder político, com objetivos de dominação. Também não pretendemos focalizar as lutas sangrentas e insanas entre as diferentes “profissões de fé”, em busca de uma suposta hegemonia espiritual, afirmação de superioridade ou pior ainda, visando o extermínio de adversários tidos como infiéis, hereges ou profanos, que se oporiam aos desígnios e à obra de um suposto “deus verdadeiro”.

Todos esses graves problemas decorrem, segundo pensamos, de uma concepção e prática totalmente distorcidas da religião, que é um fenômeno psicológico e não ideológico, de cunho eminentemente individual e não massivo, como mostrou Jung. Mais precisamente, para Jung, a religião é a expressão simbólica arquetípica do processo de individuação e portanto algo passível de ser vivenciado por todo e qualquer indivíduo, de maneira particular e singular, podendo levá-lo, progressivamente, a uma perfeita integração com o todo de que faz parte, a sua coletividade e mais profundamente com o todo maior, no sentido cosmológico da experiência.

A questão moral, do ponto de vista da psicologia analítica, tem como ponto de partida a “confrontação com a sombra”, por parte do indivíduo (JUNG, 1982, p. 14). A sombra, o nome dado por Jung ao inconsciente, é constituída de conteúdos incompatíveis com a consciência, tudo o que se nos afigura como desagradável, perturbador e de que, por esse motivo, a consciência se afastou ou dito de outro modo, renunciou (“censurou”, nos termos de Freud).

Numa segunda etapa, dá-se o confronto com os conteúdos do inconsciente coletivo, os arquétipos. São elementos que se encontram nas camadas mais profundas da psique inconsciente e que representam a experiência genérica da humanidade, funcionando como eixos ou núcleos em torno dos quais se “constelam” ou se agregam as experiências individuais, com sua respectiva carga de afetividade ou investimento emocional armazenado, formando os complexos pessoais. Os arquétipos constituem-se pois como núcleos dos complexos, que “giram” em torno deles, por assim dizer, retendo a libido que concentram. Faz-se portanto necessária uma dupla operação, analítica: (1) a dissolução ou resolução dos elementos problemáticos pessoais, os complexos; e concomitantemente, (2) a progressiva conscientização ou assimilação, isto é, integração à consciência, dos conteúdos coletivos representados pelos arquétipos. Este duplo movimento que caracteriza a individuação, leva a uma cosmovisão de amplitude crescente, resultante da transformação da personalidade, que possibilita um crescente poder de intervenção criativa no mundo. A transformação da personalidade ocorre como consequência da resolução dos complexos pessoais e a ampliação da perspectiva existencial e criativa decorre da conscientização dos arquétipos, enquanto símbolos da experiência humana genérica. Ou dito de outro modo, a integração progressiva no coletivo gera a transformação da personalidade através da dissolução dos complexos e esta mesma dissolução aumenta a aptidão do indivíduo a atuar criativamente e de forma integrada na coletividade. A individuação é portanto uma espécie de feedback entre a função pessoal e a função coletiva na psique humana.

Essa cosmovisão ou macropercepção, a partir da assimilação consciente dos conteúdos arquetípicos, é uma imagem da totalidade, a partir da qual dá-se uma progressiva integração da experiência do eu pessoal à experiência coletiva. Os conteúdos arquetípicos aparecem nas manifestações simbólicas produzidas pelo inconsciente. Essa produção simbólica é proporcionada pelo self, a função ordenadora inconsciente. A função do self é, pois, a de proporcinar a “auto-regulação psíquica” ou na terminologia adotada por Jung, a compensação inconsciente à atividade do eu consciente, buscando complementá-la. Ou seja, o self ou a atividade que ele representa, visa complementar, através da revelação do processo inconsciente, o que a consciência realiza em sua própria esfera de atividade. A imagem da totalidade é portanto a expressão dessa compensação ou complementaridade, que se processa na psique, na medida em que acrescenta ao conteúdo cognitivo que corresponde a atividade do eu consciente, a “outra metade” até então desconhecida, os conteúdos inconscientes, que são revelados nos sonhos, nas intuições, na imaginação, nas projeções e nas transferências. Ou seja, a totalidade da psique inclui aquilo que está em desarmonia com o processo consciente ou ausente dele. E o equilíbrio psíquico implica a confrontação e posterior integração desses dois regimes, a saber: consciente e inconsciente.

A imagem de totalidade é constantemente renovada, atualizada, ampliada, no processo de individuação. Quer dizer, isso só irá ocorrer quando se estabelecer uma dialética funcional entre os representantes ou operadores das duas instâncias psíquicas: o eu, para a consciência e o self, atuando no inconsciente. O primeiro funciona como agente do processo e o segundo como seu guia ou orientador “spiritus rector” (o verdadeiro guru é o self). A cada símbolo ou manifestação orientadora inconsciente, decorrente da atividade compensadora do self, deve corresponder um ajuste real, uma ação ou atitude compensadora, da parte do eu consciente. Caso isso ocorra, há, como consequência prática, uma gradual integração do indivíduo, enquanto agente de transformação da realidade objetiva.

De fato, à medida em que se aprofunda o confronto subjetivo com a sombra pessoal, com os conteúdos pessoais do inconsciente (os assim chamados problemas pessoais), o indivíduo toma uma consciência cada vez mais clara de algo até então inacessível ou apenas parcialmente acessível a ele, a sombra coletiva, isto é, os elementos perturbadores inconscientes que atuam na coletividade produzindo as problemáticas e distorções sociais. Ao confrontar-se, progressivamente, com a totalidade de sua psique, dá-se conta, o indivíduo, de que ela comporta dois tipos de experiência ou dois níveis de existência, o pessoal e o coletivo ou arquetípico. Pois o confronto com os conteúdos pessoais da sombra é, na verdade, um confronto com a persona, a “máscara social” do eu pessoal. Todo um conjunto de valores impostos, por forças sociais, ao indivíduo, tendo sua contraparte nos costumes, idéias, comportamentos e tantos outros traços comuns que constituem a representação coletiva e que o eu vai desinvestindo no decorrer do percurso da individuação. Por outro lado, toda essa parafernália social, que constitui a complexidade relativa das diferentes culturas, tem como base experiências humanas universais, isto é, presentes em toda parte e em todas as épocas. Ora, os arquétipos são justamente as imagens simbólicas dessas experiências universais que se manifestam através da psique..

Individuação e Roupagens Sociais

Na medida em que o eu se despe das roupagens da persona, dos conteúdos morais que assumiu inconscientemente, duas coisas acontecem:

Em primeiro lugar, o eu se diferencia, no sentido mais preciso da expressão, torna-se diferente dos outros indivíduos em sua homogeneidade moral, característica do desempenho de valores coletivamente assumidos. Isto é, a personalidade se transforma e inicia um movimento na direção da genuína individualidade (etimologicamente: “aquele que não está dividido em dois”: “in-divi-dual”). O indivíduo, como resultado do processo de individuação, é aquele que curou a sua cisão psíquica ou psicológica ao religar os dois processos constituintes da psique, consciência e inconsciente, integrando-os funcionalmente. Este é o verdadeiro sentido da religião, como função psicológica. Tornar-se aquilo que se é verdadeiramente. Daí o termo escolhido por Jung, individuação: o indivíduo é a singularidade, a diferença em relação a todos os outros, que ao retirar o eu da homogeneidade social faz dele um ser conscientemente integrado no todo.

Ë este, precisamente, o segundo sentido da individuação. Ao desinvestir-se das “roupagens sociais” o indivíduo as vê claramente, no que apresentam de bom e ruim, funcionando na coletividade, pois já não atuam mais “às suas costas”, isto é, como projeção inconsciente. Ele já não mais se encontra “possuído” pela persona, segundo a expressão de Jung, pois desembaraçou-se da identificação com o “senso comum”. O indivíduo é então determinado a realizar aquilo que impõe a sua nova condição, a sua personalidade transformada: iniciar um serviço à coletividade, uma ação criativa e integrada no coletivo ao qual pertence, de amplitude e alcance variáveis, em função do grau de individuação em que se encontra num dado momento (levando-se em conta de que se trata de uma dinâmica de alcance imprevisível).

É preciso que se faça referência também aos casos em que a individuação fracassa. Isto pode ocorrer em uma das duas etapas principais do confronto com o inconsciente: ou como “possessão pela sombra”, caso em que a ego se identifica com seu lado obscuro, deixando-se substituir por um ou mais complexos. Ou ainda, no caso em que o eu se identifica com o self e é tomado por um arquétipo. Vejamos a fenomenologia desses dois casos.

No primeiro caso, a pessoa deixa-se enredar por um conteúdo da sombra e um complexo assume o comando da vontade consciente. Isso pode ocorrer quando a carga de energia de um complexo (libido inconsciente) torna-se superior à energia voluntária do eu (libido consciente).

No segundo caso, ocorre algo de similar, com a diferença de que o que assume o comando no campo da consciência é um representante arquetípico. Em outras palavras, o eu identifica-se com o self, personifica em si a função psíquica ordenadora e é então tomado por uma ambição de tipo messiânica, que reflete o fato de que o indivíduo entrou em sintonia com o inconsciente coletivo e é levado a atuar como o seu intérprete, ante os demais indivíduos de uma dada coletividade (Hitler, na Alemanha nazista, por exemplo). Ao identificar-se à instância ordenadora da psique (o self), o sujeito passa a projetar sua necessidade de ordenação na coletividade. Aquilo que seria o seu modo singular de integrar-se ao coletivo, passa a ser visto como valendo para todos.

Este tipo de manipulação só se torna possível devido ao fato de que os seguidores desse gênero de liderança não realizaram, por sua vez, o seu confronto com a sombra, o que os leva a uma unilateralidade psíquica, quer dizer, a uma incapacidade de discriminação objetiva entre o bem e o mal, entre o que é verdadeiramente favorável e desfavorável a eles (uma vez que não desembaraçaram, em si mesmos, o individual do coletivo ou o indivíduo da persona). Ou seja a vítima do paranóico é a massa composta de neuróticos

Unilateralidade psíquica é a causa da neurose, ou melhor, sua descrição funcional. É a consequencia da cisão entre consciência e inconsciente. O indivíduo neurótico é o que considera, exclusivamente, a parte consciente da atividade psíquica, despreza e muitas vezes nem mesmo admite a existência da psique inconsciente. Ao agir assim, ele favorece a associação de elementos afetivamente carregados aos complexos inconscientes já existentes, aumentando sua carga libidinal e com isso, favorecendo o caráter autônomo de sua manifestação. Isto significa que os conteúdos problemáticos inconscientes continuarão atuando compulsivamente, através do mecanismo de projeção, rompendo o controle do eu, aumentando seu poder de autonomia e gerando conflitos em relação à vontade consciente. A tendência à repetição projetiva dos comportamentos neuróticos, tem duas consequências possíveis: uma favorável à individuação, a saber, a conscientização dos conteúdos problemáticos, graças à repetição; a outra, patológica, qual seja, a irrupção do complexo na consciência, destronando o controle e a direção do eu (dissociação psicótica).

A invasão de conteúdos inconscientes turva o discernimento e abala o equilíbrio emocional tornando a personalidade vulnerável e portanto sujeita a se deixar levar pela primeira “tábua de mandamentos” que for apresentada, na qual possa projetar seus sentimentos, sensações e idéias confusos. Deve-se, portanto, reafirmar a importância do confronto com a sombra, a aceitação e o enfrentamento em relação ao que é desagradável e perturbador em nós: aquele que não se defronta com o que o perturba em si mesmo, dá vazão a que esses impulsos se manifestem livre e cada vez mais descontroladamente através de projeções e está sujeito, em maior ou menor grau, a identificar-se com manifestações de impulsos similares no plano coletivo. Pois o que é desconhecido ou inconsciente, no plano pessoal, é “reconhecido” inconscientemente, por empatia, no plano objetivo, isto é, no outro e ainda mais imediatamente numa massa. A personalidade, nessas condições, dadas as circunstâncias de pressão social, está sujeita a acolher uma “solução final”, isto é, “um projeto para resolver os problemas de uma vez por todas” e a ele dedicar todos os seus esforços num “movimento de massa”.

Temos aqui a oportunidade de aplicar no plano dos fenômenos psicológicos, por analogia, o conhecido princípio da física formulado por Arquimedes: “todo corpo mergulhado num fluido recebe um empuxo, de baixo para cima, igual ao peso do fluido deslocado”. Esta lei da dinâmica dos fluidos, vale para o inconsciente e seus conteúdos afetivamente carregados, que na analogia corresponderiam, respectivamente, ao fluido e aos corpos nele mergulhados. Poderia pensar-se, perfeitamente, tendo por base o pensamento de Jung, o inconsciente como um “fluido” ou “meio de imersão psíquico” ou a própria psique como um “fluido”. E os complexos e os conteúdos psíquicos, em geral, como “corpos”, sua carga afetiva correspondendo a seus “pesos” respectivos. Quanto mais tempo e mais intensamente renuncia-se ao confronto com os complexos, mais pronta e violentamente expõe-se a uma irrupção de conteúdos inconscientes na consciência. No caso das comoções de massa, o sujeito pode ser “arrastado” por uma onda coletiva de afetos indiferenciados. O neurótico, como já demonstraram pensadores como Freud, Reich e Canetti, tende a agir de acordo com a massa. Em situações críticas de caráter pessoal reage de forma estereotipada e durante as crises sociais, é levado a se comportar de modo irracional e em bando. Nesses casos, o eu é dominado por um complexo que o submete e pode até mesmo destruí-lo. Nas crises sociais, o indivíduo tende a indiferenciar-se numa massa juntando-se a outros, também indistinguíveis. Todos se nivelam como partículas indiferenciadas formando uma onda irresistível, uma força descontrolada e irracional, constituindo um complexo de massa que irrompe na vida social.

Quanto aos “guias” ou líderes desse gênero de empreitada, são, por sua vez, tomados por um complexo de poder. Creem-se inspirados por um deus, por Deus, pela “alma nacional” ou pela “vontade e anseios coletivos”, etc. Sua consciência é progressivamente subjugada por uma “convicção”, que ele assume como a quintessência da verdade. Pressente então a “iminência de um destino glorioso” ou a “urgência de uma missão sagrada” e a necessidade de assumir um compromisso do qual não pode se furtar.

Em função do que acabamos de mostrar, é possível apontar duas possibilidades de expressão do self. A primeira em que ele atua como centro ordenador inconsciente, como função orientadora do processo de individuação. Mas há ainda a sua faceta, digamos, sombria. A religião cristã expressa claramente essas duas possibilidades nas figuras do Cristo e do AntiCristo. O Cristo como símbolo do self, do Homem Realizado e o AntiCristo como expressão simbólica da sombra e das forças perturbadoras do inconsciente (ver JUNG, 1982, cap.5). Porque essa duplicidade de manifestação do inconsciente coletivo? Porque ambas as facetas do self estão ligadas a destinos coletivos, referem-se às possibilidade de realização de duas imagens de totalidade incompatíveis entre si e que poderíamos denominar, alusivamente, “Bem” e “Mal” ou psicologicamente, “união” e “dissociação”, no plano coletivo.

Os símbolos arquetípicos, que representam os conteúdos mais profundos da psique inconsciente, possuem um caráter arcaico (JUNG, 1991, p.764) e por isso exigem um trabalho de elaboração, desvelamento, decifração, da parte da consciência, uma vez que se referem a realidades “impessoais”, desconhecidas e inicialmente incompreensíveis ao eu. São porém “realidades de fato”, ainda que relativas a fatos psíquicos, visíveis, por exemplo, na linguagem e símbolos característicos das profecias, da experiência numinosa, dos êxtases religiosos, dos delírios, visões, sonhos, de certas expressões artísticas, etc. O caráter arcaico, enigmático, hermético, oracular, dos símbolos arquetípicos, é representado mitologicamente pela figura da Sibila, definida muito propriamente por Heráclito, no estilo que lhe é peculiar: “...com delirante boca, sem risos, sem belezas, sem perfumes, ressoando mil anos, ultrapassa com a voz, pelo deus nela.” ( HERÁCLITO, 1985, p.88). De fato, o riso, as belezas e os perfumes, são experiências fornecidas pelos sentidos objetivos, portanto exclusivas da vida consciente. Ao passo que só o inconsciente, delirando, pode fazer falar um deus que, através de sua voz, faça ressoar a sabedoria dos séculos. É a linguagem sibilina dos símbolos arquetípicos que, por não se referirem ao que é conhecido, não podem usar a linguagem racional.

O símbolo refere-se ao que se conhece pouco: os complexos pessoais; ou se desconhece por completo: os arquétipos. Assim, os sonhos, por exemplo, não escondem um “conteúdo latente” que estaria sob um “conteúdo manifesto”. O que está oculto, parcial ou completamente, não é um suposto conteúdo integral do sonho, é ao contrário, justamente aquilo a que o sonho se refere. O sonho e os demais meios de compensação inconsciente, “esforçam-se” por revelar o inconsciente no sentido de fornecer uma complementaridade à consciência, um complemento ao material consciente Caso contrário, atuariam em prol da dissociação psíquica, favorecendo a cisão entre os processos consciente e inconsciente. No entanto, isso não ocorre, a função auto-reguladora da psique possibilita o acesso da consciência ao material inconsciente e ao fazê-lo estabelece uma ligação e uma possibilidade de integração entre os dois processos.

Contudo, é necessário um cuidado extremo ao se lidar com os conteúdos arquetipicos, pois o inconsciente tem, junto ao temor que exerce, um forte poder de sedução. Aparece ora como assustador, ora como fascinante. E o arquétipo, por ser oriundo das camadas mais profundas da psique, possui uma poderosa carga libidinal. Corresponde ao extra-pessoal no indivíduo, portanto ao que há de mais estranho à ação da vontade. Por isso, a arte suprema do eu é equilibrar o terrível e o maravilhoso do espírito, não se deixando levar pelo fascínio do numinoso, o caráter impressionante do material inconsciente, mas não cedendo também ante o medo que ele inspira. Cabe aqui o conhecido preceito de Buda, também para o processo de individuação: “buscar sempre o difícil caminho do meio”. Isto é exato até mesmo do ponto de vista das funções: deve-se centrar a ação no ego como “fiel da balança”, pois ele encontra-se “no meio”, flutuando precariamente entre os mundos objetivo e subjetivo, entre as experiências consciente e inconsciente, como agente do processo. Jung define assim a situação dos dois principais operadores da psique: o eu ou complexo egóico é o centro da psique consciente e o self, o centro da psique total (JUNG, 1982, p.1 e 9). O self orienta virtualmente o processo, enquanto princípio regulador inconsciente mas é o eu quem atua. O ego está pois “sobre o fio da navalha” ou “na corda bamba”, entre as duas grandes realidades da vida, a experiência consciente e a experiência inconsciente, oscilando entre essas duas demandas.

O Ego Como Fiel da Balança

De fato, o ego encontra-se numa posição psicologicamente essencial, de extrema importância estratégica, no que se refere à realização do processo de individuação. Ora voltado para as representações coletivas que regulam a vida social e isso requer um comportamento adaptativo desempenhado através persona. Ora às voltas com o material inconsciente, o que requer assimilação e integração, ou seja, interpretação e elaboração desses conteúdos. É o ego quem realiza o símbolo, quem o investe na vida objetiva. A partir do material simbólico fornecido pelo self, cabe ao ego um difícil trabalho em que deve realizar um movimento pendular entre a psique e o mundo, para construir uma ponte que os ligue de modo seguro e realizar, na travessia, a transformação da carga simbólica em ato. Essa passagem é perigosa, pois o ego pode sucumbir ao símbolo ou ao mundo. O primeiro caso corresponderia a uma identificação com a sombra e o segundo a uma identificação com a persona, o que significaria, em ambos os casos, uma paralisação do processo de individuação, na medida em que este objetiva uma integração das duas instâncias da psique e não uma predominância de qualquer uma das duas sobre a outra. O eu não deve, pois, ser confundido com sua função de adaptação social, nem com a cosmovisão decorrente do processo inconsciente, pois ele é, na verdade um mensageiro, uma função de intercâmbio entre as duas perspectivas.

Um princípio, portanto, fundamental à psicoterapia e aliás a qualquer técnica ou arte que vise a individuação, o auto-conhecimento ou a transformação da personalidade é o de que “o ego precisa ser protegido a todo custo”, quanto à preservação da sua integridade, mesmo, como frisa Jung, que isso signifique interromper o aprofundamento do processo analítico, na medida em que se perceba que a integridade da personalidade consciente está ameaçada (JUNG, 1981, p.11).

Talvez o meio mais importante, não só de proteger mas de fortalecer o ego e ao mesmo tempo favorecer a individuação, é o trabalho enquanto atividade criativa. O trabalho criativo como expressão simbólica, produção de símbolos, é um excelente meio de acesso ao material inconsciente, que pode então ser interpretado e elaborado. É um esplêndido recurso terapêutico, introduzido e desenvolvido pela dra. Nise da Silveira, ao longo de seu trabalho no tratamento de psicoses e neuroses graves. O que era precariamente realizado sob o nome de “terapia ocupacional”, foi por ela profundamente modificado com a adoção de todo o tipo de atividades criativas, lúdicas e interativas, tais como as artes plásticas, as artes cênicas, a dança, o uso de animais como “co-terapeutas”, a participação de profissionais das mais variadas proveniências atuando como coordenadores, entre outras tantas inovações. O ponto fundamental dessa prática terapêutica é a procura do meio de expressão mais apropriado em cada caso. E o objetivo principal, dar vazão à afetividade enclausurada no espírito, em função do isolamento social imposto ao “doente”, através da convivência facultativa e livre: sem internação e sem medicação. O que um paciente batizou com o nome de “emoção de lidar”, num poema escrito após a execução de um trabalho artístico:

“ ‘Posso com esse pano fazer um gato?’ A resposta foi sim. Então Luís Carlos começou a manipular o pedaço de veludo, dando-lhe a forma de um gato. (...) Completado o gato, Luís Carlos tomou um lápis e escreveu:

Gato simplesmente angorá
do mato
azul olhos nariz cinza
orelha castanho macho
agora rapidez
Emoção de lidar.” (SILVEIRA, 1998, p. 30)

“Terapia ocupacional” “virou”, assim, Emoção de lidar (sem aspas...)

De qualquer modo, o trabalho, seja como atividade terapêutica ou atividade profissional, desde que responda a um chamado interior, a uma vocação portanto, constitui-se num meio de proteção e fortalecimento do ego e de possível transformação da personalidade total. Ë uma “âncora” para o eu consciente e uma “vara de pescar de símbolos”, pois mantém o ego integrado às condições da vida material e ao mesmo tempo é um canal para a atividade criativa. Com relação a esses dois benefícios, não podemos deixar de remeter como exemplo, ao uso do trabalho e da brincadeira por Jung, no momento crucial de seu confronto pessoal com o inconsciente, como meio de aplacar a força dos conteúdos que irrompiam em sua consciência, durante esse período. Foi nessa etapa de sua vida que ele construi, por conta própria, sua torre, lavrou, plantou, colheu e cozinhou seus próprios alimentos, desenhou, esculpiu, pintou, brincou com soldadinhos de chumbo, etc. E foram justamente estas experiências, realizadas com dedicação e paixão que o permitiram, não só atravessar a crise psicológica, como integrar o seu material e transformá-lo em sua obra. (JUNG, 1984, p. 152-211)

O trabalho enquanto atividade criativa é o meio mais eficaz de ancoragem do eu na realidade objetiva, ao longo do processo de individuação pois é, por definição e objetivamente falando, a própria transmutação da energia psíquica, que se expressa no símbolo, em ação criativa: forma singular de modificar o meio para beneficiar o outro; comunhão ou união com o outro; o ato em que o sujeito realiza a sua parte no todo. Coniunctio.

Talvez seja lícito afirmar que a personalidade transforma-se de uma forma natural, segundo seu próprio princípio de individuação, na medida em que transforma o mundo, intervindo assim no processo da vida coletiva e porque não dizer, da vida na Natureza. Mas isso deve ocorrer num circuito em que o símbolo concretize-se no mundo e em contrapartida, o mundo reflua à psique tornando-se o símbolo de uma nova transformação possível (pois a experiência consciente é a fonte do símbolo, do mesmo modo que este é a semente da ação criativa). O mundo transforma-se em símbolo no trabalho inconsciente que redimensiona o mundo, preparando o seu porvir, para o pior ou para o melhor, dependendo da atitude consciente de integração ou negação desses conteúdos simbólicos.