A Mulher do Coelho
por Rogério Suarez Barbosa Lima

— Eu, o que peço é que me tratem com respeito. Se a pessoa for cordial, tanto melhor, mas não exijo; se exagerarem, até desconfio. Mais do que isso, não preciso. Todo e qualquer dia tem o seu preço; houve aqueles em que gastei mais do que dispunha. Mas não reclamo e, enquanto agüentar, vou tomando todas. É muito tarde para investir no que quer que seja. Me diverti e me ferrei e, no geral, acho que ficou de bom tamanho. De uma decisão sei que não me arrependo: ter dispensado a mulher do Coelho.

— O Coelho do restaurante?

— Você não conhece, nem eu. Não tem a estrada velha que vai para Cabo Frio via Maricá? Antigamente, de tempos em tempos, surgia inesperadamente, no alto de um moirão mais destacado, uma tabuleta onde se lia: 'Vera Coelho ama'. Assim mesmo, sem pontuação, ambíguo. Manja aquela história do pichador que escreveu na parede do castelo 'Matar o rei não é pecado'? Pois é, condenado à morte pelo ultraje, teve um estalo e exigiu o cumprimento de um último desejo, o de voltar ao local do crime. No que chegou, meteu uma vírgula na sentença — 'Matar o rei não, é pecado' — e foi absolvido. Onde você colocaria a vírgula na frase do Coelho?

— Eu, uma vírgula! Quem se enrabichou pela mulher do cara foi você.

— Não é pra menos. Você não percebe como sempre foi importante para mim desvendar um mistério que me atormentou anos a fio: é Vera que ama Coelho, com o verbo posposto, ou é 'Vera, Coelho ama'? Neste último caso, Coelho ama quem? Ela ou outra moça, hipótese em que a mensagem teria o sentido de um fora, um adeus, como quem diz: 'Vera, não insista. Coelho quer outra mulher'. E foi precisamente nessa alternativa que apostei, então, com fervor de romeiro.

— Rapaz, isso me lembra aquela história do Monteiro Lobato, em que o pretendente usou o pronome errado e o pai da namorada aproveitou pra lhe empurrar a irmã mais velha, a feiosa encalhada.

— Minha situação era pior do que a desse infeliz. Eu nem sequer pude exercer alguma opção concreta. Onde encontrar Vera e como abordá-la? Eu a imaginei de pés descalços, jovem, desejável, trigueira, olhos verdes, um tantinho estrábica, com um quê de matreirice sapeca.

— A definição é meio extravagante; tem alguma coisa que não me agrada ...

— O quê? O caráter, quem sabe. Deixe-me prosseguir: ela ri para mim, ou assim parece — nunca fui bom observador ...

— Mas, quando ela riu para você? Isso está me soando um pouco vago.

— Não sei. Quando o marido foi mijar. Ora, nem tenho certeza se esse Coelho era marido, namorado ... Sei que o imaginava baixinho, franzino, manhoso, adulador, com fama de mau (teria fuzilado um paquerador por causa da mulher: não porque ela o traísse; não que a mulher, necessariamente, fosse Vera). Mas, se ele me pegasse um dia, será que eu estaria preparado? Valeriam a pena

aquellos ojos verdes, serenos como un lago,
en cuyas quietas aguas un dia me miré ?

— Você pensou em usar conhecimentos, grana para tirá-la da toca?

— Não seja grosseiro. Vera não era interesseira, nem prostituta. Eu não a idealizei dessa forma. E foi melhor assim, senão eu estaria liquidado, porque a mulher ideal é a puta que beija na boca ...

no saben las tristezas que en mi alma han dejado
aquellos ojos verdes que jo nunca olvidaré.

Eu nem estou seguro de que algum dia desejei possuí-la. Num primeiro momento, minha aflição consistia em afastar a possibilidade de um eleito que a houvesse iniciado, que a desfrutasse consentidamente. E, como eu abominava e invejava essa probabilidade, meu Deus! Mutatis mutandi, muito pior do que a abstinência alcoólica, mais desalentador do que a idiossincrasia que inviabiliza o ato físico de ingerir o líquido maldito é a incapacidade de se iludir, a inferência inarredável e atroz da impraticabilidade de empinar o copo impunemente. Bebe e vai logo pro hospital, filho-da-mãe, porque a punição por se gastar mais do que se tem é estornar um dia comum, um dia santo qualquer ... a vida não faz fiado mesmo. Então, se o sujeito vai comer o pão-que-o-diabo-amassou, e sabe disso, é preferível morrer logo de uma vez.

— Caramba, que trágico! É muita filosofia pro meu bucho. O que a Vera diria disso tudo?

— Não sei. E é por isso que me atormento. Às vezes consigo avaliar com alguma lucidez; em outras me perco completamente, mas repara que eu, pulha confesso, nato e hereditário, sempre hesitei em localizar exatamente a posição da vírgula. Daí, especulava, e acabei descortinando uma variante favorável, sendo 'Coelho' apenas sobrenome: 'Vera Coelho ama' - uma oração afirmativa, expressão sensível, poética de um elevado estado de espírito, a timidez virginal que enfim inventa o amor. Você não pode calcular a que ponto me entusiasmei ante essa janela nova que se abria, o que de esperanças acalentei. Quer dizer que poderia não haver Coelho algum?! Porém, como velho e bom pulha, satisfiz-me com a ausência da vírgula, redentora promessa de supressão do rival. Não tive cacife para prosseguir por mais uma rodada e confirmar esse desfecho sedutor; a perspectiva, ainda que abstrata e remota, de trair o Coelho me embaraçava e reprimia, pois implicava admitir sua existência, e eu jamais me conformaria com um Coelho real, palpável, que tivesse chegado antes de mim. Por isso, insisto em dizer que não me arrependo da decisão que tomei, até porque o tempo vai arranjando os acontecimentos à sua maneira — você não pode interferir mesmo — e acaba que o sujeito se habitua a conviver com seus pesares, principalmente se tem o meu temperamento.

— E agora que você, aparentemente, sepultou essa desdita e livrou-se do fardo, não tem a curiosidade de investigar o destino da impoluta Vera? Afinal, na região tem duas ou três cidades pequenas, e não deve ser difícil descobrir seu paradeiro, uma vez que a moça apregoava seus ardores pelas vias públicas.

— Quer saber de uma? Prefiro ficar quieto no meu canto. Até hoje, cá entre nós, o tal Coelho me mete um pouco de medo. Por via das dúvidas, quando as circunstâncias me obrigam a ir a Cabo Frio, pego a estrada nova. No fim das contas, você economiza bem uns cinqüenta minutos.