Boca do Inferno
por Carlos Rangel - Fale com o autor

Fernando não gosta das terças-feiras. Nesse dia, não dá para matar a última aula na faculdade de administração. O professor é rigoroso e controla a lista de chamada. Ele acaba por chegar muito tarde em casa. O bairro é perigoso e sua mãe teme que lhe aconteça algo. Ele diz que não há problema algum, mas também tem medo. No entanto, a conclusão da faculdade é a única esperança de arranjar um emprego melhor. À meia-noite, passa o último ônibus, recolhendo os últimos alunos que deixam apressados a faculdade. Quase dormindo, com a cabeça recostada na janela, seu sonho de uma nova vida tem altos e baixos, acompanhando os solavancos causados pelas ruas esburacadas da região.

É uma noite fria de inverno, o ônibus sobe com dificuldade o morro até parar no ponto. Apenas Fernando salta. A rua está vazia. Ele fecha o casaco fino, tentando se aquecer. O motorista troca a marcha e acelera, o motor tosse, como um velho doente.

Fernando atravessa a rua e pára. É possível descer uma ladeira íngreme, atravessar uma ponte antiga de madeira que há anos a prefeitura promete trocar e nunca troca. Cinco minutos depois estará no quarto, se preparando para dormir. Um percurso mais seguro é seguir algumas quadras em frente e tomar a avenida, em seguida voltar para chegar em casa. Isso aumenta o trajeto em vinte minutos. O cansaço o leva a decidir pelo atalho, pegando a ladeira. Do alto dela, pode-se observar a rua mal iluminada, que desemboca num córrego poluído. As lâmpadas queimadas dos postes de luz lembram a boca banguela de um mendigo, o riacho, seu hálito fétido.

Fernando reluta em prosseguir, um pesadelo de uma semana atrás o assombra. A ponte caíra e ele precisa atravessar o córrego de barco, mas não possui uma moeda para pagar o barqueiro. Os dois ficam eternamente a vagar pelas águas sujas, entre garrafas de refrigerantes vazias. Seus pedidos para convencer o condutor a levá-lo à outra margem são inúteis.

Mãos no bolso do casaco, seus olhos miram o céu. O vento frio empurra as nuvens, ora encobrindo, ora revelando a lua. Por um instante, as nuvens parecem estáticas e a lua corre veloz, fugindo de uma terra vergada pela desolação de um destino sombrio. O dia em que mataram um traficante que vendia crack ao lado da ponte ainda está vivo em sua mente. Ao passar pelo local, observou a multidão olhando o corpo estendido no chão. Alguém disse, "Você viu? Mataram o Miguel da boca." E uma mulher respondeu, "É, boca mesmo. Boca do inferno." O apelido pegou, o lugar virou maldito. Nunca mais ninguém traficou ali.

Ele dá os primeiros passos ladeira abaixo. As casas são pobres e malcuidadas como os habitantes de toda a vizinhança. Ao lado da ponte ardem os restos de uma fogueira que alguém fez para se aquecer durante alguns minutos.

Um rato passa correndo e se esconde no matagal de um terreno abandonado. Fernando caminha pelo meio da rua. Evita uma valeta causada pela erosão das chuvas de verão. Os sapatos erguem uma camada fina de poeira na rua de chão batido e seco. O olhar atento logo percebe a jovem encostada em um muro coberto de pichações das gangues do bairro. Ela ajeita o casaco e vai em sua direção. Tem por volta de 17 anos, rosto delicado e branco, cabelos negros e lisos até a altura do ombro.

"Oi, você vai atravessar a ponte?" Sua voz é doce, ao contrário da vida naquele bairro, rude e brutal. Isso desarma Fernando, que não gosta de falar com estranhos, principalmente àquela hora.
"Sim, vou. Por quê?"
"Eu também vou, mas tenho medo de passar lá sozinha. Será que posso ir com você?" A garota o fita com grandes olhos acinzentados. Ela não é alta, tem um pouco mais de um metro e sessenta, um pouco gordinha, ou talvez fosse apenas a ilusão criada pelo casaco grande demais para ela.
"Tudo bem, onde você mora?".
"Uma quadra depois da ponte, à direita. Você vai até lá?", pergunta ela, uma expressão de ansiedade no rosto.
"Vou, pode ir comigo. Eu te acompanho."
Ela suspira aliviada e, lado a lado, eles caminham.
"Meu nome é Letícia. E o seu?"
"Fernando. Você tá nervosa? Tá tremendo um pouco."
"É o frio. E o medo de andar aqui a essa hora. Você não tem?"
"Não, claro que não."
"Que bom." Letícia sorri. Fernando é tímido, mas ela consegue deixá-lo à vontade. Os dois conversam, esquecidos do vento gelado. Um cachorro no portão de uma casa late. Os dentes brancos brilham pelos vãos da grade de ferro. Letícia se assusta e segura no braço de Fernando.
"Desculpe", diz ela, envergonhada.
"Tudo bem, eu também levei um susto."
"Pois agora o susto vai ser ainda maior, mané. Passa a grana."

Fernando sente a pressão do cano do revólver nas costas. Distraído, não percebera o rapaz se aproximar por trás. Tem por volta de 19 anos, não mais que um metro e setenta de altura. O corpo é magro e esguio. O gorro de lã branco e preto esconde o rosto sulcado. Os olhos têm uma expressão amarga, de alguém que já desceu a profundezas que não gostaria de comentar. Seus gestos são nervosos, joga o peso do corpo de um pé para outro, olha para os lados. A voz agitada revela o desespero de um viciado, capaz de qualquer coisa para conseguir uns trocados que compre algumas pedras de crack.

"Vou pegar o dinheiro, não atire."
"Não enrola, dá logo ou eu passo fogo." Sua mão treme, talvez mais pela fissura, do que pela tensão.
Fernando tira a carteira, vira-se lentamente e a entrega para o rapaz. O garoto a segura com a mão esquerda, a direita empunha trêmula o revólver. Ele olha ansioso as poucas notas de cinco, dez reais, pensando em quantos minutos de alívio elas lhe garantirão. Isso faz seu sangue ferver por antecipação. Fernando aproveita a distração do rapaz e lhe dá um golpe no braço. A mão fraca solta a arma, que cai com um baque surdo no chão. Os dois se engalfinham, rolam pela calçada. Fernando não é um atleta, mas toda a força que sustenta o bandido é o sonho de outra dose e ela logo se esvai, efêmera como os segundos de felicidade que uma pedra de crack lhe dá. Fernando consegue lhe dar uma gravata e o imobiliza. Ele grita.
"Ei, menina! Pegue a arma! Eu já segurei esse filho-da-puta!"
"Você segurou, mas pode soltar. Ele é meu amigo." Ela empunha a arma com firmeza. O sorriso, antes estampado no rosto, sumiu. A boca se contrai, firme e cruel.

REVANCHE

O bandido se levanta com dificuldade, a respiração tensa. Dá um chute em Fernando. "Desgraçado, filho da puta! Tá pensando o quê? Que isso vai ficar assim?" Dá outro chute, Fernando se contorce de dor. O cachorro no portão ladra furiosamente. "Pois eu vou te apagar, mano. Você vai apodrecer, te jogo nesse riacho e nunca mais acham teu corpo. Letícia, passa o berro."

Arma na mão, ele mira o corpo estendido na calçada, pronto para atirar. O cão late ainda mais alto, o marginal se vira a tempo de ver o animal saltar o portão, olhos em fogo, caninos brilhando sob a luz fria da lua. Apavorado, ele atira, erra. Nenhuma janela, nenhuma porta se abre, todos têm medo. O cachorro morde sua mão, ele urra de dor. Cão e bandido vão ao chão. Tiros, gritos e latidos se misturam ao sangue escorrendo da mão dilacerada. O revólver cai no chão e o animal ataca o pescoço. Os gritos perdem força, viram gemidos abafados, o corpo se contrai em espasmos, até quedar inerte no chão. O animal se acalma, cheira o cadáver. Olha para Letícia, que está deitada no meio da rua, imóvel. Uma das balas disparadas a acertara na testa. Com a boca ensangüentada, o cachorro volta trotando para casa e salta o portão.

Apoiando as costas no muro, Fernando lentamente se põe de pé. Um estranho se aproxima. Fernando não consegue conter um tremor. Era o barqueiro de seus sonhos. Os gestos lentos, o olhar indiferente eram os mesmos.
"Mais dois que morrem aqui. A fama da boca vai aumentar."
"Mais dois?", pergunta Fernando.
"Não lembra não?", retruca o desconhecido. "Foi aqui que o Miguel, aquele traficante, foi morto."
"É verdade, tinha até esquecido."
"E esse cão. Ele veio para cá no dia da morte do Miguel. Fica aí no portão, de vigia, como se fosse o guardião da boca do inferno. Naquela noite, uivou a noite inteira. Acho que fará o mesmo agora."
O cão uiva. Um lamento primitivo que parece descer às estranhas da terra. Fernando sente um arrepio na espinha.
O estranho pega a carteira, tira duas moedas e as joga no chão, uma ao lado de cada corpo. "Eles vão precisar de uma grana, não acha? Pelo menos para pagar a passagem para o inferno." Ele solta uma gargalhada e vai embora. Um vento forte mistura pó ao sangue.