Estranhas Férias na Fazenda
Parte 1
- "Cerimonial de Abertura"
por Paulo Duboc

O mês de Dezembro sempre teve a característica peculiar para a juventude de marcar o fim do ano letivo e impregnar no espaço o cheiro de um longo período de férias. Já no começo, em seus primeiros dias sente-se o cheiro de liberdade, e o mês parece corre rápido. Pelo menos, era assim no meu tempo, e acredito que ainda seja assim, para a garotada.

Pois, mal o verão estava por chegar e ele já existia em minha mente, projetando para breve um ciclo de coisas felizes. Ainda mais para um garoto na adolescência, em quem os primeiro símbolos de natureza se fazem sentir com força plena: O sol como símbolo de vida aberta fazia despojar o uniforme escolar, lembrando as praias com suas águas de amplidão, as montanhas com sua liberdade para cima, ou a fazenda, com sua natureza horizontal. As férias eram um período de vida sem hora e sem medo onde cada dia de alegria e liberdade corresponderia a um ano de felicidade. Ainda mais para quem tem 14 anos, vivendo numa numa rotina infernal de estudos e preocupações no início da segunda idade, e numa cidade onde a natureza se desmoronava lentamente substituída pelos prédios altos, monolitos que, tal como túmulos cheios de mortos-vivos, erguiam-se para o céu, cada vez maiores e mais furiosos. As escolas, os hospitais, a selva de pedra, o barulho ensurdecedor dos carros e dos ônibus, tudo somava para expelir a gente daquele horror, simbolizado pela escola. Mesmo que o tempo fosse curto, as férias eram e sempre serão, as férias.

Naquela idade já tinha pressentido que as férias tinham, um sentido especial, uma lógica. Talvez porque o catecismo religioso ensinava que Deus havia criado o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Assim, Deus estaria de férias até aquela data, razão porque acreditava que o mundo não ia bem. Essa dedução era infantil, mas tinha reflexos imensos aos finais de cada ano. Assim, muito antes das férias acontecerem eu já me sentia um filho de Deus, portador de um desejo, interior e poderoso, de sair da prisão escolar, das paredes artificiais e me dirigir para algum canto onde a mãe-natureza generosamente pudesse me abrigar. Felizmente nesta vida o meu desejo era amplamente correspondido, pois a fada-madrinha me concedeu o privilégio de poder sair sempre em férias e viajar, no verão, comungando com a natureza na fazenda do meu Avô, enquanto que no Inverno descia às praias encaloradas e cheias de vida. Essa era outra rotina que me acostumei desde cedo, a rotina de férias, longe do lugar onde conheci a vida social e os valores primarios da segurança, do lar e das andanças no asfalto, nas calçadas da vida primária e nos túneis escuros de uma vivência poluída. Cada dia e cada hora das futuras férias eram antecipadas em minha mente, como se as programasse de tal sorte que teriam que acontecer conforme a força do meu desejo, embora soubesse desde cedo que o inusitado coloca sempre percalços e pedras, mau tempo e crises de toda espécie, tudo para que a rotina de férias se desprograme.

Aquele Janeiro de 1955 seria mais um dos muitos janeiros de minha juventude de férias a ser passado em meio a natureza esplendorosa das águas, cascatas, pradarias e montanhas da fazenda do vovô. A decisão de minha mãe foi passar o máximo de tempo possivel lá, o que me deixou tão eufórico que naquele fim de ciclo escolar passei em primeiro lugar em todas as matérias. Talvez o meu interno ja previamente antecipando esse período que, logo mais, iria constituir-se num marco indelevél para a formação de minha psique fez com que me apressasse nos preparativos e na angústia de chegar à fazenda. Os acontecimentos chamados diferentes que circunstancialmente se sincronizam em nossa vida diária ou comum marcam, por vezes, como o seria desta, algo que deve ser urgenciado e vivenciado, como que preparando-me para a compreensão, ainda muito cedo, de uma das mais dificeis barreiras a que deva se submeter o ser humano: a barreira do inconsciente. Ela é uma especie de fronteira entre o real e o cósmico. Para um garoto ainda insosso, de uma geração nascida num pós-guerra onde o desumano e o cruel ainda eram recentes, a curva ascendente das comunicações ainda alcançava níveis muito pequenos. Quando muito a chamada intelectualidade da ocasião, em nome da democracia que ganhou a guerra mas ficou furiosa para se manter no Poder do Mundo, mostrava, para os garotos, uma verdade chamada cientifico-democrática de tanta energia que a bomba atômica foi a coroação desse acasalamento. Os livros que ensaiavam os caminhos da libertação democrática ainda sofriam o ranço do "Index Librorum Proibitorum" da Igreja Católica, secularmente destinada a dirigir as consciências para o um " bem " que era só cristão, e uma verdade que era só democrática e cientifica. No entanto, a natureza, com seus mistérios e sua sabedoria, ordenava-me uma marcha ascensional rumo a conceitos novos de liberdade de religião e de sabedoria. Digamos que, nesta vida, a natureza real me colocou frente a frente com o inusitado, dando-me as chaves de um processo que mais tarde vim a conhecer e defini-lo como Iniciação.

Se o tempo das Iniciações oficialmente começou no ano de 1955, um pouco antes sofri dois " acidentes " que chamei " paralelos " e que marcaram profundamente a minha infância e de forma tão próximas que se tornaram para minha mente primária e ainda em formação um único e profundo sulco. O primeiro aconteceu no ciclo infantil de 7 anos de idade, quando minha mãe me registrara numa escola particular cujo nome era o da propria professora, Dona Lulú. Extremamente severa porém justa, usava uns métodos ainda antiquados, como o castigo da genuflexão sobre o milho, as varadas nas mãos, o puxão de orelhas horroroso e doído, de sorte que o aprendizado era mais por medo do que pelo prazer da sabedoria. Através de grande coação éramos forçados ao estudo, ao diálogo, à comunicação. Sobretudo, a não errar. Mas esse estímulo coercitivo em mim não desceu em forma de castigo, pois além de ser bastante comunicativo, tive sempre uma natural curiosidade para as coisas do intelecto. Aos poucos tornei-me versado em vários assuntos, porém o que mais me afeiçoei e ao que dediquei o máximo do empenho e gosto, foi Geografia. Questionava tudo, bacias, rios, montanhas, mares, e meu prato predileto era o céu. Para minha alegria e raiva dos meus colegas, Dona Lulu correspondia às minhas indagações sobre coisas da área astronômica ao que respondia com perfeição, embora exagerada e grosseira.

As coisas corriam normais quanto, certo dia, às duas horas da tarde, Dona Lulú tornou-se extremamente nervosa. Aos berros, e como se estivesse possuída por alguma coisa ruim, pediu que todos nos retirássemos da sala sem fazer comentários e fôssemos direto para casa. Demonstrava um nervosismo contagiante, pelo menos podia percebê-lo, enquanto os outros meninos, com a alegria pela saída inusitada diziam adeus às pressas. Resolvi desafiá-la:

- Dona Lulú, ouvi falar numa eclipse e que vai ficar tudo escuro. Isso é coisa do demônio mesmo?

- Não, meu filho, por favor, não fale nada, não diga nada, é... há sim um eclipse, é, a Lua tapando o Sol, mas ande, vá direto para casa, amanhã eu falo nisso. Vá rápido e não pare por nada desse mundo...

Fui para casa sem correria ou atropelos. Realmente havia algo estranho no ar, pois todos tinham uma espécie de medo e de certa forma corriam para suas tocas. Cheguei já escurecendo quando minha mãe nervosa, em companhia de algumas mulheres, iniciava uma novena com velas acesas.

- Mamãe, o mundo vai mesmo se acabar? - ironizei para ver a reação.

- Cala a boca, menino, fica lá no seu quarto. Acenda a vela e aguarde, isso passa logo. Fique rezando. E de jeito algum saia para a rua.

Como tive desde cedo o gosto pela inusitado, e como a ordem dada a mim sempre recebeu um contra-ordem de meu interno, evidentemente não resisti. Abri a janela do quarto e vi a noite "durante" o dia. Olhava curiosamente para o céu e não conseguia enxergar a Lua. Onde diabo ela estaria.? Até então não entendia bem o fenômeno, mesmo porque jamais foi explicado de forma didática e normal. O relógio apontava duas horas e dez minutos quando a noite voltou a ser dia. Naturalmente o retorno do dia depois de uma noite de dez minutos e tanta confusão foi saudado com alegria e muito grito. Mas tudo isso mostrava o mais profundo mistério, um misticismo de grandes e graves proporções e que ninguém sabia explicar direito.

Logo vieram os questionamentos, os debates. Naquela noite recebemos um visita inesperada de um senhor a quem minha mãe e a maioria de nossos amigos de familia devotavam o mais profundo horror pois era ele "médium espírita" e freqüentava sessões de materialização de seres mortos. Isso para uma família católica, na década de 1950, gerava, num imenso transtorno, uma contrariedade aos costumes da sociedade ainda vivendo o espírito vitoriano do pudor e religiosidade cristã. No entanto em mim se aguçava, com mais força, a curiosidade por coisas do além.

O "medium espírita", pessoa de agradável compleição agia de forma muito engraçada. Muito alto e absolutamente calvo, a quem chamavam Comandante Rafael, depois de algum tempo de perturbação pois falava muito e era do tipo inconsequente, acabou por desalinhar a " trama mais terrível que se perpretava na Igreja Católica," a aparição da Virgem de Fátima. Contou a história, evidentemente a seu modo, mas para mim foi o mais impressionante dos relatos até então feitos. Enquanto falava sentia-me com a respiração ofegante, como se estivesse participando da história e com o mais profundo sentimento de respeito e reverência. Embora seu relato fosse jocoso e irônico, no meu intimo sabia que algo de verdade ali existia. O êxtase e o enlevo se paralelizavam quando então vi, ao longe, sobre os ombros dele, lá na porta da cozinha, uma nuvem violeta se mexendo. Meu coração disparou diante dessa estranha nuvem, mas notei que ninguém via nada. Acreditei estar tendo algum sintoma de loucura e fechei os olhos, enquanto o Comandante Rafael continuava a sua arenga. Ainda temeroso abri os olhos novamente e vi, com absoluta clareza, um lindo rosto de mulher com cabelos loiros e olhos verdes numa expressão de bondade que me pareceu “infinita”. Ela estava ali, acima dos ombros do "medium" tagarela. Arregalei tanto os olhos que o Comandante não se conteve e perguntou:

- Que há, meu filho, por acaso tenho cara de Nossa Senhora.?

O riso imbecilizado e coletivo foi um tapa no meu rosto, fazendo-me amarrar a cara e fechar os olhos. Para minha felicidade logo continuou a falar, mas a Senhora não estava mais ali. Porém sentia por dentro uma felicidade estranha, pois meus olhos que a terra há de comer tinham visto um rosto muito belo, um sorriso purissimo e uns olhos amendoados e verdes que jamais poderiam ser esquecidos. Nunca questionei-me se era Santa ou Mãe de Deus. Simplesmente uma belíssima mulher.

Lógico que esse segundo acontecimento foi mais forte que o primeiro, porque nele estava contida a lei fundamental da natureza terrena, como mais tarde vim a saber em questões de metafisica: a Lei do Afeto e do Amor. A partir dali, principalmente nas aulas e conversas sobre catolicismo, comecei a indagar porque uma mulher como ela, mãe de Cristo, iria aparecer para meninos comuns, aparentemente pobres? Afinal o que diria a eles de tão importante? Mas ninguém me respondia senão por delírios ou rompantes de religiosidade. Durante muito tempo guardei a imagem da Senhora como a mais preciosa relíquia da minha memória infantil e pedia, em orações para que um dia pudesse saber se a imagem que vira era dela mesmo. Se não, quem seria.? E mesmo, por que tal fato acontecera para mim? À medida que o tempo foi passando fui ficando triste pois as interrogações intelectuais começaram a ocorrer e não conseguia resposta. Em verdade não podia conversar com ninguém o que tinha visto pois, claro, seria considerado louco. Esse foi um segredo que tive que guardar.

Tais impressões marcaram a primeira fase da infância e se mantinham firmes no inicio da adolescência. Agora, a idade registrada no meu computador biologico era de 14 anos, uma idade em que os sonhos e as fantasias começam a ceder lugar a uma estranha loucura objetiva que é de viver os valores da vida no plano das emoções. Tudo nesse período é sensação, prazer, e ainda vejo na lembrança a alegria dos preparativos, da viagem, do carro de meu pai, da estrada que duas horas após me faria atravessar a porteira da fazenda do Vovô.

As minhas férias começaram ali, quando, há vinte kms de distância em estrada sobre linda planicie ja podia divisar a casinhola da entrada da Fazenda e o arco triangular formado por duas torres que se fechavam sobre um mata-burro. A passagem pelo Portão triangular tinha uma imponência toda especial, uma espécie de vitória sobre o passado, a cidade, as coisas artificiais. No íntimo sabia que, além do portão havia um novo tempo, e quiçá, não sei bem porque, mas sabia que havia uma outra ordem de valores, uma escala de avaliações bem diferente dos valores que conhecia.

O que se manifestava era senão a emoção mais pura a partir da porteira para dentro, quando o meu coração disparava e meu peito arfava pela alegria estranha e manifesta de estar em algo afeto à minha natureza. Foi sem dúvida o momento inicial de uma série de vivências que tinham raiz na soleira da fazenda e se arrastava pelos 12 kms de distância que a separavam da sede, numa viagem entre morros e pastos muitos bem trabalhados pela enorme energia física do vovô. Não raro encontrávamos, logo depois da entrada, o velho, ou dirigindo um trator, ou comandando uma tropa de fiscalização e preservação dos pastos, dos solos, dos piquetes e das demais coisas muito próprias da área rural

A passagem através desse chão de terra por 12 km entre árvores, eucaliptos, ou pinheiros, era singularmente bela. Ali começava a cerimônia de abertura de um tempo feliz, onde o carro do meu pai ziguezagueava nas curvas e se mantinha firme entre os pastos verdes. Lembro-me do declive que levava o carro a passar sobre um riachinho onde a água muito clara ralava sobre as pedras formando uma ponte natural. Logo se seguia um aclive grande e ao final, ao curvar-se a estrada para a direita, via-se o espetáculo maravilhoso da entrada da sede. Duas torres imensas de pedra situavam-se como colunas em cujo centro se dava a entrada principal da cidadela e, a partir dali, até a casa do vovô havia um 1.000 metros de baias e estábulos para cavalos puro-sangue, além de currais de aspecto limpo e cheiroso, onde as vacas eram ordenhadas para fornecer o leite e os derivados, não apenas para a sede da fazenda, mas para todos os habitantes. À direita, uma farmácia completa, uma escola para os colonos e um cineminha para a alegria geral. À esquerda, a casa do vovô, um grande chalé no mais autêntico estilo colonial espanhol.

Quem chegava de fora não podia acreditar que existisse dentro daquele "Mosteiro" uma vida tão intensa onde se misturavam os valores da natureza com os valores de um viver saudável incrivelmente distanciado das lides diárias das grandes cidades. O vovô sempre fez questão de manter o mais puro apreço a um sistema incorruptível e inquestionavelmente atípico, onde os funcionários e seus filhos viviam e cresciam à sombra de um igualdade inabalável de trabalho e cujo exemplo era dado por ele mesmo, inconstestavelmente um líder rural, com um mando carismático, sem demagogia. Soube com providencial genialidade estabelecer os colonos em casas construídas por eles próprios, em áreas delimitadas onde, depois de algum tempo de assentamento, lhes era titulada a terra. Uma coisa o vovô possuía e que nos legou, e eu pelo menos aprendi com ele mais ainda nessas férias: a não ter medo. Jamais teve medo - pelo menos o medo que me era conhecido - de ganhar ou perder alguma coisa, incluindo bens móveis e imóveis, e segundo diziam, sua propria vida. Por isso nunca foi traído e nunca se comentou dele ou sobre ele qualquer tipo de maldade, sujeira ou indecência. Ao contrario sabe-se - eu mesmo presenciei a cena - que quando morreu a fazenda foi partida por um sulco de erosão em meio a um estrondo que parecia uma revolta da natureza contra o fim físico do velho. Até hoje o fato do estrondo e da erosão é comentada, ainda mais porque essa região não é, pela natureza geológica e localização geográfica, sujeita a esse tipo de evento. Mas para mim não foi novidade alguma, pois já sabia de antemão os acontecimentos desse porvir, de sorte que apenas confirmou o que sabia.

Afinal, tudo estava pronto para a cerimonia de iniciação. O templo da Grande Mãe Natureza estava belamente preparado pelas mãos sábias e valorosas do Vovô, e os elementos que compunham o cenário dessa cerimônia já estavam dispostos, me recepcionando. A cena estava pronta e o pano estava aberto. As doze pancadas do Templo do Sol soaram quando chegamos a sede da Fazenda e eu respirei o ar puro da vida. Eram meio-dia em ponto e isso nunca me esquecerei pois esta é a hora do inicio dos trabalhos sobre as operações da natureza.