A Chaga
por Carlos Hollanda

- Dona Noca, aquele moço que deixei ali no portão acaba de chegar e está procurando uma pousada. A senhora por acaso ainda tem um quarto vago? Disse a ele que talvez não tivesse, tentei fazê-lo desistir, mas ele é bem teimoso. Não fui com a cara dele, sabe? Não parece boa gente, com aquele brinquinho na orelha e aquele cabelinho espetado...

A tagarelagem era de seu Epaminondas Siqueira, dono do bar do vilarejo. Arari situava-se na divisa sul da Bahia. Muitos brigavam dizendo que ali já era território pertencente a Minas Gerais. O local era bonito, apesar de muito rústico. Às margens do rio São Francisco, cerca de seis horas de carro até Brasília, costumava receber visitas de políticos em época de eleição. Evidentemente a fonte dos presentes e agrados oferecidos aos moradores secava de imediato em todo novembro de ano eleitoral. Mas voltando ao seu Epaminondas, ele era conhecido por sua ranzinzice. Dona Noca, provavelmente a moradora mais antiga da região, já acostumada com as atitudes do velho amigo, deu de ombros. Forte, ela não aparentava os oitenta e quatro anos vividos com intensidade e, conforme suas próprias palavras, “com muito gosto”. Noca era um referencial para as pessoas de Arari. Muitas vezes agia como verdadeira juíza de pequenas causas, como quando havia um conflito qualquer provocado por excesso de pinga. Noca também era a parteira, respeitadíssima por seu dom de trazer quase toda a população de Arari ao mundo, mas também por confortá-los na hora da morte. Sim, Noca enterrou muita gente que nasceu depois dela. Parecia ser de ferro, a velha. Ninguém parecia crer que ela morreria algum dia.

- Deixa o homem entrar, Epaminondas – disse ela com um sorriso suave estampado no rosto sábio e com os dentes naturais curiosamente bem conservados. Epaminondas acedeu com a cabeça, embora torcendo o nariz um pouco contrariado.

O homem devia ter uns 25 anos, não era bonito, mas também não era feio. Não era alto, mas também não era baixo. Um pouco forte, parecia alguém que trabalhava no campo, mas suas mãos e seu rosto denunciavam uma vida de homem da cidade. Dona Noca fitou-o longamente, deixando-o um tanto embaraçado. Pediu-lhe que se sentasse.

- Mariana! – gritou chamando uma bela moça de seus dezoito anos que chegou correndo um pouco esbaforida.

- Tô aqui, dona Noca – ela lança um olhar surpreso ao homem sentado à sua frente.

- Vai arrumar a cama do quarto que ficou vago ontem. Esse moço vai ficar uns dias aqui. Vai, anda, menina, não fica olhando não!

Ivan era o nome do forasteiro. Parecia estar nervoso, fugindo de alguma coisa. Noca perguntara-lhe de onde viera. Sua resposta não convenceu pelo sotaque. Dissera ter vivido em Porto Alegre por toda a vida, quando um leve toque do jeito carioca de falar denunciava sutilmente a mentira. A velha senhora nada comentou. Apenas deu de ombros e olhou de rabo-de-olho, como era de hábito.

Ivan sentiu-se incomodado com a aura de segurança que a velhota passava. Estava habituado a ser temido e detestava estar fingindo. Mas desta vez não havia saída. Era preciso despistar. Acabara de fugir de uma grande operação policial de captura que o seguiu até o sul de Minas. Há dois dias parecia tê-los ludibriado, o que o fez crer estar razoavelmente seguro. Estava cansado, mas adiantara-se em função de toda a correria de carro e até de caminhão. Tinha pelo menos uns dois dias a mais para descansar e depois seguir viagem. Ficou de encontrar-se ali mesmo em Arari com um contato que o levaria para a Colômbia. Sairiam primeiro de caminhonete, depois pegariam um monomotor. Ivan era peça chave no tráfico de cocaína. Mantinha o abastecimento de alguns morros controlados pelo crime organizado no Rio de Janeiro. Já estava sentindo saudades do medo estampado nos olhos dos moradores da favela e da idolatria que alguns rapazes tinham por ele. Isso sem falar nas mulheres. Ele tinha quem queria ter. Não interessava se era virgem, casada, se era noiva de quem fosse. Mulher que não queria nada com ele perdia uma pessoa da família por semana. Ela escolhia: ou fazia o que ele queria ou o pai ou o irmão ia comer capim pela raiz. Ele tinha poder e o melhor de tudo era que acabava sendo tido como um benfeitor para a comunidade. Gostava de incitar os adolescentes e crianças contra qualquer pessoa que não morasse no morro e, é claro, recompensava os “aviões”, que levavam e traziam o que fosse preciso. Por estes era tido como herói. Muitas crianças achavam o máximo serem amigas de um amigo dele. Ser uma celebridade, mesmo que apenas para aquelas pessoas era-lhe muito aprazível.

Em sua cabeça tinha razões suficientes para ser o que era e como era. Viveu a infância toda num barraco feito de eucatex, sem luz, gás e água. O pai, alcoólatra, batia nele e na mãe quase toda semana. A mãe, por sua vez, não estava muito interessada em sair daquela vida. Também bebia muito e se lamentava de ter tido um filho que só dava trabalho. Ivan quase morreu num desabamento durante uma chuva de fevereiro. E teria ido pro beleléu se não fosse o corpo da mãe que devido à posição em que estava formou uma bolha de ar até os moradores conseguirem desenterrá-lo. Teria virado indigente se não se tornasse leva-e-traz da bandidagem local. Com eles aprendeu tudo o que sabia. Inclusive como ser respeitado. E se saiu muito bem na prova: quatro tiros na cabeça de um moleque que havia tirado sarro com sua cara. Com dezesseis anos já era temido e respeitado por causa do tal evento. Gostou da sensação e continuou impondo-se pela força. Com o tempo já era um dos líderes mais poderosos e controlava vários pontos de venda de drogas. Costumava importar armas pesadas diretamente do estrangeiro por intermédio de um oficial militar corrupto.

Mas algum filho da puta o havia denunciado. Ah, se ele o pegasse! Ivan imaginava com detalhes como iria torturar o infeliz, com palitos de bambu cheios de pólvora enfiados num dos olhos e coisas do tipo. Felizmente todo um esquema de fuga havia sido montado para o caso de algo assim acontecer. A polícia nunca poderia pegá-lo, até porque ele controlava vários policiais que estavam envolvidos na operação de captura. Mesmo assim era necessário sair de cena por algumas semanas. Ele aproveitaria e traria mais armas para o pessoal da boca.

Mariana retorna ainda olhando fixamente para Ivan. Sem mulher há algum tempo, começou a fantasiar o que poderia fazer com aquela guria. “Ela é bem gostosinha” – murmurou sem que ninguém pudesse ouvir ao fechar a porta do quarto. Pelo menos assim pensou.

A lua quase cheia despontava luminosa pelas folhagens do arvoredo que circundava a propriedade de dona Noca. Ivan, que não conseguia dormir, notou uma sombra passar pela janela. Foi olhar e foi subitamente tomado por uma boa quantidade de testosterona no organismo. Lá estava Mariana andando calmamente na margem do riacho indo em direção à mata. Ela tinha uma estranha ferida no calcanhar, como se fosse uma dentada de cachorro. Estava sangrando. Gozado. Não notara isso quando a viu pela primeira vez e olha que ela estava de chinelos. Será que tinha se machucado naquela hora? Não pensou mais nisso. Suando, pulou pela janela e saiu sorrateiramente ao encalço da jovem. Não queria que nem ela nem ninguém o ouvisse. Contudo, vários metros antes que a alcançasse, ela, sem olhar para trás, sussurra: “Então você me acha ‘gostosinha’, hein!” Ivan estacou. Como ela poderia tê-lo ouvido se quando entrara no quarto falara tão baixo? Pior ainda: como poderia tê-lo ouvido agora, se ele, conhecido por ser silencioso e traiçoeiro como uma cobra, andava sem fazer o menor barulho?

- Você está com cheiro de quem me quer. Você me quer, Ivan? Quer o que eu tenho aqui embaixo da saia? Estou sentindo seu cheiro de homem. Você não sente o meu?

Ivan mal podia acreditar na intensidade de seu desejo por aquela “caipira”. Não acreditava também no que ouvia. Ela não era, afinal, tão boba quanto as garotinhas de sua idade naquele local. Acelerou o passo. A menina ficou impassível, ansiosa pelo contato, lambendo os lábios. Porém, antes que pudesse encostar-lhe as mãos, a voz rascante de dona Noca saiu de trás de uns arbustos:

- Se eu fosse você, não me arriscaria a fazer o que está pensando, moço. Mariana, vai andando, vai. Deixa que eu cuido do moço aqui.

Mariana lança um olhar fulminante em direção à velha, que retribuiu à altura. Ivan por um momento pensou ter visto os olhos de ambas brilharem no escuro, mas só por um momento. Mariana pôs-se a correr pela mata até que não podia mais ser vista. Sem entender absolutamente nada, o jovem, já pensando em esganar a velha, volta-se e começa a balbuciar algum impropério, quando percebe-se inexplicavelmente sozinho. Um pouco tonto, pensa em seguir a moça pelo meio do mato, mas os uivos de alguns animais e o som de luta feroz o fizeram desistir e correr de volta para a pensão.

Ele vai em direção à janela para entrar novamente sem ser visto, mas dona Noca e seu Epaminondas já estavam de plantão no caminho.

- Gente – gagueja trêmulo – aquela menina entrou no mato e eu ouvi uns barulhos estranhos! Acho que tem onça ou algum bicho pior por ali! Ela pode ter sido atacada!

- E você quer que a gente chame a polícia, seu moço? – perguntou irônico Epaminondas.

- Polícia? Não, mas vocês não vão fazer nada? – os dois olhavam fixamente para o incrédulo bandidão, outrora tão corajoso e macho, com um sorrisinho mal disfarçado.

- Ah, é assim, né? Então fodam-se vocês dois! Foda-se este lugar inteiro, todo mundo! Vou embora daqui amanhã mesmo e se alguém tentar entrar no meu quarto agora vai levar azeitona nos cornos! Tô falando sério!

O dia amanhece e Ivan acorda com uma baita dor de cabeça. Sai devagar do quarto e olha para os dois lados desconfiado. Leva consigo seu revólver 38 e uma faca de caça, escondendo as armas na cintura sob a camisa larga que vestiu.

- Bom dia, seu moço – alguns moradores do local já estavam tomando seu café na mesinha posta na entrada da pensão. Tentavam ser simpáticos com o estranho visitante, mas percebem o ar confuso e ao mesmo tempo agressivo do jovem.

Ivan pensa em perguntar se eles viram ou ouviram alguma coisa incomum durante a noite, mas é interrompido pela visão de Mariana, sem nenhum arranhão, exceto aquela ferida esquisita que vira em seu calcanhar. Agora não mais sangrava, parecia estar em carne viva. Dona Noca chega por trás e o cutuca no ombro. Ivan se assusta, pois não percebera sua aproximação.

- Calma moço! O senhor quer tomar café? – pergunta com total naturalidade.

Sem entender muita coisa e já ficando sem paciência por estar sendo feito de palhaço por aquela gente, Ivan pega o pão da mão da velha e senta numa mesa do canto. Os outros hóspedes estranham um pouco, mas deixam-no em paz.

Louco para deixar aquele lugar, Ivan tenta de todo jeito encontrar um telefone para falar com aquele que o tiraria dali. Sem chance. Não havia telefone naquele cafundó. E ele ainda tinha que se dar por feliz por haver luz de lampião e casas de alvenaria.

Naquele dia Ivan não almoça e passa todo o tempo trancado em seu quarto. Observa tudo pela janela, preparando-se para algum tipo de armadilha. Ficara realmente impressionado com o que aconteceu. Em nenhuma de suas canalhices e atrocidades havia passado por algo assim. Alguém só podia estar querendo sacaneá-lo, mas eles iam ver só.

Anoitecia em Arari. A lua estava completamente cheia. A noite estava iluminada e os hormônios agitados em todas as pessoas do vilarejo. Ivan, muito tenso e assustado, já estava pronto para furar qualquer um que cruzasse aquela porta. Qualquer um, pensava ele, mas Mariana não era qualquer um. Ela entra sem bater e ele, boquiaberto, deixa o revólver cair. Só consegue olhar para seu olhos e para a ferida em seu calcanhar num misto de transe hipnótico com total excitação sexual. A ferida lentamente torna a sangrar como na noite anterior, só que é um sangue quase negro, viscoso e malcheiroso. Isso não importava mais naquela altura do campeonato. A sensação era indescritível. Algo meio prazer, meio desespero, meio tesão, meio horror. Mariana num único salto vai da porta à janela e sai correndo freneticamente pela noite. Ivan se abaixa, pega o revólver que caíra e corre atrás com todas as suas forças. Ele entra na mata fechada, escura como breu. De repente surge dona Noca, novamente sem que ele conseguisse perceber. Antes que ela pudesse impedi-lo de ir adiante, enfurecido, salta sobre ela e dá-lhe um sem número de facadas.

- Morre, velha filha da puta! Morre, sua vaca!

Em passos ofegantes seu Epaminondas chega e vê que é tarde demais.

Seu burro chucro filho duma égua vagabunda! Tu acabou de matar a única pessoa que podia evitar uma desgraça. Agora que se dane! Eu vou me embora! E você, seu desgraçado, vá pro diabo que te carregue! E pode ter certeza de que ele vai carregar sem demora!

Ivan aponta o revólver para o velho, mas antes de apertar o gatilho Mariana surge do nada e numa posição que mais lembrava um animal raivoso pula em cima de seu peito. Inicialmente ele pensa que toda aquela situação absurda resultaria num sexo selvagem e sádico próximo ao cadáver da velha que por muitos anos cuidara de Mariana. Ledo engano. Ante o olhar apavorado de Ivan e do velho Epaminondas, a menina tão delicada enrubesce, suas feições se deformam suas unhas crescem e seu corpo é tomado por pêlos grossos como piaçava. Ivan tenta livrar-se. Forte, lança com as pernas aquilo que fora apenas uma menina há alguns segundos. À sua frente agora estava um bicho que jamais vira nem na televisão. A boca arreganhada e os dentes ameaçadores deixavam cair uma baba sanguinolenta e fétida. Ivan não teve dúvidas: treinado que estava em situações críticas, disparou todas as balas do revólver na criatura, que cambaleou e rosnou, ou melhor, rugiu. Não adiantou nada. A coisa estava ainda maior em tamanho e em força. Ivan não teve chance alguma. Nos longos segundos em que era devorado rezava para desfalecer, o que não acontecia. Mesmo tendo suas entranhas arrancadas a dentadas, não perdia a consciência. Era como se não pudesse morrer enquanto aquela besta dos infernos não terminasse de fazê-lo passar por tão terrível suplício. Com a visão turva e urrando devido à dor inimaginável, ele ouve a voz imperiosa de dona Noca:

- Sai, Mariana, sai!

Sua última visão é a velha ensangüentada olhando-o e dizendo: “eu avisei”.

- Vá se foder... você morreu, velha desgraçada... – sua cabeça pendeu para o lado e suspirou pela última vez.

É manhã em Arari. Seu Epaminondas vem chegando junto com um moço bem apessoado da cidade.

- Dona Noca, este moço procura por um tal de Ivan. A senhora tem algum hóspede com este nome aqui?

A velha chega no portão um pouco trôpega, com um braço enfaixado e com um corte que parecia ser profundo na base do pescoço. Estava cicatrizando, mas teria sido digno de um funeral, pois cortara a jugular. O estranho olhou tudo aquilo, sentiu-se nauseado por um momento, mas conteve-se.

- Moço, não tem nenhum Ivan por aqui.

- Tudo bem. Ele ainda não deve ter chegado. A senhora tem um quarto vago?

Nesse ínterim, o homem nota a chegada de uma menina de uns dezoito anos, muito jeitosinha que o olhava fixamente. De algum modo ela despertou-lhe um intenso desejo e ambos continuaram se fitando por segundos intermináveis. Notou também que em seu calcanhar havia uma chaga da qual escorria um filete de sangue.

- Mariana, vai pra dentro, vai! Tem muita coisa pra fazer. Não fica aí parada olhando o moço!

- Olha, senhora – disse o homem – eu acho que vou pernoitar aqui. Talvez encontre meu amigo amanhã. Quem sabe ele se atrasou?

- É... – disse seu Epaminondas – quem sabe...