O Confessor Secular
por Rogério Suarez Barbosa Lima

Decididamente, é desanimador — para dizer o menos — ver Wilson envolto nessa fumaça fria, irreal de filme de terror, reclinado na cama do hospital com um tubo enfiado no nariz. O olhar súplice, os lábios arqueados e sem cor e uma desoladora mudez me causam a estranha impressão de estar diante de um retrato, máscara emaciada e espectral a fitar-me do fundo apergaminhado de um grotesco passaporte, um visto para o outro mundo. Fujo do quarto, indiferente ao que venham a pensar sobre minha deserção. Azar, não posso fazer nada mesmo — os médicos ('o caranguejo é inclemente com quem fuma demais', disseram) já passaram a bola para o Divino Humorista. Trago, porém, a consciência tranqüila, pois sempre lhe tive apreço e o demonstrei em vida nas muitas vezes em que precisou de mim, como nesse recente e fatídico janeiro de 1985, quando, em meio ao aguaceiro que quase sepultou a cidade, pediu-me para acompanhá-lo ao cemitério do Caju. Não lhe exigi explicações, nem indaguei os motivos. Simplesmente, fui: amigo é assim. Confesso, no entanto, que fiquei abismado ao vê-lo aproximar-se de um jazigo, conferir cuidadosamente os dados transcritos na pedra e despejar uma escarrada pegajosa sobre o nome do morto. A baba ainda pendia de uma letra de metal gravada no mármore negro, quando saímos dali, eu impressionado com tamanho destempero. Confiou-me — a mim, companheiro fiel de longos invernos — o segredo guardado havia um quarto de século: com três anos de casados, a mulher o traíra com aquele cafajeste. Esperou mais vinte para se vingar. No dia anterior, lendo o obituário do jornal, dera com o nome do canalha num anúncio de sétimo dia. Os três haviam sido colegas na Receita Federal, saíam juntos, divertiam-se e, como sucede desde que o mundo é mundo, ele só foi perceber o arranjo ao surpreendê-los em comprometedora camaradagem na biblioteca do prédio onde trabalhavam. Deu meia dúzia de sopapos na mulher (do rival, evitou aproximar-se; o homem era remador do Flamengo e notório arruaceiro), dormiu alguns dias no sofá da sala e, como a adúltera se fizera humilde e tivesse pedido transferência para longe da sede, acabou por se conformar. Não que lhe houvessse perdoado, mas tinham dois filhos para criar (imaginei que pelo menos um poderia não ser seu, mas calei-me), o sogro contribuía substancialmente para as despesas da casa e, enfim, o tempo é bom conselheiro e vai arrumando as coisas a seu modo. Tudo isso, soube-o no botequim para onde arrastei o desventurado homem das guampas, após derrubarmos incontáveis doses de conhaque. Desde rapazes, no colégio, fui seu confessor secular. A aventura mais banal que protagonizasse, num desvão sórdido de um beco escuro qualquer, rendia um minucioso relatório, saboreado entre goles de cerveja e comentários irreverentes ou pretensiosos, a depender da disposição de ânimo de cada um. Tais confidências constituíam, a bem dizer, o prazer mais significativo que aqueles duvidosos sucessos lhe davam. Quantas vigílias penei aguardando o regresso do bravo guerreiro. Embora tenha tido a delicadeza de disfarçar, senti-me ultrajado com a desfaçatez: esconder de mim, seu melhor amigo, confidente exclusivo um drama pungente, um segredo cabeludo daqueles. E quis saber mais; exigi detalhes, se possível, escabrosos. Descompus o galã, como se fosse eu o marido enganado (na verdade, me intrigava o fato de um atleta bem-parecido como o falecido se interessar por uma saloia gordalhufa — ali tinha mistério, e eu ansiava por conhecer as motivações de tão implausível parceria). Ele deve ter notado algo de estranho no meu entusiasmo, pois interrompeu as lamúrias e passou a se desculpar pelo que chamou de 'deslealdade com o irmão camarada'. Talvez à guisa de compensação, narrou-me outra façanha de arrepiar os cabelos, que eu também ignorava. Não só ignorava, como jamais poderia supor perpetrada por um camisolão, um canastrão inofensivo como Wilson, mas que, segundo ele, contribuíra para amenizar sua dor de chifres: durante cinco anos, mantivera íntimas relações com uma criatura que conhecera num barzinho de Copacabana, num fim de tarde, durante uma rodada de chope com um cliente do interior, a quem mostrava os encantos da Zona Sul, na esperança de empurrar-lhe uns cortes de casemira encalhados por conta da canícula carioca. A moça se chamava Elis e era clara, mais pra cheinha, de cabelos negros, olhar brejeiro e jeitinho descontraído. Quando Wilson abordou-a, notou que, ao sorrir, aparecia-lhe um dente de ouro no lugar de um dos pré-molares. Mostrou-se simpática, disse ter vinte e três anos de idade e que esperava alguém, um senhor que talvez não gostasse de vê-lo à sua mesa: 'deixe o telefone que eu ligo depois'. Wilson dispensou o cliente, providenciou-lhe um táxi e ficou bestando pelas redondezas, cogitando se se tratava de uma profissional. 'Vi chegar o felizardo, um mulato forte com bigodes e uma cabeleira que lembravam Dorival Caymmi; poderia ter a minha idade, um pouco mais. Quando saíram, aguardei dez minutos e me mandei também'. Três dias depois, como a garota não telefonasse, Wilson voltou ao bar e deparou-se com ela instalada no mesmo posto. Desta vez, foi mais receptiva: o amigo avisara por telefone que ficaria retido no trabalho até mais tarde e pedira que ela não o esperasse. De modo que poderiam conversar com calma, conhecerem-se melhor. Wilson sentiu-se à vontade, riu, contou piadas, fez-se íntimo, chamou o outro de 'Caymmi', tomou uísque, contrariando seus hábitos, e, desinibido (normalmente, era um bicho-do-mato, acanhado, inábil no trato com mulheres), tomou coragem e jurou que era tarado por ela: 'no dia de nosso primeiro encontro, cheguei em casa e não resisti; fui pro banheiro e fiz um negócio lá, pensando em você'. Ela quis saber o que a esposa achava disso e ele respondeu que pouco se importava, já que não tinha mais nada com ela na cama. Procurou, ávido, a mão da garota, acariciou-a, muito terno, muito comovido. Elis não se fez de rogada e cochichou-lhe, sapeca: 'Hoje, você não vai precisar fazer bobagem sozinho'. Isso, dito assim de chofre, causou fortíssimo efeito naquele homem permeável, sempre descontente consigo mesmo. A revelação equivaleu a uma epifania. É importante acrescentar que, a par da timidez, Wilson era feio, acinzentado como o sujeito do anúncio de remédio contra a asma, com um bigodinho escroto, o cabelo crespo, que vinha quase até as sobrancelhas, e, pra mal dos pecados, mirrado e pisando pra dentro que nem papagaio. Tais atributos, mais a absoluta falta de iniciativa e nenhum poder de observação, definitivamente não o credenciavam a conquistador. Longe disso, recalcavam nele um invencível complexo de inferioridade. Às vezes, supondo vingar-se da esposa e por necessidade de desafogo, pagava a uma aventureira qualquer que nem lhe dizia o nome. Daí, a receptividade de Elis — que se esmerou em agradar-lhe ao máximo no motel a que foram em seguida ao encontro — tê-lo enchido de arroubos juvenis, de esperança de ter, finalmente, encontrado uma parceira compatível com seus ideais românticos, que teimava em cultivar, pouco se lixando para o físico desfavorável. O fato é que se impunha preservar, a qualquer custo, o tesouro que lhe caíra nas mãos. E toca a presenteá-la, mimá-la, habituá-la mal. Elis o recompensava com dengos que ele jamais experimentara (a mulher oficial, mesmo nos tempos de namoro e durante a lua-de-mel, tinha se portado de forma indiferente, antipática até, se ele sugeria um carinho diferente). No início do relacionamento, Wilson e Elis buscavam-se com freqüência; em horários diurnos, pois ele, afinal de contas, era homem casado e ela, de certo modo, tinha obrigações com seu antigo protetor (por esse tempo, o tipo andava sumido do cenário), a quem chamavam de 'Caymmi pra cá', 'Caymmi pra lá', muito cúmplices, muito safados. Eram escapadas a Paquetá, com direito a charrete, de mãos dadas como namorados, passeios furtivos ao Recreio dos Bandeirantes, uma visita ao Pão de Açucar, que ele — nascido em Botafogo — só conhecia de vista, tudo entremeado com longas e românticas matinês em motéis. Os cuidados de Elis para fisgar o novo admirador levaram-na a metê-lo casa a dentro, em intimidade com seus guardados; com o filho, produto de um mau-passo precoce: um pirralho com o nariz permanentemente a escorrer, que insistia em esfregar nas calças do novo patrono. E tome beijos melosos, telegramas no aniversário, bilhetinhos piegas redigidos com letra aperfeiçoada em cadernos de caligrafia, num português hediondo. Tudo isso parecia adorável a Wilson, e seu coração cada vez mais fugia para ela. Foi um período único em sua vida; sentia emoções novas, e os conhecidos diziam de seu constante sorriso, que ele 'andava abobalhado'. Retribuía aqueles cuidados surpreendendo-a com sortidas e generosas sacolas de mantimentos, que mandava entregar na residência da amada, perfumes franceses, ricos calçados, que escolhiam qual pombinhos arrulhando nos sofanetes das sapatarias, as pernas bem coladas. Eventualmente, corria a afagá-la com uma lembrancinha especial, se a notava amuada. Sim, porque o namoro já durava, então, três anos, e ela começava a alternar reações de júbilo com longos silêncios que não sabia explicar, apesar do desvelo permanente de Wilson. Tinha mesmo, por vezes, palavras rudes e impacientava-se com seu assédio. Uma tarde, no motel, nem bem haviam entrado, ela pôs-se a xingar baixinho, lamentar que 'tava farta daquela vida', e pedira, por telefone, um táxi, abandonando-o, de cuecas, no quarto, não sem antes reclamar o dinheiro da corrida, que 'era só o que faltava ela ter que pagar pelos sacrifícios que fazia para agradar-lhe'. Um pouco mais e já não conseguia disfarçar o desinteresse, quase a dizer que nunca tivera desejo; jamais sentira coisa alguma; que lhe dera o corpo, mas não o coração; que suportara tudo porque precisava de ajuda financeira, mas que não dava para tolerar por muito tempo um homem pegajoso, molenga e fácil, ainda que isso lhe custasse o precioso auxílio. A resistência dela a um aconchego mais intenso já ameaçava tornar-se ridícula. Só Wilson não queria ver. Desprezado, tentava compensar com mais presentinhos, agrados ... mas, que diabo! Tinha um emprego bom, porém era assalariado. Havia, por certo, restrições a considerar e obrigações em casa, também: três bocas a sustentar; sem falar que as dívidas cresciam assustadoramente. À noite, trancado no banheiro, o eterno cigarrinho no canto da boca, buscava explicações para aqueles humores, senão uma inspiração para reconquistar sua Elisinha. Fez-lhe versos, que ela esqueceu sobre o balcão da Slopper, emburrada por causa de uma bijuteria que julgou uma afronta a seu bom-gosto. Mais de uma vez, deu-lhe dinheiro vivo, que ela atirou na bolsa sem dizer sequer uma palavra de agradecimento. Fugia, faltava aos encontros, não respondia aos recados. Uma tarde, vira-a, muito serelepe, de braços dados com um rapagão: 'É o primo Betinho, da Bahia — disse ela depois —; tá de passagem pra São Paulo'. E veio o pior, o golpe mortal: Elis fez questão de revelar que jamais deixara de se encontrar com Caymmi (isso explicava a ansiedade que demonstrava em certas ocasiões; a pressa em livrar-se dele; as simulações mal representadas, que ele preferia não notar). Durante algum tempo, ela conduzira sua dupla militância com alguma habilidade. Agora, resolvera hostilizá-lo de vez, pois atrapalhava os novos planos. Wilson queixou-se daquele desprezo brutal; o que fizera ele de errado? Quis saber se era um rompimento definitivo. Portava-se como um pedinte e como tal foi escorraçado. Elis escancarou: Caymmi tinha experimentado dificuldades em seu comércio, mas tudo voltara ao nomal e ele queria seu brinquedo de volta e com exclusividade. E, como não se importava em colaborar, não tinha família e sobrava dinheiro no fim do mês, a coisa se arranjava assim dali em diante. Wilson que acatasse a decisão: não tinha saída. Um belo dia, veio a pá de cal: após vários plantões infrutíferos na esquina da rua onde morava a ex-amante, Wilson decide dar uma incerta no barzinho de Copacabana e a vê de chamegos com Caymmi. Ao reparar na presença do intruso, o mulatão mete-lhe o dedo no nariz e ameaça: 'Se incomodar de novo minha amiga, vai apanhar muito nessa cara de lambisgóia. Você parece doente, ô nanico! Procura um médico pra curar esse teu mau hálito, ô muquirana!'. O coitado saiu dali mudo, com o rabo entre as pernas ... Achei aquilo torpe, humilhante, e odiei o boçalão. Wilson, após longo silêncio, pediu outro conhaque, acendeu um cigarro e continuou: 'Você percebe como durante todo o tempo eu dividia os favores da sirigaita com o cara, sem que ele tivesse o compromisso de financiá-la? Quem sabe o garotão, o tal primo da Bahia, outros mais comessem na mesma gamela? Eu, o mantenedor-chifrudo fui sempre o traído. Ela só queria o meu patrocínio. Era corno pela segunda vez ... um cinqüentão, mais velho do que eu. Nunca deixei de ser corno. É minha vocação: ser um corno reles! Meu amigo, as mulheres são impiedosas! Essa piranha, mais do que minha mulher oficial, me deu esperanças e me iludiu. A lembrança do que foi e a ilusão do que poderia ter sido mas não foi, deixaram em mim um gosto de fel. Também, hoje, pouco me interessa. Meu câncer de pulmão tá bem adiantadinho, o sacana. Os médicos me dão, no máximo, seis meses: é aguardar mais um pouco e me livro dessa raça. Pelo menos essa informação te dou em primeira mão ... tava te devendo. Peço perdão por ter escondido as outras coisas; você não merece que eu te magoe. No mais, que se dane. Só lamento não estar por aí quando o cabeça-branca bater as botas. Vou embarcar antes, senão iria lá cuspir na cova do filho-da-mãe'. Ainda pensei em dizer a Wilson que esse negócio de amor cego, paixão, etc ... é tudo conversa fiada. Essas coisas não passam de atividades cerebrais e alterações do fluxo sangüíneo. Às vezes depende também de quanto o cara bebeu. Pensei, mas não disse ... não tenho certeza de mais nada. Resolvi, isto sim, pedir a conta. Deixamos o bar à noitinha, bem chumbados. Os intermináveis cigarros e a umidade faziam Wilson tossir que nem um condenado. Deixei-o em frente a sua casa e fui cozer minha própria carraspana. Faz dois meses que tivemos esse encontro. Viajei a negócios e não nos vimos desde então. Agora, aqui nesta casa de saúde, que se pretende de Primeiro Mundo, neste spa de araque (não sei a quem querem enganar com essa musiquinha intolerável e tão insultante assepsia), é impossível evitar o pensamento cruel, a aflitiva constatação de que Wilson se deu mal com a patroa, se deu mal com a amante, com o cigarro e com a vida. E, se é bastante provável — como querem os médicos — que o cigarro tenha dado cabo de seus pulmões, também é lícito suspeitar que outros fatores igualmente perniciosos e traiçoeiros tenham contribuído para eliminá-lo da face da Terra, não se podendo excluir o firme pressuposto — como sentenciou Wilson — de que as mulheres são realmente impiedosas.