A Pracinha do Leblon
por Rogério Suarez Barbosa Lima

O Cizoca chegou a mão em concha junto ao ouvido do Camundongo e fez uma longa preleção, interrompida, aqui e ali, por indagações e efusivos gestos de assentimento por parte do interlocutor que, em seguida, pôs-se a berrar:

- Encontra-se perdido o menor Elísio...

Camundongo foi uma dessas figuras extravagantes que toda cidade cultiva e reverencia, misto de sem-teto e caixeiro-viajante, que nos idos de cinqüenta perambulava pelas praças do Rio de Janeiro mascateando miuçalhas, em meio a pilhérias sobre a própria atividade e os assuntos do momento: a versão tupiniquim daqueles

velhotes portando suíças até o meio das bochechas, encontradiços nos filmes de faroeste, apregoando as virtudes de algum bálsamo milagroso, encarapitados numa carroça mambembe atulhada de quinquilharias penduricadas por todos os cantos.

A geringonça do nosso herói, mais atrapalhada do que o abecedário chinês, consistia numa imensa caixa de madeira acoplada a um burro sem rabo, transportada pra cá e pra lá com surpreendente mobilidade, se considerado o porte franzino de seu condutor. Servia, a um só tempo, de almoxarifado e moradia a esse provecto nômade, tipo amulatado, com um carão crestado, crivado de bexigas, óculos grossos sem aro e uma voz estridente e desagradável, que anunciava suas bugigangas por meio de um arremedo de megafone que lhe potencializava o timbre argentino. Não obstante as minguadas possibilidades de tão precário equipamento sair da mudez a que parecia confinado, o som do instrumento, dados o silêncio e a serenidade reinantes nos arredores, assumia as proporções sublimes da trombeta que, no dia do juízo final, haverá de acordar os mortos para comparecerem diante de Deus.

Por insistência do Cizoca, o locutor repetiu o aviso:

- Encontra-se perdido nesta praça o menor Elísio Castelo Branco, trajando vistosa marinheira azul-clara, de calças curtas e uma gorrinha de veludo com um pompom vermelho. Pede-se a quem o localizar o favor de conduzi-lo até este estabelecimento, onde a família aguarda ansiosa.

Espalhou, assim, aos quatro ventos as peraltices do jovem Elísio, que surgiu esbaforido, cinco minutos depois (os gaiatos à espreita), transmudado num sessentão metido em colete e terno de casimira escura e um baita guarda-chuva de castão e osso, ameaçadoramente apontado para a cara do famoso arauto, esgoelando-se convulso, abandonando a sobriedade habitual e o fraseado escorreito que o alçaram um dia à condição de líder e porta-voz da comunidade:

- Meu amigo! Elísio Castelo Branco sou eu. Veja se me dou ao desfrute de usar marinheiras, ainda mais de calças curtas, eu que jamais saí de minha casa sem paletó e gravata. Marinheira, meu senhor! ... pompom ... é a puta que o pariu!

Teve que ser contido pelos mesmos marotos que lhe prepararam a troça e levado a refrescar-se e descansar na Bibi, na esquina da Bartolomeu Mitre, ponto de encontro dos integrantes das corriolas das redondezas que lá, em agitados contubérnios, proclamavam seus ardores, confessavam seus fracassos e solucionavam suas contendas, tudo culminando, sempre em redentoras carraspanas. Saudosa Bibi, que deu origem ao Luna, que nada tinha nem teve a ver com um outro Luna, surgido muitos anos mais tarde, reduto de intelectuais e sua tripulação de cumprimenteiros, estranhos ao bairro.
Pois foi ali, naquela mesma tarde-noite, já refrescado e aquietado, que o bom Elísio, após longas negociações em que foram destacados seus dotes notáveis de orador (Tirolo chegou, mesmo, a compará-lo a Cícero e Juvenal), aceitou assumir "seus deveres para com o País" e consentiu em ser lançado candidato a presidente da República, adiantando, imediatamente seu programa de "ordem, moralidade e economia" para fazer frente à "dolorosa evidência de nossa decadência social", numa coligação estapafúrdia com um braço do partido rival, liderado pelo Hélio - este, sim, efetivamente candidato a vereador - , dono do parque de diversões situado no extremo oposto da praça, num terreno que servira, antes, de pasto para os cavalos de aluguel utilizados nas domingueiras do Jardim de Alá e, às vezes, pela rapaziada, em páreos noturnos, disputados nas redondezas. Contribuiu, deveras, para a histórica decisão o entusiasmo de Tirolo e Porfírio que, recém-chegados de São Paulo, garantiram que "a Presidente Dutra estava tomada de faixas conclamando o povo a sufragá-lo".

No dia seguinte, Hélio, num reluzente Packard Clipper conversível, levou seu Elísio - muito garboso, ajanotado - a passear pela Lagoa para verem a monumental faixa que os malandros fixaram no Corte do Cantagalo, ao lado de um reclame de Urotropina, recomendando:

"Para Presidente da República, Elísio Castelo Branco
Para Vice-Presidente, Amado Benigno".

Exultante, o velho teceu loas ao companheiro de chapa e fez um sincero e veemente comentário:

- Menino! Estou articulando para que você saia deputado pelo Distrito Federal, e, quando eu estiver no Palácio, haveremos de pôr um freio definitivo nesse getulismo depravado.

Esse íntegro cidadão, honrado trabalhador, escrupuloso chefe de família, laborioso dirigente da Liga Esportiva do Leblon, embicava então, definitiva e desafortunadamente, ladeira abaixo, no rumo dos inevitáveis contratempos que a velhice reserva para a maioria dos que chegam lá. As páginas de seu livro só podiam, agora, ser marcadas com a orelha de trás. Lamentavelmente, não somos como os chineses, que cumulam os idosos de respeito, sem o que a velhice é, de fato, uma imitação irrisória da vida.

Já o funambulesco entreteneur adotou em sua campanha para vereador um slogan pitoresco, de fazer inveja aos enéias atuais; sugestivo, esclarecedor, parecia reproduzir o mecanismo das maquinetas e engrenagens que moviam o seu parquinho:
"Hélio Lourenço Dias, o homem não pára!"

Com efeito, não parava ... de bolinar as empregadinhas que freqüentavam a espelunca, lá deixando seus parcos tostões, amealhados à custa de muita labuta, nas batotas armadas naquela mescla de circo, quermesse e bazar de prendas, batizada pomposamente de "Parque Shangai". Nem ele, nem a rapaziada que lá ia com o mesmo propósito, aproveitando-se da aglomeração, num tempo magro de gozos dessa natureza e rico de platonismos alados, diáfanos, em que, a bem da verdade, a gente matava cachorro a grito.

O fato é que o homem não parou, nem estacionou, que não é a mesma coisa, mas faz o mesmo efeito. Simplesmente morreu de um ataque cardíaco, resultado, quem sabe, de seus arroubos lascivos, que não faziam dele pior ou melhor do que qualquer um de nós.
De modo que não se elegeu; nem ele, nem o nobre Elísio, e ali se esgotou a vertente política da fauna que povoava a pracinha. Esta, penso hoje, bem poderia chamar-se "Campos Helísios", mais do que um jeu de mots, uma maneira de macaquear o logradouro congênere da Cidade-Luz e, ao mesmo tempo, prestar uma singela homenagem àquelas duas singulares personalidades, que só nos proporcionaram momentos alegres de descontração e camaradagem, naquele "lugar de delícias".

Mas não era apenas sobre política, gaiatices e libidinagens que repousavam os suportes lúdicos e mundanos da nossa deleitável pracinha, que o ilustre literato português Antero de Quental honrou com seu nome. Sei de capítulos mais formosos.

De manhã cedinho, a cupidez dos freqüentadores noturnos do parque era redimida pela inocente algazarra das crianças, com suas correrias, jogos de bolinha de gude (búlica, zepelim), a azáfama em torno do escorrega, do balanço, da gangorra e, sobretudo - no que toca aos mais crescidinhos - do banho nos laguinhos. É importante transmitir um pouco do clima, do aspecto e dos encantos do local, que a história já vai longa.

Afora as calçadas de cimento que circundavam a praça e, nos cantos, quatro canteiros gramados, o amplo terreno restante, em formato de cruz, era de terra batida, coberta com uma camada leve de areia que o vento trazia da praia. Umas poucas amendoeiras, o Criador dispôs de forma tal que não estorvassem a pelada que comia solta numa das laterais. Na outra, os pirralhos cavalgavam os aparelhos e andavam de velocípede, sob o olhar atento das mães e das babás, estas, por sua vez, na mira dos graúdos. O tesouro maior eram os laguinhos, aos quais as largas da imaginação infantil emprestavam vastidões oceânicas, e toca a mergulhar e a fazer traquinadas que em casa resultariam em desastres. Periodicamente, a Prefeitura providenciava uma limpeza para tirar o limo acumulado. Nesse recesso, a garotada que ainda não podia ir à praia sozinha, jogava botão, futebol, o diabo a quatro; diversão não faltava! E olha que não havia a televisão! Ou, talvez, por isso mesmo. Esses preciosos lagos, "pélagos profundos", ficavam junto a dois caramanchões vazados, uma base de pedra em volta, à guisa de banco, com o teto parcialmente coberto por uma treliça na qual se enroscava simpática trepadeira de pequenas flores de um rosa pálido.
Enfim, éramos venturosos usufrutuários de uma Shangri-Lá de aventuras e coisas que mais prazem à idade em que vicejam o frescor e as esperanças. Destas, a maior parte por lá ficou, misturada ao suor derramado no bulício das travessuras e no ardor das porfias olímpicas. Sim! Tínhamos olimpíadas. Querem ver?
Tirante os esportes de praia e as peladas disputadas nos incontáveis terrenos baldios e no Campinho, o grande acontecimento esportivo que motivava a rapaziada do bairro e congregava uma quantidade respeitável de espectadores eram as olimpíadas anuais, organizadas pelo pessoal do Grêmio e do Monte Castelo, que freqüentava a Bibi. Desportistas notáveis protagonizavam ferrenhas disputas de atletismo. Faltou, apenas, um gênio arrebatado que cantasse em epinícios e odes as formidáveis conquistas daquela juventude leblonense, como fez Píndaro celebrando desde as façanhas do menino Asópico de Hormônico, vencedor em 488 A.C., até a glória de Hierão de Siracusa, em 472 A.C..

Os dardos eram arremessados de um ponto determinado na calçada da Av. Ataulfo de Paiva, visando um quadrado previamente demarcado no chão, um pouco aquém do caramanchão fronteiro, no qual, prudentemente, abrigavam-se os juízes e marcadores. Eram confeccionados com hastes de bambu, terminando em biqueiras pontiagudas reforçadas com chumbo e negra e assustadora pregaria, o que lhes conferia o aspecto sinistro de lanças de guerra. Algum desavisado que transitasse pelo local e visse o bando de latagões empunhando, rija e destramente, tais petrechos de artilharia, julgar-se-ia, talvez, transportado para o cenário de um encarniçado combate da lavra de Cecil B. De Mille.

Numa dessas competições em que os ânimos estavam particularmente acirrados, Ricardo Mariano arrojou o dardo com tamanho entusiasmo, que a peça sobrevoou a parte de terra, o laguinho, o caramanchão onde se protegiam os juízes, ultrapassou a Rua Campos de Carvalho e foi espatifar a vidraça do escritório do posto de gasolina, ao lado da casa dos Meiras Vianna, trazendo sobressalto a essa boa gente e apavorando o gerente da loja, que manuseava a grossa cheta da féria do dia anterior e imaginou-se vítima de um assalto. A programação foi interrompida face à necessidade de diligências com o proprietário, que ameaçava chamar a polícia, as forças armadas e sabe Deus o que mais.

A prova principal do torneio, reservada aos atletas mais agaloados - o grande tiro de trezentos metros -, exigia uma volta completa em torno da praça. Disparado o morteiro Adrianino que determinava a partida, meia dúzia de robustos galalaus atirava-se em busca do cobiçado galardão.

Um cão do olho furado, que vivia a dormitar na calçada da Bibi, animal de origem desconhecida, com uma corcova que lhe vergava a pata dianteira esquerda, fazendo-o adernar a bombordo, despertava com a bulha, arremetia, ladrando furiosamente, no encalço da trupe, insuflado pelo clamor da platéia e, mesmo gebo e largando depois, lograva, ano após ano, superar aqueles vigorosos mancebos, mercê de uma obstinação só comparável à de Sísifo.

O certame acabava, inevitavelmente, em alegre pândega, assistentes e competidores trocando opiniões, bebendo e rindo muito, servindo-se com intimidade e lembrando-se de outras patuscadas que compartilharam.

De triste, apenas a constatação da indiferença de tão célebres quanto insensíveis guerreiros, incapazes de recompensar a pertinácia do pobre cão com um mísero osso que fosse; de laureá-lo pelo brilhante desempenho, pela surra que pespegara naqueles tratantes recalcados; de premiá-lo com um naco, ao menos, de um pitéu qualquer que pudesse roer na solidão do cantinho a que se recolhia após a retumbante vitória, melancólico retiro, de onde ouvia resignado o alarido das comemorações imerecidas e adivinhava os prazeres da comilança, que, por justiça, lhe cabiam.

No lusco-fusco do entardecer, casais de namorados revezavam-se num murinho de esquina, do qual os rapazes baldeavam-se, mais tarde, para o pátio do posto de gasolina, com o propósito de bater papo e maquinar as futuras troças. Mais adiante, em direção à praia, ainda na Bartolomeu Mitre, junto à casa do general Matoso Maia, havia um terreno baldio que serviu de cenário a marcante episódio.
Dito imóvel - como se anota nas escrituras públicas - confrontava com os fundos de um prédio residencial da Rua João Lira, no qual, durante algum tempo morou, em companhia da tia, nossa vice-campeã Marta Rocha, num apartamento ao rés do chão, cujos quartos de dormir dispunham de amplas e generosas janelas.

Seu namorado, Álvaro Piano, ao deixá-la na porta de casa, esmerava-se nos arremates das despedidas, prazo suficiente para um batedor previamente escalado disparar em volta do quarteirão e prevenir a turma à qual se juntava comitiva vinda do final do Leblon sob o comando de Boquinha e Almir (irmão do Cid), permitindo, assim, ao numeroso bando acomodar-se confortavelmente no muro dos fundos, a tempo de ver a musa trocar de roupa quase ao alcance da mão.

Numa dessas expedições voyeuristas, aquele valente oficial superior do Exército brasileiro que, antes de recolher-se, fazia a ronda de sua cidadela, fortemente armado, notou o rebuliço e interpelou os integrantes do regimento. Imediatamente, Carlinhos adiantou-se e confessou o objetivo da "espinhosa" missão. O expedito soldado ordenou que suspendessem momentaneamente a operação, efetuou uma breve e estratégica retirada até o interior da casa, trocou as pistolas por um possante binóculo, e foi juntar-se à tropa.

Lá num domingo ou feriado surgia, por vezes, um desses trapaceiros sobraçando imponente Bíblia, tentando vender as excelências de um novo reino do qual se permitia ser procurador e, naturalmente, tesoureiro. Alguns lhes atiravam tomates e ovos; outros acenavam com pescoções. Escorraçados, revidavam com a ameaça do fogo de mil infernos. Por via das dúvidas - falhasse o Zippo? - saíam de fininho e iam pregar em outra freguesia.

Já tínhamos nossos próprios deuses, ícones e quetais e não precisávamos que nos viessem empulhar com qualquer tipo de ideologia eclesiástica ou laical, capitalista ou xiita; nem explorar a credulidade dos mais ingênuos, impingindo-lhes a mórbida e detestável idolatria de fancaria que, aos poucos, todavia, avultou, tornando-se irresistível, varrendo gangorras, laguinhos, pracinhas e sonhos, dando lugar a marcas, entidades, instituições e ídolos forjados pela classe dominante.

Sólidos valores filosóficos e éticos, que nutriam o conhecimento humano, derivados de reflexões e observações - inclusive de conotação afetiva e impressionista - das coisas simples da vida, que, bem ou mal, nos legavam seus fundamentos e facultavam-nos percebê-las e dar-lhes, também, sentido estético, foram e vêm sendo, aos poucos, solapados, manietados pela lavagem cerebral promovida com o insidioso concurso da imprensa "mais vendida", e tudo se vai tornando fugaz, provisório, moldado ao sabor da conveniência das tirânicas famiglias, compilado num ideário globalizante que nos intima a aguardar, submissos, que nos sejam transferidas pelos mandatários do "pensamento único" as certezas destinadas a assegurar a incolumidade do patriciado.