O Doutor Aristófanes
por Rogério Suarez Barbosa Lima

Estimado por colegas e respeitado por magistrados e serventuários do Fórum, onde exerceu, com probidade e diligência, seu múnus, o Dr. Aristófanes, durante incontáveis anos, foi admirado como um eminente parecerista e inspirado tribuno. A par dessas virtudes que emprestava à sua apurada advocacia, granjeou a fama de homem que sempre se houve com correção e compostura.

A compleição robusta, é verdade, não combinava com a finura de sua erudição. Baixo, atarracado, calva pronunciada e portador de uma espessa bigodeira, mais se assemelhava a um garrafeiro dos anos cinqüenta, principalmente por sua teimosia em viver enfiado em grossos e negros jaquetões de risca-de-giz.

Demasiadamente comedido, cumprimentava sem efusividades. A postura grave que afetava, entretanto, não o impedia de ser homem educado e sem laivos de arrogância.

Tendo alcançado todas as glórias que a profissão de advogado poderia lhe proporcionar, cansou-se da militância e decidiu valer-se do vasto conhecimento que acumulou na constante leitura dos compêndios, nas incessantes vigílias e em instigantes querelas para se dedicar à literatura. Com o mesmo desassombro que inquietava o ex-adversus e a inquebrantável convicção de suas vibrantes perorações recheadas de construções de boa latinidade, resolveu doutrinar sobre medicina alopática.

A atilada pena que embasbacara desembargadores e ministros com sábios e decisivos louvados, influenciada talvez pelo nome grego de seu esgrimista, produziu dois alentados volumes dedicados aos mistérios da ciência de Hipócrates.

O primeiro, sobre o alcoolismo, refúgio — segundo o autor — de quatro tipos humanos: o iniciado, cujo desvio de conduta decorreria da tentação de imitar o semelhante; o tarado, heredo-alcoólatra, em que o ferrete se alastra até, pelo menos, a quarta geração (aqui, relatava, entre outros, o caso de um epilético descendente de um avô que apenas se embebedara na noite de núpcias e invocava a mitologia para revelar que Vulcano nasceu coxo porque Júpiter se embriagava com freqüência); o desgostoso, capítulo que encerrou com uma frase lapidar que teria assombrado os críticos da época: 'E é assim a vida. Uns elevam-se até as estrelas, outros caem até os enxurros.' e, por último, o consumidor voraz de frutas cítricas. A obra recebeu o título pomposo e esclarecedor de 'O alcoolismo e o anarcooliso'.

Sua segunda incursão no reino da ciência que previne e cura as doenças mereceu este sugestivo rótulo: 'Glândula Pineal, um insondável abismo'. Apesar do sortilégio que entrevia nas funções desse corpúsculo oval, cujo funcionamento intriga até os endocrinologistas, era exatamente à tal víscera que atribuía — à exceção das mencionadas causas do alcoolismo — todas as manifestações físicas e psíquicas que afetam os destinos da humanidade.

Dedicado à nova atividade e livre dos prazos forenses, sobrou-lhe tempo para visitar mais amiúde o velho pai que vivia num sítio no interior de Minas Gerais juntamente com as famílias dos outros três filhos, estes, sim, médicos por formação e que achavam muita graça nos 'diagnósticos' do Dr. Aristófanes, embora não o dissessem às claras, em razão do temor reverencial que tributavam ao irmão bem mais idoso, a ponto de o chamarem de 'senhor' ou 'padrinho', já que a todos batizara. Tratavam-no com um cerimonial e uma adulação que se devotam somente aos príncipes autênticos e às amantes tirânicas.

Dr. Aristófanes gostava dos ares da montanha e simpatizava com a gente local, que pasmava para sua imponência, sua cultura de bacharel afamado, exceto uns três ou quatro invejosos que lhe assacavam a pecha de 'metido'. Tinha dificuldade de lidar com crianças, mas não porque fosse intolerante. Tentara algumas vezes, mas a iniciativa soara grotesca, e ele desistiu. Fingia, então, que elas não existiam, o que lhes convinha mais ainda. Admiradores e crianças à parte, de tempos em tempos passava uma temporada com os parentes.

O uso excessivo dos neurônios, por parte desse incansável homem de idéias, acarretou-lhe um inevitável desgaste que se foi acentuando com o avançar dos anos e vinha se manifestando há algum tempo por meio de pequenos lapsos e um ou outro rompante detectados pelos mais chegados. Na fazenda, mais de uma vez se esquecera de dar a descarga no vaso sanitário, errava a porta dos quartos e confundia o nome das cunhadas e dos sobrinhos, quando não dos próprios irmãos. Contribuía para aturdi-lo a algazarra que os garotos, já bem crescidos, faziam dentro de casa (homem habituado ao silêncio das meditações, às manias e rotinas, perturbava-se com o alvoroço e a falta de método). Eram parcelas pequenas, é fato, mas que, somadas, produziam um efeito significativo.

Numa dessas visitas ocasionais — era noite chuvosa e fria —, os adultos engalfinhavam-se sobre o pano verde disputando encarniçadas partidas de buraco, quando, sem mais nem por que, o doutor surpreendeu a todos, comunicando que retornaria ao Rio na madrugada do dia seguinte. O trem passava pela estação em frente à casa às cinco da manhã. Uma decisão dessas a horas tantas trouxe um desassossego extraordinário. Tentaram, sem êxito, dissuadi-lo. Ajustaram, então, que alguém o acordaria às quatro da manhã, e todos foram dormir.

Na perspectiva da longa viagem que teria pela frente (era a época da maria-fumaça) e excitado com o arranjo dos pormenores, o que sempre provocava grande confusão na mente daquele homem voltado para as larguezas do espírito, Dr. Aristófanes não pregou o olho e, desde as duas horas, já fazia barulho pela casa, inteiramente vestido, pisando com força nas tábuas do assoalho, abrindo e fechando portas e torneiras, arrastando malas, deixando cair utensílios, enfim, acordando os demais moradores que, aos poucos, descabelados, afluíam ao salão, espantados com a alaúza que aquele único homem conseguia fazer com tanta eficiência.

A garotada foi se juntando na sala de visitas, jogando e troçando, animada com a novidade, a divertir-se com os sobressaltos que o tio causava. As senhoras aproveitaram para fazer café e preparar um farnel que proviesse o viajante em sua longa jornada. Ao ver tanta gente à sua volta, ainda que se equivocando ou omitindo nomes, o Dr. Aristófanes desandou a distribuir tarefas e encargos:

— Minha filha, separe um pedaço de bolo de fubá, umas bananas e um bule de café para eu lanchar no caminho.

— Já está quase pronto Dr. Aristófanes. O café vai na garrafa térmica, se o senhor não quer sujar as calças — respondia uma das cunhadas.

E choviam ordens para todos os lados. O homem parecia um comandante das tropas aliadas a designar funções no desembarque da Normandia:

— Célia, vou aproveitar e levar umas verduras frescas. Ontem vi na horta belos rabanetes e alfaces. Pegue um jornal e embrulhe para mim ... Ah! Não me esqueça as couves, sim? Isabel adora couves e as que vi lá estão suculentas.

Amélia (e não Célia) dizia para si mesma: 'Que tonto! Acha que a essa hora, com a temperatura a dois graus, vou sair a catar verduras para a Bébézinha. Pois sim!'.

O agitado primogênito dava punhadas numa porta:

— Pai, abre que quero lhe tomar a bênção.

O irmão mais novo corria em seu socorro, prestativo, bajulador:

— 'Seu' Aristófanes, aí é o banheiro. O quarto de paizinho é aquele colado à vitrola da sala.

— Neste caso, diga-lhe você mesmo, amanhã, que lhe peço a bênção e escrevo depois, que o trem deve estar chegando.

Com efeito, o trem aproximava-se da estação, e o mano Péricles pedia ao filho Zezinho — o mais sacudido dos pirralhos — que se entendesse com o chefe da estação e o maquinista para retardarem a partida por alguns minutos.

— Vou querer também aquele canário belga pendurado no canto da varanda. Ponham bastante alpiste e uma capa na gaiola, por causa da geada.

Cícero chorava:

— Mãe, meu canarinho não, mãe ...

— Pode deixar, meu filho. Eu escondo o canário no porão. Daqui a meia-hora ele nem se lembra do bicho.

Cícero se aquietava, mas por via das dúvidas não arredava o pé dali, muito ciumento de seu bichinho de estimação. Vigiava o tio maluco, atento à saraivada de instruções, aos encargos que repartia entre irmãos, cunhadas e sobrinhos, cioso de que não lhe arrestassem outros pertences.

O trem, ao lado da plataforma, dado o prestígio do patriarca — que dormia a sono solto, ignorando solenemente a baderna que corria solta em seus domínios —, excepcionalmente, aguardava a chegada do insigne e atribulado causídico.

A mãe de Cícero correu a chamar o marido para ajudar a conter o tumulto; afinal, o irmão era dele e a responsabilidade lhe cabia, por mais omisso e subserviente que fosse. Ela é que não estava ali para aturar desatinados.

Quando Eurípedes assomou ao umbral, estonteado, vestindo uma camisola de flanela que lhe descia até o meio das canelas de cambaxirra, calçando largas e esfiapadas pantufas que lhe acentuavam os gambitos, com os cabelos ralos e descuidados formando um curioso chuca-chuca em espiral, à moda dos bebês, contrastando com a figura hierática, doutoral do dia-a-dia, essa teatral e cômica aparição provocou gargalhadas nas mulheres e frouxos de riso nas crianças e nos adolescentes. A grave e sonambúlica criatura pôs fim à insolência:

— Parem com isso, que o assunto é sério, e o padrinho pode achar que riem dele. Vamos ajudá-lo.

Na estação, a composição bufou, esperneou, estremeceu, fez uma manobra no desvio, emitiu um silvo breve, como se fosse uma advertência e tornou a aquietar-se.

— Alguém precisa me auxiliar com a tralha. Onde está o menino do Péricles (era o Zezinho, que, prudentemente, se escondera na varanda, muito agasalhado, adivinhando que lhe caberia a pior das incumbências) — Manda ele dizer ao maquinista para esperar por dez ... não ... quinze minutos, que não acho meu chapéu, nem me trouxeram o pássaro, nem as limas-da-pérsia ('Homessa! Agora temos lima-da-pérsia' — pensou Átila, temeroso de dizer-lhe que não era época — 'E se o padrinho inventar coisa mais complicada ainda?').
Zezinho, descoberto em seu esconderijo, fora à estação e voltara afogueado, com o nariz muito vermelho de ter entrado na locomotiva para conferenciar com o maquinista, um tipo rude, que lhe confiara o seguinte recado:

— Se seu patrão não vier em dez minutos, largo ele aí, não me interessa quem é. O chefe já autorizou a partida há muito tempo, e eu tenho que chegar a Barra do Piraí antes do meio-dia, senão a mulher me esfola. Entre ela e seu tio, posso garantir que deixo o sujeito na mão.

Cuspiu no fogaréu da caldeira e, mal-encarado, despejou:

— Vai logo, moleque.

Na sala, Zezinho foi informado que tio Aristófanes tinha mudado de idéia. Adiara a viagem. Tomara a decisão em respeito ao venerando pai; não partiria sem sua bênção, sem beijar-lhe a mão. Já tinha mesmo se espichado na velha poltrona de veludo e se pusera a gosto, as mãos cruzadas sobre o ventre, e um manto providenciado pelos obsequiosos irmãos cobria-lhe as pernas.

Agora, competia novamente a Zezinho negociar com o maquinista, avisá-lo de que o homem desistira, que desculpasse o inconveniente ... que atrasara sua viagem inutilmente ... que se houvesse com a patroa ... que lhe aturasse os maus humores ...

O mensageiro não pensou duas vezes: trancou-se no porão e, naquela escuridão que sempre lhe fizera medo, enregelado, ficou mudo, teso, em companhia do canário do Cícero, rezando para que o bicho não abrisse o bico, não denunciasse sua presença.

Crianças e mulheres já nos quartos, os irmãos foram conferir se o padrinho estava bem, se necessitava de algum préstimo antes que se deitassem. Encontraram-no estranhamente imóvel, com um olho aberto. Um olho grande, interrogador, mirando o retrato ovalado do velho fazendeiro, pendurado no alto do arco que separava as duas salas.

O douto causídico, que diante dos magistrados discorria sobre os autos com a serena familiaridade dos sábios, que trouxera novos e valiosos subsídios à ciência dos esculápios, morrera minutos atrás, quando todos se preparavam para o merecido repouso da inusitada faina. Resolvera ele descansar primeiro, partindo silencioso para esta outra viagem mais longa, sem baldeação em Barra do Piraí. Tomou o atalho que leva a Deus ou ao diabo.

Lá fora, a maria-fumaça arrancou furiosa pela noite a dentro, jogando uma língua de fogo no ar gelado, e seguiu seu destino emitindo roncos assoviados, regougados, assustadores, e parecia que o vingativo maquinista, comandando um cortejo de locomotivas a lenha, tinha invadido o salão da casa, em represália ao desaforo.